Saímos cedo de Pau dos Ferros,
RN, no rumo de Patos, Paraíba.
Lá chegamos ao meio-dia.
Hospedamo-nos no Hotel Zurick.
À noite perguntamos ao
recepcionista de onde tinha vindo esse nome. Com certo sarcasmo sertanejo ele
nos disse: “o homem andou por lá e por certo achou esse nome bonito”.
Franklin Jorge comentou: “se
Cascudo tivesse estado aqui, escreveria uma crônica com o seguinte título: ‘Zurick
em pleno Sertão paraibano; faria algo grandioso e o dono terminaria recebendo o
título de cônsul honorário da Suíça’”.
Fomo à Matriz. Prédio simples.
Chegamos em plena missa das dezesseis horas. Arrodeamos a Igreja cujos fundos
dão para uma rua estreita, pequena. Olhávamos para uma porta fechada,
indecisos, quando um homem trigueiro, alto, encorpado, trinta e poucos anos,
cabelos curtíssimos, vestido com uma camisa branca de mangas compridas abotoada
nos pulsos se aproximou maciamente.
Perguntei-lhe se ali era a
Secretaria da Paróquia. Ele disse que não e nos apontou onde ficava.
Perguntei-lhe se era padre. Confirmou com aqueles ademanes típicos, mas
discretos, de seminarista, contidos por sua estrutura física maciça, embora não
desmesurada, e nos entregou sua mão também macia para apertarmos.
Padre Francisco foi gentil,
delicado.
Na livraria da cidade indagamos à
vendedora pelas obras dos autores locais. Ela nos apontou, com certa
displicência, um canto afastado de uma estante empoeirada. Encontramos uma
gramática em versos, que eu logo comprei, e livros e mais livros de um poeta
local, que eu não comprei.
Nada mais.
Depois, fomos às ruas: vibrantes,
febris, plenamente comerciais. Carros, motos, bicicletas... Pessoas indo e
vindo rápidas, com aquele semblante típico de quem precisa chegar logo em algum
lugar preciso, para resolver alguma coisa.
Não havia pedintes, nem
pastoradores de carro, nem lavadores de para-brisa, nem deficientes físicos.
Somente uma senhora, personagem folclórico, que me abordou na farmácia:
“lindão, me dê um dinheiro”.
Como não dar? “Ela dá sempre esse
golpe em quem não é daqui” disse-me o caixa da farmácia, com um sorriso
sarcástico.
Raros são os passeantes. Os
flâneurs. A maioria mulheres. As mulheres de Patos, são belas, não bonitas. Há
uma diferença entre ser bela e ser bonita. A mulher, quando é bela, desafia o
tempo. Não pede emprestado à juventude aquilo que sempre possuirá.
Belas, as mulheres de Patos.
Suavemente arredondadas, como um ideal rafaelita amoldado à realidade anoréxica
dos tempos atuais. Altivas. Ou contidas. Ou dissimuladas. Pernas longas,
levemente grossas, torneadas. Narizes afilados. Dentes bem cuidados.
Compõem um contraste marcante com
o bulício comercial suburbano que ocupa nossos olhos quando caminhamos pelas
ruas da cidade. Não haveria ruas onde não se compra e não se vende?
Aparentemente não. Em qualquer lugar há essa atividade febril, tipicamente burguesa,
que pressupõe uma interação constante entre as pessoas e que se opõe à
percepção do aparente distanciamento das belas mulheres de Patos.
“Por que Patos?”, pergunto à
Virgílio Trindade na tentativa de encontrar dois velhos amigos de meu pai, a
quem seu primo, também chamado Virgílio Trindade, comerciante no Mercado
Central, procurado por indicação de um transeunte como sendo bastante antigo na
praça, reputa como escritor.
Recebeu-nos muito bem. Tem um
programa político em uma rádio importante da cidade. Magro, moreno, careca,
sentado por trás de um birô anacrônico em um escritório de um só vão no centro
da cidade, nos deu, com uma voz característica de fumante e locutor, um seu
livro de crônicas, Relíquias.
Falou-nos do seu programa
político: “é complicado”. “Por quê?” “A gente está falando com alguém ao
telefone e no ar e ele grita: eu voto em Lula! Já pensou?” Estávamos no começo
da saga lulista na presidência da república.
“Por que Patos?”, repito. “Havia,
aqui, antes, uma lagoa chamada ‘Lagoa dos Patos’”. “Onde ficava?” “Ah, quem
quer que tenha um quintal em casa diz que era lá”. Esboça um esgar de sorriso sardônico
no canto da boca.
Virgílio Trindade nos indicou
outros intelectuais de Patos, dentre eles o Secretário de Educação do Município,
que também é dirigente do Instituto Histórico local. Fomos até lá. Recebeu-nos em
um vão vazio uma moçoila loura tão importante quanto decrépito era o prédio da
Secretaria.
Perguntou-nos se tínhamos marcado
hora. Foi até o gabinete e voltou cerimoniosa, nos pedindo que aguardássemos o
término de uma reunião.
Sentamo-nos durante breves cinco
minutos e nos despedimos, para espanto da secretária, a quem recomendamos,
enfaticamente, a leitura da obra completa de José Sarney, apropriadíssima para
moçoilas secretárias de secretários ocupadíssimos.
Passamos no “troca-troca”. Um
galpão aberto para todos os lados onde quem quiser chega e expõe sua mercadoria
para vender ou trocar.
Seu Antônio, um sertanejo idoso,
mas rijo, nos acolheu com um sorriso. Na sua banca encontramos desde uma rede
de pescar em açudes até rádios antigos.
“Troca-se qualquer coisa aqui,
Seu Antônio?” “Qualquer coisa, doutor, até mulher velha por nova, mas dando o
troco”. Rimos.
“Você e seu pai são de onde?”, pergunta
ele se virando para Franklin Jorge. Caímos na gargalhada. Franklin diz-lhe que
não é meu pai. Eu pisco o olho para Seu Antônio: “ele é muito vaidoso”.
Despedimo-nos. Seu Antônio olha para mim quando Franklin lhe dá as costas e
sussurra: “eu entendo como é...”
Quem nos recebeu à porta da casa
simples, estreita, geminada, praticamente no centro comercial de Patos, quando
fomos à procura de Antônio de Lelé, cantador de viola que primeiro fez dupla
com Seu Chico Honório, meu pai, em sua breve carreira, foi sua esposa,
baixinha, magrinha e enrugadinha. Tudo no “inha”.
Abriu a porta que dava para uma pequena
área antecedendo a salinha de estar e nos envolveu com um delicioso cheiro de
alguma iguaria que estava sendo cozinhada no tempero de cominho.
Antônio de Lelé não estava,
apesar de Dona Maria afirmar que ele nunca saía de casa, fato desmentido
diversas vezes ao longo do dia, para perplexidade nossa. Haveria algo freudiano
nessa negação do óbvio?
Finalmente nos encontramos com
Antônio de Lelé, lá pela quarta procura. Surpresa: é como ver Padre Sátiro
Dantas na nossa frente sem aquela impaciência que o distinguia.
Antônio de Lelé conversa
longamente com Seu Chico Honório pelo celular, enquanto assediamos Dona Maria
com elogios rasgados ao cheiro de sua comida. Queríamos um convite. Era um bode
no cominho.
“O que acompanha?” “Arroz, farofa
na gordura, uma saladinha”. “Rapadura, também”. E ia recuando, agoniada para
escapar da obrigação sertaneja de oferecer a iguaria elogiada.
Constrangida pelo cerco
implacável, não entregou os pontos: “se não fosse tão pouca a comida eu até que
convidava”. Renunciamos ao ataque, comovidos. Terminamos sem provar o bode.
Nesse tempo Antônio de Lelé já se
despedira alegando que tinha que ir ao Banco, mas que nos aguardava de tarde, e
garantindo que o livro de Orlando Tejo sobre Zé Limeira, com quem ele cantou
várias vezes, tinha muita mentira.
Eu me lembrei de Orlando Tejo no
meu apartamento em Brasília, levado por Jânio Rego, espojado na cadeira de
balanço, a lançar fumaça de um cachimbo preto empesteando o ambiente, falando
acerca da Serra do Teixeira onde, segundo ele, havia um marco que ficava no
meio do tudo, porque fincado no meio do nada. Lembrei-me dele anos depois,
quando por lá passei.
Escrever acerca do Homem, de suas
relações, e das Coisas era meu propósito pretensioso. Existirão Coisas ou tudo,
além do Homem, nada mais é que um sonho meu, seu, nosso?
E se este Universo nada mais for
que um átomo dentre ilimitados outros de um Universo inconcebível que, por sua
vez, é um átomo de outro Universo inimaginável, tudo isso em escala
infinita?
Enquanto o carro avançava Sertão
adentro, no rumo de Cajazeiras, nossa próxima etapa da perambulação meio séria,
meio anárquica, ladeado pela vegetação típica do semiárido, aqui e acolá
matizada por um ipê-roxo, juazeiro ou quixabeira especialmente frondosos, e
serrotes despidos e enfeitados com pedras esculpidas aleatoriamente, que faziam
ondular a paisagem, divagávamos acerca da irrelevância da pesquisa que fazíamos
e mergulhávamos na Metafísica.
Entretanto, a metafísica cansa e
deprime o mais das vezes, tamanha a vastidão daquilo que ela contém e tamanha
nossa incapacidade.
Voltamos ao concreto. O oceano
bravio de questões que se tornou nosso assunto de viagem fez-nos correr em
busca de um Porto Seguro: o dia-a-dia, o cotidiano, o detalhe mágico, por
exemplo, do andar felino do camponês que se prontificou, sem nos conhecer, a ir
conosco em busca de um ex-vereador que, segundo ele, “sabia tudo” acerca de
Santa Terezinha, município à vinte quilômetros de Patos, onde tínhamos ido
procurar o rastro de um tio de Massilon, o cangaceiro que arrastara Lampião
para atacar Mossoró.
Nada encontramos. Somente esse
andar felino, o português arcaico, a cidadezinha pequeníssima, a sensação de
absoluta irrelevância de qualquer pressa. Não por outra razão ao falar em
pressa diz o sertanejo que “o apressado come cru”.
O “sabe-tudo” de nada sabia.
Ouvira falar que, antigamente... e coçava o rosto, empurrava o
chapéu de couro para trás da cabeça e deixava o olhar vagando pelo cercado onde
um menino tangia cabras para algum destino incerto, doido para se livrar da
gente.
Até logo, até logo, muito
obrigado, dissemos. Muito obrigado ao pessoal do Cartório de Patos que nada
encontrando do que procurávamos nos fez descobrir outra pista.
Muito obrigado a Dona Madalena,
da Secretaria da Diocese de Patos. A senhora é tão boa, tão gentil, tão
atenciosa, quanto é magra, pequenininha, delicada. E perfumada, a senhora é
muito perfumada – a “Alma de Flores” – e elegante, naquela elegância anacrônica
de moça velha que dedicou sua vida a secretariar Sua Excelência Reverendíssima,
o Bispo Diocesano.
Também organizada, com seu birô
impecável, onde duas caixetas, uma para “recebido”, outra para “devolvido”,
cumpria a burocracia temporal da Igreja, sua face terrena e humana, a “Cidade
dos Homens” que se contrapõe à “Cidade de Deus” da qual nos deu a conhecer
Santo Agostinho.
Texto transcrito de Massilon (Nas Veredas do Cangaço e Outros Temas Afins) MEDEIROS, Honório de. Natal: Sarau das Letras. 2010.
honoriodemedeiros@gmail.com / @honoriodemedeiros
Um comentário:
o/ Bom de mais!
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