Torre de Belém
Caro amigo:
Vi seu registro da nossa viagem. Obrigado. Estamos cá pela velha Europa, onde as diferenças entre nós e eles aparecem cada vez mais sutilmente. Há uma tendência de nivelamento, a longo, longo prazo, eu diria, que se pode perceber a partir da onipresença da “worldmidia” – queira desculpar meu neologismo. Eles descem, nós subimos. É a vida..
Primeiro é bom registrar que atualmente a Europa é dos brasileiros! Eles estão em todos os lugares. Do metrô aos cafés, é impossível não ouvirmos, momento-a-momento, a língua-mãe. E, hoje, até mesmo os enfatuados garçons europeus já arriscam uma ou outra palavra em “brasileiro” – algo, antes, impossível de encontrar.
Nossa porta de entrada foi Lisboa. Tínhamos que ir, e fomos, à Torre de Belém – magnífica! – beijando o Tejo, a guardar Portugal e nos dar uma pálida idéia de suas glórias passadas. Como contraponto aos tempos de antanho, o motorista de táxi, este sempre um Mercedes da década de noventa, me disse, sombrio, quando nos conduzia ao hotel: “este é um mundo cão”.
A frase não veio solta no tempo e espaço. Estávamos a falar acerca das greves francesas. Baixo, magro, sotaque carregado, beirando os setenta, maus dentes, típico representante da melancolia portuguesa, explica: “estão acabando conosco”. “Minha aposentadoria anual de paraquedista – eu lutei em duas guerras, na linha de frente – eram cento e trinta euros anuais. Cortaram trinta.”
“Quais guerras o senhor lutou?”, pergunto. “Sim, claro, na linha de frente”, insiste, “sessenta e um, Angola; 63, Guiné-Bissau.” “Ferimentos?”, pergunto, receoso de alguma resposta brusca. “Somente na alma; e os carrego junto com algumas medalhas com as quais meus netos brincam. Não servem para nada”
“O que lhe doeu, na guerra?” Ele olha de relance para mim, e parece não se dar conta de que os outros são testemunhas atentas da conversa. “Ver, em Angola, um compatriota de chicote na mão a vigiar negros trabalhadores”. “Por que isso?”, perguntei-lhe. “Se não eles não trabalham”, me respondeu. “Compreendi, ali, que aquela não era uma guerra pela qual lutasse um homem.”
Agora é noite e já estamos no Bairro Alto, onde tudo é Fado, as ruas são estreitas, e há um clima de boemia no ar frio. Peixe – este é seu nome, o “maïtre d’honeur”, desliza pelas mesas apertadas com a elegância de uma antiga modelo a matar saudades da passarela. É o próprio espírito da Casa que nos acolhe. Serve-nos um vinho jovem do qual não nos arrependemos. Explica-nos as apresentações dos cantores de Fado. E nos confidencia: “são todos grandes divas”.
É verdade, percebo logo a seguir. Todos têm dois nomes. Nada daquela intimidade fácil do Brasil; nada de Chico, Caetano ou Roberto. Ali, desde a ainda jovem, para os padrões do Fado, e bela Ana Marta, até a crepuscular Lenita Gentil - a “grande dama” e principal atração da noite, varia os estilos: do contido, elegante, de Antônio Rocha, ao exuberante, popular, de Anita Guerreiro, mas, todos, expressões máximas de uma arte que eles manejam com rara habilidade e distanciamento, e que tento explicar aos meus companheiros, lhes dizendo que tudo isso expressa uma verdade implícita, a de que se nós não gostarmos do fado, a culpa é nossa; portanto, entendamos: ali se canta a alma de um povo, não canções quaisquer.
Nada representa tanto esse “espírito das coisas” quanto aquela a quem eu alcunhei de “a velha dama”: imperial, majestosa, de perfil forte, no qual despontava um queixo autoritário, toda de negro, ela cantava para si e para suas lembranças enquanto cantava para nós, a dominar o pequeno espaço no qual revoluteava entre ondas de um forte perfume de toalete e esgrimia seu xale com rara maestria. O acompanhamento, feito pela viola de sete cordas tocada como se fosse violão, e a guitarra portuguesa, era soberbo.
No final, uma homenagem aos brasileiros: “Ai, Mouraria”, um pedido meu, seguido de um fado de Vinicius de Moraes, e a presença da “grande dama” na nossa mesa, a aceitar, condescendente, nossas homenagens, enquanto sobre nós espargia um olhar esverdeado e uma voz rouca enfeitiçante.
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