quinta-feira, 12 de junho de 2025

11. SINTOMAS DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA CONSTITUCIONAL ENQUANTO INTRUMENTO DO PODER POLÍTICO


* Honório de Medeiros


“A visão superficial sempre esconde o verdadeiro sentido da atividade jurisdicional, que é mais profunda do que se possa imaginar e que apresenta um ‘substratum’ caracterizadamente político-ideológico” (SARAIVA, Paulo Lopo, “Influência da Ciência Jurídica na Decisão Judicial”.

A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

É a partir de premissas como essas que se deve entender o fenômeno da mutação constitucional, qual seja a alteração do sentido da norma constitucional vigente, enquanto reflexo da estrutura de Poder Político, em determinada circunstância histórica. Será ela, a mutação, concorde com as aspirações populares ou os interesses da elite dependendo exclusivamente da estrutura de Poder Político vigente espaciotemporalmente.

Bugos nos diz o que seja “mutação constitucional”:

“Poderíamos citar ainda Haug, Franz Klein, Häberle, Fiedler, Maunz-Dürig-Herzog, H. Krüger, Heydte, Peter Lerche, Tomuschat, Scheuner, Rudolf Smend, Bilfinger, Hennis, Friedrich Müller, que, igualmente a Hans Kelsen, compreendem a mutação constitucional como a aplicação de normas que se modificam lenta e imperceptivelmente. Isso ocorre quando às palavras, que permanecem imodificadas do Texto Maior, se lhes outorga ou sentido distinto do originário, ou quando se produz uma prática em contradição com o texto, não sendo um acontecimento peculiar e único na órbita das normas constitucionais, senão um fenômeno constatado em todos os âmbitos do direito” (1997:54ss).

O mesmo autor assim se manifesta quanto à doutrina da "construction" em relação ao Supremo Tribunal Federal:

“A análise das decisões do colendo Supremo Tribunal Federal demonstra a presença do construcionismo judiciário, permitindo-lhe desprender-se do rígido formalismo legal, possibilitando a existência de amplos debates sobre problemas constitucionais, tal a messe de decisões repetidas na aplicação de certas teses. O acórdão a seguir elucida a questão, qual seja o do pedido de Intervenção Federal n. 14, de 1951, e o da Reclamação n. 315, de 1953, de que foi Relator o Ministro Edmundo Macedo Ludolf, quando lembrou ao plenário a ‘prerrogativa que competia ao STF de construir o próprio direito, em dadas circunstâncias de premência e necessidade, em ordem a suprir as deficiências ou imperfeições da legislação’ (DJ, 28 nov. 1951, p. 4528-9). O Ministro Edgard Costa também enfatizou que ‘o STF, ao modo da Corte Suprema norte-americana, desempenha não o papel de um simples tribunal de justiça, mas o de uma constituinte permanente, porque os seus deveres são políticos, no mais alto sentido da palavra, tanto quanto judiciais’”.

Teria mudado, ao longo do tempo, a posição do STF quanto ao entendimento de que seus deveres são políticos, sua competência a de construir o próprio direito para além da expressa vontade do povo, manifestada através das leis que seus representantes votaram e aprovaram?

Parece que não, haja vista, por exemplo, a manifestação em relação à “MP do Apagão”: conforme ficou claro, o STF decidiu não decidir, a pedido do Governo, para impedir a discussão jurídica, através de sua manifestação em uma Ação Direta de Declaração de Constitucionalidade[1].

Outro exemplo patente é a questão do chamado “teto dúplex” que, em 1993, foi condenado pelo Ministro Carlos Velloso, como nos lembra o artigo de Marcos Sá Corrêa, publicado na revista Época, de 20 de março de 1999: “Julgava-se o recurso de um pequeno funcionário contra a Secretaria da Fazenda de São Paulo. Policial aposentado, ele voltara à folha do Estado como professor universitário. Foi demitido por acumulação indébita e levou o caso à Justiça. Vencera em várias instâncias até ser barrado por Velloso em 25 páginas de sólidos argumentos”.

Hoje, sabemos, o entendimento do STF é totalmente diferente.

Nada, porém, demonstra, com maior clareza, a possibilidade de a interpretação jurídica atender reclamos do Poder Político quanto a teoria da interpretação evolutiva.

Segundo Luis Roberto Barroso:

“A interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente do constituinte".

Mais à frente:

“Na América Latina, como lembra Anna Candida da Cunha Ferraz, e inclusive no Brasil, uma longa tradição autoritária mantém a interpretação constitucional evolutiva, através do Poder Judiciário, em limites extremamente contidos. De fato, a história do continente é estigmatizada pela hipertrofia do Executivo, pela quebra das garantias da magistratura, por reformas constitucionais casuísticas e pela instabilidade constitucional constante. Aliás, em lugar de evolução, freqüentemente o que se verifica é uma deformação, onde a interpretação constitucional judicial convalida os abusos autoritária".

Barroso lembra que essas mutações constitucionais são possíveis graças ao elevado teor de indeterminação de normas constitucionais.

A POSSIBILIDADE DA DECISÃO CONTRA A LEI

Nada caracteriza tanto a possibilidade assumida de decisão contra a lei que o chamado “Direito Alternativo”, surgido na esteira criada pela chamada “Teoria Crítica do Direito”.

Tal teoria condena a identificação entre Direito e Lei e, mais ainda, critica asperamente a concepção estatal daquele, apontando fontes outras para o fenômeno jurídico, qual seja, o dos presídios e zonas comandadas por traficantes (Colômbia).

Trata-se, conforme já mencionado em outros textos neste livro, da crença no pluralismo jurídico.

Essa possibilidade de decisão contra a lei que for considerada injusta não é moderna do ponto de vista teórico.

Quem, tendo frequentado livros de História do Direito, não se recorda do bom Juiz Magnaud que, de 1889 a 1904, presidiu o Tribunal de Primeira Instância de Château-Thierry, e não se preocupava com a lei, doutrina, sequer a jurisprudência? Ou da “Escola do Direito Livre”? Ou mesmo da “lógica do razoável”, de Luis Recazéns Siches?

A fonte dessa teoria é Eugen Ehrlich e “Fundamentos da Sociologia do Direito”, de sua autoria. Nessa obra ele convoca[2]: “A Sociologia do Direito deve começar pela pesquisa do direito vivo. Ela deve dirigir-se, primeiramente, ao concreto e não ao abstrato. Somente o concreto deve ser observado”.

E, assim, cai na armadilha preparada pelo empirismo empedernido, já denunciado em capítulos anteriores, quando se fez a crítica da lógica indutiva.

O que é esse “Pluralismo Jurídico”? A idéia de pluralismo jurídico é decorrente da crença na existência de dois ou mais sistemas jurídicos, dotados de eficácia, concomitantemente em um mesmo ambiente espaciotemporal.

Assim é que, por exemplo, em sua Introdução Histórica ao Direito, Gilissen  observa:

“nos países coloniais, nos fins do século XIX e até os meados do século XX, existiam geralmente dois sistemas jurídicos, um do tipo europeu (common law nas colônias inglesas e americanas, direito romanista nas outras colônias) para os não indígenas e, por vezes, para os indígenas evoluídos, e outro do tipo arcaico para as populações autóctones (...) No fim do período colonial (1960-1975) Portugal tinha feito das suas colônias africanas províncias e tinha tentado integrar os diversos sistemas jurídicos. Mas, apesar destes esforços, o pluralismo jurídico está longe de ter desaparecido de fato”.

Coelho (1979:115), citando Goffredo Telles Jr., vai um pouco mais além: “A esta concepção que admite a coexistência de várias ordenações se denomina pluralismo jurídico, e opõe-se ao monismo, teoria que aceita a ordenação do Estado como a maior expressão da normatividade jurídica" (1988:34).

Quais as conclusões possíveis a respeito da coexistência de mais de um sistema jurídico em um mesmo ambiente espaciotemporal? Uma delas, e talvez a mais intrigante, é a conjectura elaborada pelos teóricos do denominado “movimento sociológico do Direito” quanto à possibilidade de tal fenômeno ser uma prova inconteste de que existe um direito da sociedade extra-estatal.

Decorre essa conjectura de uma adequação do pensamento de Eugen Ehrlich, principal teórico da Escola do Direito Livre, autor de “Contribuição para a Teoria das Fontes do Direito”; “Sociologia do Direito”; e “Lógica Jurídica”, aos tempos modernos.

Com efeito, dada a impossibilidade de coexistência de dois sistemas jurídicos de natureza positiva, ou seja, cujas leis sejam originadas do Estado, somente é verossímil a hipótese defendida pela Escola de Sociologia Jurídica, cuja origem remonta a Savigny e que recebeu sua primeira sistematização com Eugen Erhlich, com fulcro na idéia de pluralismo jurídico.

Embora, a respeito do pluralismo jurídico, haja quase um consenso quanto a significar ele a coexistência de sistemas jurídicos distintos em um mesmo ambiente geográfico-temporal, as divergências surgem quando se utiliza esse conceito, verossímil para expressar a apreensão fenomênica de determinadas situações específicas, como aquelas descritas por John Gilissen, para suscitar a teoria da existência de normas jurídicas não estatais.

Exemplo patente do primeiro caso é aquele vivido por países colonizadores em suas colônias, bem como outros que tenham passado por experiências revolucionárias onde a antiga ordem conviveu durante algum tempo com a nova.

Também é o caso de países como o México e a Colômbia, onde o Estado admitiu a existência de um determinado ambiente espaciotemporal em que o sistema jurídico vigente não é o por ele imposto. Países como Portugal, que teve colônias na África, Inglaterra, e a Índia, por exemplo, jamais conseguiram tornar seus sistemas jurídicos hegemônicos: os dois conviviam, de forma complexa, com os sistemas jurídicos nativos.

Quanto ao segundo caso, aceita-se que as normas de conduta estabelecidas pelos presidiários no interior dos presídios, assim como aquelas existentes nas favelas, expressões do que Eugen Ehrlich entenderia como ordenações jurídicas internas e autônomas, também seriam um sistema jurídico.

Para aqueles que defendem caracterizar esse ordenamento tácito e não escrito vigente em presídios e favelas um “Direito”, tal concepção fulcra uma perspectiva ontológica: uma vez que há diversos direitos, aquele que com eles trabalha não pode se restringir ao uso de somente um no seu mister de concretizar a Justiça.

Ou seja, seria possível uma decisão contra a lei, mas a favor do Direito.

Em síntese, esses juristas crêem haver Direito resultante de fontes distintas do Estado.

Melhor, acreditam que há, além da norma positivada ou não (modelo inglês), mas existente, vigente e eficaz em decorrência da aceitação estatal, alguma outra, pelo Estado não reconhecida, mas dotada de eficácia e validade jurídica no “habitat” onde surgiu e apta, portanto, a desempenhar o papel necessário para a concretização da idéia de Justiça que se pretenda obter.

Por outra: as normas jurídicas positivas estão sempre a reboque dos fatos originando-se, em decorrência, em situações específicas, descompasso entre a lei e a Justiça. A decisão judicial, no afã de realizar a Justiça, tanto poderia valer-se da norma estatal como daquela que é “achada nas ruas”, “alternativa”, “insurgente”, ou “conforme o espírito do povo”.

Norberto Bobbio apreendeu, com notável perspicácia, o âmago da fragilidade dessa crença (1996:177).

Com efeito, do ponto de vista epistemológico, a construção teórica da escola sociológica do Direito somente é possível se o sujeito cognoscente pudesse apreender integralmente o objeto cognoscível (a coisa-em-si) com o qual se depara em seu intuito de desvendar a realidade. 

Trata-se da crença na possibilidade de ser possível apreender a essência, o âmago da “coisa” e dele extrair normas de conduta.

Essa crença é antiga conhecida dos filósofos, oriunda de uma tradição que remonta a Platão e sua gnosiologia exposta no “Teeteto” que nos remete a uma teoria das formas e das idéias, cuja denominação, ao longo dos anos, adquiriu diversos nomes, dentre os quais, em direito, “natureza das coisas”, palavras com as quais Montesquieu inicia o seu “Espírito das Leis”.

Montesquieu:

“A nosso ver, a noção de natureza das coisas é negada por aquela que, em filosofia moral, é chamada de ‘falácia naturalista’, isto é, pela convicção ilusória de poder extrair da constatação de uma certa realidade (o que é um juízo de fato) uma regra de conduta (que implica em um juízo de valor). O sofisma da doutrina da natureza das coisas, como do jusnaturalismo, é pretender extrair um juízo de valor de um juízo de fato.”

A filosofia de ciência, principalmente, tem se revelado bastante mais avançada em tratar essa questão da relação entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, que qualquer outro ramo do conhecimento.

Assim é que, por exemplo, tanto Karl Popper, quanto Gaston Bachelard, filósofos, cada um a seu tempo e a seu modo, mostraram que o vetor do conhecimento é, em última escala, dirigido do Racional para o Real. E, também, físicos, como Werner Heisenberg; (Popper, 1978:14); (Bachelard 1977:33); (Heisenberg, 1996:12).

Se assim o é, argumentos como aqueles utilizados por Michel Miaille, tais quais: “os juristas (da Escola Sociológica) quiseram encontrar o direito nos fatos sociais, como um geólogo encontra minerais na Terra” ou, mesmo por Larenz (1989:78), ao afirmar que Ehrlich se equivocou ao tratar da dogmática jurídica, corroboram, no universo do Direito, o quanto está filosoficamente equivocado, em suas premissas, esse retorno a um certo tipo de idealismo que permite, metodologicamente, ao intérprete e aplicador da norma, pautar-se por um suposto sistema jurídico extra-estatal para materializar uma sua concepção de Justiça" (1979:281).

Puro personalismo. Solipsismo jurídico.

Na realidade, a teoria que extrai do pluralismo jurídico uma comprovação da possibilidade de existência de normas jurídicas extra-estatais, e propõe a existência dessas normas jurídicas em favelas e presídios, não somente extrapola a ciência, mas presta um desserviço à democracia.

Ao atribuir à realidade imediata um papel que esta não possui, de indutora de regras universais jurídicas, o intérprete e aplicador do “Direito” se autonomeia capaz de interpretá-la subjetivamente.

Crê-se ungido em um papel de demiurgo. Mas, ao final, nada está fazendo além do que, por seu próprio intermédio, reproduzir, como aparelho do Estado, enquanto integrante da superestrutura ideológica, o capital simbólico da elite à qual pertence.

Por que, no final das contas, ao agir contra o Estado, na medida em que desrespeita o princípio da legalidade, origina uma cultura de desprezo à lei. E esse desprezo à lei, ao ordenamento jurídico, ao Estado, é um filme já conhecido desde há muito.

Observemos que um dos fulcros em defesa do argumento do Poder Político é o interesse coletivo, do qual esse Poder se diz representante, embora as normas que amparem as garantias fundamentais sejam supostamente imutáveis quanto ao seu conteúdo e forma.

Aliás, quando a elite cai na armadilha que a realidade lhe impõe e esbarra no limite estatuído de forma objetiva pela norma, recorre, sempre, a uma norma que lhe seja hierarquicamente superior e de conteúdo, portanto, muito mais indeterminado, cuja interpretação permitirá uma escapatória, vez que os limites para o subjetivismo foram notavelmente ampliados.

Chaïm Perelman denunciou essa prática em sua “Lógica Jurídica”:

“Finalmente, os casos mais flagrantes são aqueles em que intérpretes, desejando evitar a aplicação da lei, em dada espécie, restringem-lhe o alcance introduzindo um princípio geral que a limita e criam assim uma lacuna contra legem, que vai de encontro às disposições expressas de lei” (1998:67).

Enfim e ao cabo, esta prática é sempre uma possibilidade do Poder Político.

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[1] Veja-se, a respeito, artigo de Dalmo de Abreu Dallari na Folha de São Paulo de Domingo, 15 de julho de 2001, cujo título é “Suprema Indecisão”.

[2] Ver SOUTO e FALCÃO; Cláudio e Joaquim; “Sociologia e Direito”; Editora Pioneira; São Paulo; 2ª edição; 1999; p. 113.

Texto constante do livro "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estantevirtual.com.br

quarta-feira, 11 de junho de 2025

10. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA CONSTITUCIONAL ENQUANTO INTRUMENTO DE E DO PODER POLÍTICO.

 


* Honório de Medeiros 

Lembra Losano que “o uso do termo <interpretação> no âmbito do direito constitucional é quase um abuso: aqui, mais do que noutros campos do direito, é evidente quanto o poder verga o direito às suas próprias exigências” (1979:64). 

Não por outra razão, revelam-se de caráter mais nitidamente político as variadas teorias construídas ao longo do tempo em relação à interpretação jurídica constitucional. Veja-se, por exemplo, a discussão acerca da interpretação constitucional nos Estados Unidos, envolvendo a Suprema Corte. 

Com efeito, Paulo Bonavides, após observar que “a reflexão interpretativa que resultou na doutrina americana dos poderes implícitos está, do ponto de vista ideológico, inteiramente vazada na concepção do Estado liberal (...)”, explica que esta (a doutrina) encobre, de melhor forma, seu compromisso com a ideologia burguesa, graças a sua “racionalidade aparentemente mais pura”, sendo, portanto, aquela “que exige mais penetração e acuidade para descermos às suas ocultas e verdadeiras nascentes, ou seja, para localizarmos a tábua de valores que a exprimiu e legitimou numa precisa ocasião histórica”, o que lhe permite “com a máxima eficácia, se constituir num instrumento interpretativo de toda Constituição, NÃO IMPORTA O CONTEÚDO MATERIAL NEM AS PREMISSAS TEÓRICAS FUNDAMENTAIS SOBRE AS QUAIS REPOUSE” [grifo original]  (1994:433 ss). 

Luís Roberto Barroso descreve a questão:

“Após dois períodos sucessivos em que a Suprema Corte apresentou um perfil nitidamente progressista, afirmativo de novos direitos e de proteção das minorias, articulou-se um amplo movimento de reação conservadora. Cognominado de ‘originalismo’, funda-se ele na tese de que o papel do intérprete na Constituição é buscar a intenção original (the original intent) dos elaboradores da Carta, abstendo-se de impor suas próprias crenças e preferências” (1998:108)

Mais à frente:

“A crença originalista de que não é possível atingir um mínimo de objetividade na interpretação constitucional – que ficaria, pois, sujeita a meras preferências subjetivas – tem sido questionada com veemência, tanto no debate acadêmico como na prática política” (idem). 

Daí porque Paulo Bonavides  não oculta aquilo que exsuda da teoria acerca das teorias interpretativas constitucionais:

“A chave da inteligência dos textos constitucionais está pois em eleger um método volvido para a análise de toda a realidade circunjacente ao exercício do poder, a qual determina, em cada época e a cada passo, o sentido e a natureza das regras inscritas no código supremo” (OAC:11). 

Nesse mesmo sentido, Vieito  diz:

“Toda Constituição abraça uma ideologia, que determinará toda a sua estrutura normativa. Cabe ao intérprete se ater à fórmula política adotada pela Constituição, sob pena de violar seu espírito. A fórmula política é o fio condutor do intérprete” (2000:91). 

Chaïm Perelman  pensa da mesma forma:

Desde a instauração, em 1790, da obrigação de motivar as decisões judiciais, é na motivação dos tribunais que encontraremos as melhores mostras de lógica jurídica. Esta é orientada pela ideologia que guia a atividade dos juizes, pela forma como eles concebem seu papel e sua missão, pela concepção deles do direito e pelas relações com o poder legislativo” (1998:29). 

Também Bonavides :

“Assim, a título explicativo, faz-se mister assinalar, como excelentemente ponderou Leibholz, que alguns direitos fundamentais disciplinados em outros sistemas constitucionais de forma absolutamente idêntica, vazados nas mesmas palavras, recebem contudo interpretação de todo distinta, em razão unicamente da distinta realidade política que refletem" (1994:110). 

         Ainda, um pouco adiante, refletindo obliquamente acerca da inerência política (enquanto Poder Político) alusiva à interpretação constitucional, complementa Bonavides:

“Observa-se por outra parte que a moderna interpretação facilita o comportamento autoritário dos poderes governantes, que comodamente se divorciam, por essa via evasiva, da rigidez dos cânones constitucionais. Muitos têm visto na hermenêutica dos tribunais que se valem desses métodos, uma volta pura e simples a uma interpretação subjetivista, aquela preferida pelos sistemas autoritários ou das formas políticas que emergem de um espasmo revolucionário e fazem do novo direito a base constitutiva do ordenamento social reformado, com assento numa Constituição que lhe serve apenas de respaldo formal” (OAC:442).

É uma confissão que permite as duas constatações: as teorias interpretativas da norma jurídica, notadamente as constitucionais, são reflexos do exercício do Poder Político; uma teoria acerca dessas teorias apresenta a relação entre Poder Político e Direito.

* Texto constante do livro "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estantevirtual.com.br e estante virtual.com.br

domingo, 8 de junho de 2025

9. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA ENQUANTO INSTRUMENTO DO PODER POLÍTICO

 


  

* Honório de Medeiros


Em um sentido mais amplo, o Poder Político sempre determinará a validade e eficácia do próprio ordenamento jurídico, naquilo que ele tem de mais essencial[1].

Disse-o Michel Foucault, de forma tangencial em “Vigiar e Punir”, quando apontou a regulamentação, juntamente com a vigilância, como um dos grandes instrumentos do Poder Político no fim da era clássica (2001:153).

Tema que ele retoma, com mais profundidade, em “A Vontade de Saber”.

Disse-o, também, incisivamente, embora apontando outras causas e, quiçá, outras consequências, Nicos Poulantzas (2000: 74ss.).

Aliás, em “O Estado, o Poder, o Socialismo”, Poulantzas abordou, de forma clara, suas divergências de natureza teórica com Gilles Deleuze, mas, principalmente, com Foucault, a quem acusou de constante negligência quanto ao papel da lei na organização do Poder Político.

Entretanto, convergiram quanto ao que importa em relação aos limites deste trabalho. Neste sentido, Poulantzas foi mais enfático em apontar o papel da norma jurídica, do ordenamento jurídico enquanto instrumento do Poder Político.

Assim é que, por exemplo, mostrou-nos a aparente contradição entre a lei (e, segundo ele, não cabe estabelecer distinções entre lei e Direito, nesse caso) que, somente de forma tardia cria, no Estado capitalista, uma barreira contra a violência e seu caráter intrinsecamente repressivo no exercício do Poder Político.

Mais importante ainda, em relação a esse caráter instrumental, apontou a estrutura básica de toda forma estatal, qual seja sua edificação enquanto organização jurídica desde o direito assírio ou babilônio até, por exemplo, a constituição stalinista de 1937 apontada, na época, como uma das mais democráticas do mundo:

“esta visão (a do Direito como barreira a uma certa forma de violência) corresponde à concepção jurídico-legalista do Estado, a da filosofia política do Estado burguês estabelecido, contra a qual levantam-se Marx e Max Weber, e que não passou despercebida pelos teóricos da gestação sangrenta do Estado, Maquiavel e Hobbes” (OAC:74).

Se Foucault disse que o exercício do Poder Político nas sociedades modernas baseia-se muito menos na violência-repressão aberta do que nos mecanismos mais sutis e considerados “heterogêneos” à violência das disciplinas, e, nesse sentido, faz coro, embora jamais tenham trabalhado juntos, a Marcuse e Pierre Boudieu, principalmente este e seu conceito de violência simbólica, Nicos Poulantzas é enfático: ele considera que a lei é parte integrante da ordem repressiva e da organização da violência exercida pelo Estado.

Ainda para ele, o Estado edita a regra, pronuncia a lei e, por aí, instaura um primeiro campo de injunções, de interditos, de censura, assim criando o terreno para a aplicação e o objeto da violência. Tivesse maior conhecimento jurídico, teria acrescentado: edita a regra, interpreta-a, pronuncia a lei...

Mas Poulantzas aceita a noção Foucault-Marcuse-Bourdieu de que há uma diminuição ou retração da violência física, em certos espaços e tempo, no funcionamento e manutenção do Poder Político e uma acentuação ou aumento da inculcação ideológica (violência simbólica-interiorização da repressão).

Voltando à aparente contradição apontada acima, observa:

“A lei-regra, por meio de sua discursividade e textura, oculta as realidades político-econômicas, comporta lacunas e vazios estruturais, transpõe essas realidades para a cena política por meio de um mecanismo próprio de ocultação-inversão. Traduz assim a representação imaginária da sociedade e do poder da classe dominante. Também organiza e sanciona direitos reais das classes dominadas e comporta os compromissos materiais impostos pelas lutas populares às classes dominantes” (OAC: 82).

Desse modo, as liberdades formais, integrantes do texto de qualquer Constituição moderna, consubstanciadas em normas de caráter altamente indeterminado e princípios, aparentemente colocando limites ao exercício do Poder Político, são conquistas populares que não se concretizam em virtude de sutis mecanismos de auto-defesa manipulados pela elite, como, por exemplo, suas interpretações.

Aliás, essas normas e princípios jurídicos, sabemos, são estratagemas do Poder Político.

Não poderia ser diferente, observou Poulantzas. Os intérpretes e aplicadores da norma jurídica são categorias sociais detentoras de unidade formal própria, efeito da organização do Estado e de sua autonomia relativa, sem deixar, entretanto, de deter um lugar de classe, de reproduzir o modelo de dominação imposto pelos detentores do Poder Político, mesmo quando as conquistas populares afetam o equilíbrio imposto e obrigam o surgimento de fissuras, rupturas e divisões em seu cerne.

Por fim, apontou o que há de mais íntimo desse caráter instrumental do Direito: “Todo Estado é organizado em sua ossatura institucional de modo a funcionar (e de modo que as classes dominantes funcionem) segundo a lei e contra a lei"(OAC:83).

Paulo Lopo Saraiva, o secunda (1980:50):

“Concebendo-se, assim, o Poder Judiciário como um poder, também, de matiz política, observa-se claramente que o juiz, para decidir, obedece a uma orientação pragmática, cujo significado é definido pelo Executivo Partidário, com objetivos ideológico especificados”.

Não é necessário ficarmos adstritos a essa visão aguda, porém marxista, em relação à instrumentalização do Direito para o exercício do Poder Político.

Adam Smith, observa Losano (1979:18), emblema do capitalismo ortodoxo, afirmou, em um esboço da "Riqueza das Nações" publicado postumamente: “num país civilizado os pobres contribuem para a sua própria subsistência e para a enorme riqueza dos seus senhores”. Mais à frente: “Numa sociedade de cem mil famílias existirão talvez cem que não trabalham e que, todavia, com a violência ou com a opressão regular da lei, absorvem uma quantidade de trabalho superior à de dez mil famílias (...)”.

Ou, por outra, Edmund Burke, autor de "Reflexões sobre a Revolução Francesa", apud Norberto Bobbio: “Religião, moral, leis, privilégios, direitos do homem são os pretextos dos quais se servem os poderosos para poder governar a massa humana mobilizando e jogando com suas paixões” (1996:49).

Por fim, Bobbio lembrou: “para Hobbes o direito é expressão de quem tem o poder e, por isto, ele nega o valor à common law, que é o produto da sapiência dos juízes...” (OAC:49).

Pouco depois encontramos, no mesmo Diálogo, uma definição do Direito dada por Thomas Hobbes, que podemos considerar como típica dessa concepção: “Direito é o que aquele ou aqueles que detêm o poder soberano ordenam aos seus súditos, proclamando em público e em claras palavras que coisas eles podem fazer e quais não podem” (idem). Nada mais claro.

Assim, é fácil perceber que, em um momento específico no espaço e no tempo, o Poder Político, para esses teóricos, engendrará a produção, a interpretação e a aplicação das normas, como aconteceu, por exemplo, em episódio recente no Brasil, quando da discussão acerca da flexibilização do princípio do direito adquirido, ou melhor, das cláusulas pétreas da nossa Constituição, originado pela cobrança de contribuição previdenciária dos inativos, originando repúdio de segmentos da sociedade civil organizada.

Como dirá, também, esse mesmo Poder Político, no futuro, se essas cláusulas pétreas são eternas – como assim o propõe a Constituição[2].

Ou mesmo, para não ir tão longe, o Poder Político engendrará, através do Supremo Tribunal Federal, mutações constitucionais como a que acatou a legalidade de um fato gerador presumido, originando a cobrança antecipada do ICMS: imposto que se deve por um fato que não ocorreu.

Ora, a Constituição de 1937, da URSS, em pleno estalinismo, não era considerada democrática?

Nenhum exemplo, entretanto, na história da humanidade, parece tão importante para corroborar tudo quanto acima se afirmou quanto o véu de legalidade construído para possibilitar o III Reich.

François Rigaux  contou-nos que a história desse período da história possibilita ao estudo do Direito um excepcional laboratório:

“Assim como os policiais, os engenheiros, os militares ou os médicos, os juristas não se furtaram a emprestar sua perícia à instauração e à consolidação do regime. Sem dúvida seu concurso poderia ter sido julgado menos indispensável que o de outros técnicos, mas conservando no regime certas aparências de legalidade, eles o cobriram com um manto de honradez” (2000:107 ss).

Vale a pena transcrever um trecho acerca de outro período, no qual se menciona o papel de Carl Schmitt, visceral adversário de Hans Kelsen, na construção do conceito de “Revolução Legal”, que deu vestimenta de legalidade à usurpação do poder por Hitler:

“Segundo Carl Schmitt, que, após ter sido conselheiro dos últimos governos conservadores, será situado entre os juristas da Coroa do regime nazista, pelo menos até 1937, o acesso de Hitler ao poder foi conforme à legalidade, afirmação que só seria correta se se pudesse isolar o decreto assinado pelo Reichpräsident em 30 de janeiro de 1933 de tudo o que se seguiu. Mas ele também partilha a opinião então dominante na Alemanha segundo a qual Hitler e seu partido realizaram uma ‘revolução nacional’. As duas afirmações não são contraditórias se se aceita que a revolução tivera como sinais prenunciadores as agressões cometidas pelas milícias nazistas contra os inimigos políticos do partido e que prosseguiu com a perpetração de violências ilegais conjugada com um formalismo jurídico do qual foi dado algumas amostras. Sobre a questão da legalidade do acesso de Hitler ao poder as opiniões permanecerem divididas. A posição oficial do governo sempre foi de sustentar a regularidade do processo, mas recorrendo a uma terminologia ambígua, a de ‘revolução legal’”(OAC:110).

Rigaux contou-nos, também, a respeito do “processo Röhm” e das ilações possíveis de natureza jurídica sobre o fato:

“O fato de os membros da alta administração e os juristas da Coroa só terem percebido confusamente o alcance exato da vontade do Führer e seus laços com a ordem jurídica propriamente dita é bem ilustrado pelo processo Röhm. Trata-se, em primeiro lugar, de um acerto de contas no seio do aparelho nazista, tendo Hitler decidido, com o concurso dos SS e com o apoio tácito do exército, aniquilar o poder dos SA. O comandante destes, Röhm, e seus principais dirigentes são massacrados em 30 de junho de 1934, quando da ‘noite dos punhais’. Durante os dias seguintes, várias personalidades conservadoras, entre as quais o general Von Schleicher e sua esposa, assim como Eric Klausener, o presidente da Ação Católica, são mortos em Berlim. Num discurso pronunciado no Reichstag em 13 de julho de 1934, Hitler declara assumir a responsabilidade dos fatos, que, segundo ele, teriam sido ditados pela necessidade e que ele pôde ordenar em sua qualidade de ‘juiz supremo do povo alemão’. Todo inquérito dos culpados já fora suspenso em virtude de uma lei de 3 de julho de 1934, cujo único artigo declara abrangidos pelo estado de necessidade os fatos cometidos antes de 1º de julho de 1934 e cuja perpetração correspondia a uma imperiosa necessidade política. Os procuradores e juizes que se inclinam dessa dupla declaração de impunidade fingem não perceber que, embora seja exato que a vontade do Führer é a fonte suprema do direito e que ele se reservou uma justiça moderada, a lei de 3 de julho de 1934 é inútil e essa lei – que não é uma lei de anistia, o que teria implicado o caráter culposo dos fatos – se imiscui na função jurisdicional à qual cabe verificar se as condições do estado de necessidade do parágrafo 52 do Código Penal alemão são preenchidas. A doutrina não fica a dever, pois na Deutsche Juristen-Zeitung de 1º de agosto Carl Schimitt publica um artigo intitulado ‘O Führer salvaguarda o direito’, em que dá ênfase sobretudo à qualidade de justiceiro supremo do Führer sem detectar a menor contradição entre esta afirmação e a lei concluída às pressas dois dias depois dos fatos e adotada pelo governo do Reich, presidido pelo próprio Führer, claramente inconstitucional mas que se prevalece de um tipo de legalidade formal” (OAC:114).

Assim é que a interpretação da norma jurídica reflete o exercício do Poder Político, seja quando ousadamente se volta contra o ordenamento jurídico, seja quando acata o limite imposto pela norma jurídica no seu sentido mais literal.

Esse é o entendimento de Hans Kelsen:

“A escolha de um dos vários significados de uma norma jurídica por uma autoridade jurídica em sua função aplicadora de Direito é um ato criador de Direito. Na medida em que essa escolha não é determinada por uma norma superior, é uma função política. Pois a escolha entre os diferentes significados de uma norma jurídica, se não é determinada por uma norma superior, pode ser, e efetivamente é, determinada por outras normas não-jurídicas, isto é, por normas políticas” (2001:367).

Para Kelsen, interpretar a norma é encontrar seu significado, mas como a linguagem humana é, o mais das vezes, ambígua, pode ocorrer mais de um sentido em uma norma jurídica. Existem, segundo ele, diferentes métodos de interpretação, mas:

“Se o próprio Direito não prescreve um desses métodos, cada um deles é aplicável e pode levar a um resultado diferente do outro. Mesmo que um método seja obrigatório, ele pode fornecer significados diferentes e contraditórios” (OAC:367).

Ou seja, Hans Kelsen não cai na armadilha que pretende tornar a busca da essência de um termo sua razão de ser [3].

Na realidade, sua teoria da interpretação torna todas as outras, sejam elas de cunho jusnaturalista, sejam empiristas, falsos problemas. Para ele, a autoridade jurídica escolhe o significado que lhe pareçe conveniente e, assim, a ele atribui a força do Direito: a interpretação do Direito por essa autoridade pode ser caracterizada como interpretação política.

Esse entendimento, qual seja o de dar à norma jurídica o sentido que ela realmente possui, e, não, por todos os motivos já apresentados neste trabalho, fazer dela um cavalo de batalha, pode ser encontrado em Karl Popper. 

Com efeito Popper, ao mostrar que nosso ponto de partida, na atividade cognitiva, é sempre um problema, ou, melhor dizendo, é a tensão entre nossa expectativa e a realidade, tornou-se ácido crítico da pretensão de se transformar questões de significado em problemas filosóficos.

Ele entende que mesmo a busca de um sentido mais preciso, para este ou aquele termo, é antecedida por uma teoria que terá de ser exposta objetivamente e submetida à crítica para poder se constituir algo que valha a pena fazer parte do pensamento científico. 

É como nos diz o senso comum: em relação a um problema prático como procurar um advogado para o patrocínio de uma causa, a verdadeira questão, para o querelante, não é definir com precisão – isso é impossível – a essência do fato que o levou ao litígio: o importante é o problema que o angustia.

Da mesma forma, em relação a algo tão complexo quanto à física quântica, seria impossível fazê-la avançar se seus teóricos se detivessem na missão de definir, detalhadamente, a linguagem que a expressa.

Ao contrário, a linguagem, às vezes, é insuficiente para descrever certos fenômenos de natureza física e apela até mesmo para a licença poética, tal qual nos lembra Bachelard: o que não dizer de expressões como “princípio quântico de incerteza”?

Interessante, também, perceber o quanto Hans Kelsen e Chaïm Perelman se aproximaram no entendimento de que somente uma decisão de autoridade, ou seja, do Poder Político, termina dirimindo os conflitos que chegam aos tribunais. Textualmente:

“Se quisermos aprofundar ao máximo possível a experiência, seremos obrigados a constatar também que os raciocínios jurídicos são acompanhados por incessantes controvérsias, e isto tanto entre os mais eminentes juristas quanto entre os juizes que atuam nos mais prestigiosos tribunais. Tais desacordos, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, obrigam, o mais das vezes, depois de eliminadas as soluções despropositadas, a impor uma solução mediante autoridade, trata-se da autoridade da maioria ou daquela das instâncias superiores, as quais, aliás, na maior parte, coincidem” (Perelman, 1998:8).

[1] Acerca do enfoque político-ideológico na decisão judicial, ver SARAIVA, Paulo Lopo; “A Influência da Ciência Jurídica na Decisão Judicial; Separata da Revista Vox Legis; Vox Legis; Vol. 139; Julho de 1980.

[2] § 4º, artigo 60, da Constituição Federal. “As denominadas cláusulas pétreas estão previstas na Constituição como ‘limite ao Poder Constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte originário com relação às outras que não sejam consideradas como cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas’;” (ADIN 815-3-DF, RT 732/147).

[3] Essa armadilha conduz a elaborações como esta: “Aliás, o caráter secundário que tem sido dado à linguagem está entre as causas profundas do chamado ‘mal-estar da modernidade’, conforme acentua Lima Vaz, uma vez que ‘a vemos submetida a um gigantesco processo de instrumentalização cujo alvo parece ser a sua redução à clausura da estrutura semiótica e às regras da estrutura semântica, tornando-a tão somente objeto disponível de consumo: técnico, ideológico, midiático e outros. A linguagem deixa de ser, assim, a manifestação da natureza espiritual do pensamento e do seu inato dinamismo que lança irresistivelmente o homem na rota do Sentido absoluto. Tornada objeto e instrumento, a linguagem permanece errante no deserto do não-sentido. Dela retira-se o ato do dizer autêntico, a prolação da Palavra (logos – verbum) como diafania do Ser. O que resta é apenas o discurso sem fim sobre o sem-fim dos objetos da carência e do desejo.” (STRECK, Lênio Luiz; “Hermenêutica Jurídica e(m) Crise”; Livraria do Advogado Editora; Porto Alegre; 1ª edição; 1999; p. 231/232).

* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estantevirtual.com.br

quinta-feira, 5 de junho de 2025

8. O PODER POLÍTICO NA PRODUÇÃO, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA NORMA JURÍDICA

 



“Pois pela Arte é criado esse grande LEVIATÃ chamado NAÇÃO ou ESTADO (em latim CIVITAS) que é apenas um Homem Artificial” ... (Hobbes, “Leviatã”).


* Honório de Medeiros                   


Asseverado que parte considerável da doutrina considera que o Poder Político instaura o Direito, uma questão é crucial: qual a natureza da presença do Poder Político na produção, interpretação e aplicação da norma jurídica?

Antes de tentar responder essa indagação, por intermédio de uma conjectura, convém observar Michel Miaille e sua crítica à teoria do caráter instrumental do Estado, seja marxista, seja não-marxista (1979:125).

Com efeito, Miaille nos convida a rompermos com a concepção de que a elite usa os aparelhos do Estado, qual sejam os segmentos da Administração (Polícia, Exército, Justiça, como exemplo) para, enquanto detentores do modo de produção capitalista e, por conseguinte, dos mecanismos políticos, conter ou manipular as contradições sociais.

Também nos convida a repudiarmos a concepção conservadora de que esse mesmo Estado é instrumento de progresso, paz, e coesão social.

Assim, segundo ele, que sucumba tal concepção “tecnicista” do Direito e do Estado, veiculada tanto pelo marxismo ingênuo quanto pelo ideário burguês-liberal.

Para Miaille, o Estado não é o instrumento: ele é o “topos” onde ocorrem lutas políticas, onde se busca obter, destruir ou manter o Poder Político.

É possível convidar Miaille a um exercício reducionista: não há incongruência em perceber o caráter instrumental das ideias – e o conceito de Estado é instrumento, não o Estado em si, vez que este é uma ficção, uma apostasia – e aceitar a tese da prática de sua instrumentalização.

Esta, aliás, é a mais fecunda das hipóteses sobreviventes às refutações que o estudo pode proporcionar: a de que as teorias são instrumentos criados pelo homem na sua luta pela sobrevivência, tal qual o darwinismo, por exemplo, que explica o surgimento da linguagem a partir de uma necessidade adaptativa da espécie[1].

Como omitir, portanto, que a noção de Estado é um instrumento, uma invenção, um habitante do “Terceiro mundo” ou “Mundo 3”, no sentido popperiano do termo?

A respeito de teorias acerca do surgimento do Estado enquanto resultado de atos de Poder Político, o que ressalta seu caráter instrumental, Karl Popper  lembra Platão e sua concepção de que o “poder centralizado é organizado e se origina através de uma conquista, da subjugação de uma população sedentária agrícola por nômades ou caçadores” (1974:250).

Hipótese que, segundo Popper, foi retomada por David Hume em "Essays: Moral, Political and Literary"; Renan; Nietsche, em Genealogia da Moral”[2]; F. Oppenheimer e Karl Kautsky.

É essa instrumentalização de idéias, de estratagemas, de palavras, de ações, por parte daqueles que detêm o Poder Político, exposta por alguns teóricos, que se quer ressaltar.

Não para condenar ou aprovar, trata-se de constatar o fenômeno, chamar a atenção para ele, na mesma medida em que também se observa qual o papel fundamental prestado por essa teorias ao Poder Político, principalmente em decorrência de sua fragilidade teórica.

É o que faz Michel Foucault , em “A Verdade e as Formas Jurídicas” (1980: 75ss).

Nessa obra, ele salienta o caráter instrumental do Estado ao ressaltar, de forma um tanto quanto oblíqua, seu surgimento, aliás, seu ressurgimento na Alta Idade Média.

Foucault nos mostra que a acumulação de riquezas, o poder das armas e a constituição do poder judicial em mãos de poucos é um processo que se fortaleceu em decorrência do surgimento de alguns fenômenos, tais como a) os indivíduos passam a submeter-se a um poder externo a eles em seus litígios; b) surge a figura do procurador do rei permitindo que o poder político se apodere dos procedimentos judiciais; c) aparece a noção de infração enquanto ofensa ao Estado.

Segundo suas próprias palavras, “Há, por último, uma descoberta, uma invenção tão diabólica como a do procurador e a infração: o Estado, ou melhor, o soberano (já que não se pode falar de Estado nesta época)”.

Também é o que aponta Norbert Elias , em “A Sociedade de Corte”. No livro, em seu capítulo final, no qual analisa a sociogênese da Revolução, observa que somente é possível entender as causas da Revolução Francesa se prestarmos atenção aos deslocamentos do equilíbrio do poder que ocorreram na sociedade (2001:267).

E salienta que, em determinado momento, “essa fase de transformação latente, subterrânea e totalmente gradual na distribuição social das chances de poder (...) dá lugar a uma outra fase em que a transformação das relações sociais se acelera e a luta pelo poder se intensifica”.

Como omitir, então, a instrumentalização de ideias por cada segmento envolvido nesse processo, em sua luta pela hegemonia e a consequência que tal postura pode ter do ponto de vista do Direito?

Portanto, não é estranha ao pensamento filosófico a noção de que aqueles que detêm o Poder Político, em uma determinada circunstância histórica, concretizam esse Poder produzindo, interpretando e aplicando a norma jurídica, ou seja, instrumentalizando o Direito.

Assim a interpretação da norma jurídica é, consciente ou inconscientemente, uma ação política, seja esta legítima ou não.

Portanto, o discurso acerca do Poder Político cumpre uma função ideológica, e este é o âmago da questão: o idealismo ingênuo ou o realismo exacerbado (o positivismo jurídico) podem servir como aparato teórico de ocultamento do verdadeiro papel do Direito no processo social.

Michel Miaille identifica esse epifenômeno ao apontar a função de “ocultação”, bem como a de “arma de combate” do direito natural, da Teoria Crítica do Direito, ou o que quer que seja...).

Com efeito, Miaille  mostra que o direito racional do século XVIII, que se apresenta como ideal, eterno e universal, oculta seu real desígnio no século XIX: “permitir a passagem a um outro tipo de economia e de relações políticas e sociais, sem dizer evidentemente a favor de quem se realiza esta passagem (1979:263ss)”.

E cita Engels: “Sabemos hoje que esse reino da razão não era mais que o reino idealizado da burguesia; que a justiça eterna encontrou sua realização na justiça burguesa; que a igualdade se reduzia à igualdade burguesa face à lei; que se proclamou como um dos direitos essenciais do homem... a propriedade burguesa; e que o Estado racional, o contrato social de Rousseau, não veio ao mundo e não pode vir ao mundo a não ser sob a forma de uma república democrática burguesa”.

Finaliza Miaille: “O direito racional da Revolução Francesa é o direito do homem egoísta, da sociedade burguesa fechada sobre os seus próprios interesses”.

Em relação ao discurso ideológico engendrado pelo Poder Político enquanto arma de combate, Miaille nos convida a “tirar uma conclusão sobre este ponto, lembrando a utilidade [grifo de Miaille] não negligenciável num combate político das noções herdadas do direito natural. Não <apesar de>, mas porque esta teoria é de natureza ideológica. É preciso saber reconhecer-lhe sua utilidade prática. Outra coisa é considerá-la como uma teoria científica, quer dizer, explicativa da realidade”.

Assim é que o Poder Político (aqueles que o detêm) engendra os meios através dos quais oculta seu real propósito, qual seja o de manter-se e, quiçá, ampliar-se. Para tanto, usa ideologicamente, instrumentalmente, os aparatos teóricos à sua disposição. E concretiza (também) seu propósito de existência produzindo, interpretando e aplicando a norma jurídica.

Não sendo um teorema, mas, sim, uma conjectura, tão possível quanto a hipótese de que o Direito é um dos meios através do qual o homem se adapta ao seu ambiente social, seria interessante considerar esse fato como um mecanismo adaptativo de sobrevivência.

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[1] DENNET, Daniel C.; “A Perigosa Ideia de Darwin”; Editora Rocco; Rio de Janeiro; 1ª edição; 1998; p. 151. Dennet especula, nessa obra, acerca da possibilidade de que em tendo Darwin razão, e seu “espaço de projeto de seleção natural” correto, “todas as realizações da cultura humana – linguagem, arte, religião, ética, a própria ciência”, (serem) “artefatos (ou artefatos de artefatos...)”. É evidente o caráter metafísico de partes da teoria da evolução, mas, convém lembrar que, não menos ousada é a teoria que pretende apresentar o Direito como sistema autopoiético. Karl Popper, por sua vez, depurando esses aspectos metafísicos aludidos, recupera Samuel Buttler e denomina instrumentos teóricos como a noção de Estado de “aparelhos exossomáticos”.

[2] “Alguma horda de bestas louras, uma raça senhorial conquistadora, com uma organização guerreira... lança suas patas aterradoras, pesadamente sobre uma população que lhe é, talvez, imensamente superior, em número... (Platão)”

* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estantevirtual.com.br

terça-feira, 3 de junho de 2025

7. PODER POLÍTICO E DIREITO

 

* Honório de Medeiros



“Viu a sociedade tal qual é: as leis e a moral impotentes para com os ricos e viu na fortuna a última ratio mundi” (Honoré de Balzac acerca de Rastignac, personagem da “Comédia Humana”).


Até aqui foi firmada posição no sentido de acatarmos o primado do Realismo; da mesma forma, consideramos ser o Direito um “objeto cultural” sobre o qual a ciência se debruça objetivamente, para eliminarmos a possibilidade de uma análise do universo jurídico com fulcro em crenças subjetivas, juízos de valor, “argumentos de autoridade” ou de uma errônea aplicação da lógica indutiva.

Vimos, ainda, que tal primado se ampara, embora de forma oblíqua, na teoria kelseniana; e, por fim, afirmamos que, entre outra de suas características fundamentais, está sua extrínseca e diferenciada relação com o Poder Político, pois somente o Direito pressupõe a possibilidade do exercício da violência por determinação de alguém (ou alguns), para a consecução de uma determinada finalidade sob a aparência de legitimidade.

Essa extrínseca relação do Poder Político com o Direito espanta Norberto Bobbio naquilo que existe de inexplorado (2000:238).

Com efeito, para o autor italiano, os politicólogos e os juristas se ignoram, quando se trata das relações entre o Poder Político e o Direito.

Bobbio, inclusive, mostra que essa omissão é ainda mais presente no pensamento jurídico, apontando apenas, na época, Niklas Luhmann e sua obra “Potere e complessità sociale”, bem como M. Reale, “Law and Power and their Correlation” como exceções à regra.

Para Bobbio, a ligação entre um e outro é estreitíssima, tanto se por Direito entende-se o Direito enquanto algo objetivo, ou seja “um conjunto de normas vinculantes que se fazem valer, recorrendo-se, em última instância, à coação”, quanto “se por direito se entende o direito em sentido subjetivo” (OAC:238).

Para os propósitos deste trabalho, descartamos a possibilidade de discutirmos a natureza do Poder/Direito Subjetivo, até mesmo para criticá-la.

Ressaltamos, apenas, que nesse sentido, Poder significa capacidade, direito de postular, não Poder Político. Entretanto, em relação ao Poder Político/Direito de forma objetiva, convém logo observarmos que, para alguns estudiosos, aquele intervém neste desde o início, ou seja, a partir da confecção da norma jurídica até sua aplicação. Portanto, também na interpretação jurídica.

Essa constatação de Bobbio é corroborada por Luís Roberto Barroso, ao analisar a denominada “Teoria Crítica do Direito”, que tem como expoentes, entre outros, Michel Miaille e Luís Alberto Warat (1998:246).

Ele afirma que “A constatação inevitável, todavia, é a de que até hoje não se edificou uma teoria alternativa e substitutiva da dogmática convencional. O que significa que ela ainda não concluiu seu ciclo histórico” (idem).

Em relação à “Teoria Crítica”, Barroso entende que ela faz uma crítica da teoria, mas, ao mesmo tempo, preconiza uma atuação concreta do operador jurídico, à vista do princípio de que o papel do conhecimento não seria somente interpretar o mundo, mas transformá-lo.

Ou seja, ele teria um papel político específico.

De uma forma ou de outra, oblíqua ou diretamente, correta ou incorretamente, o pensamento de Barroso demonstra o viés do Poder Político produzindo, interpretanto e aplicando a norma jurídica.

O que nos diz a relação entre Poder Político e Direito?

A relação entre Direito e Poder Político, ainda segundo Norberto Bobbio, tanto pode ser olhada pelo ângulo do Poder como do Direito.

Bobbio nos informa que se olhado o Direito pelo ângulo do Poder, “a ordem jurídica existe apenas se existe em seu fundamento um poder capaz de mantê-la viva –, antes existe o poder e depois o direito (OAC:239); mas, se olhado pelo ângulo do Direito, como o fez Kelsen, antes existe o Direito, depois o Poder”.

Não é possível concordar com Bobbio, quanto a essa última assertiva, ou seja, que olhada a relação entre um e outro a partir do Direito, este, conforme Hans Kelsen, existiria antes do Poder Político.

Em primeiro lugar, porque quando Kelsen afirma que: “Esta norma fundamental autoriza a pessoa, ou pessoas que historicamente estabeleceram a primeira Constituição para a estatuição de normas que representam historicamente a primeira Constituição (...)”, o jusfilósofo italiano parece esquecer qual a natureza, apontada pelo autor de “Teoria Geral das Normas”, da norma fundamental: “(...) pois não é norma estabelecida, mas uma norma pressuposta. Não é positiva, estabelecida por um real ato de vontade, mas sim pressuposta no pensamento jurídico, quer dizer – como mostrado no que precedeu – uma norma fictícia” (1986:327 e segs).

Se a norma fundamental foi aceita em termos de conteúdo, ou seja, que ela seria um fato histórico decorrente do Poder Constituinte Originário, então, de qualquer forma foi o Poder Político que a instaurou, portanto a precedeu.

Poder-se-ia aceitar a afirmação de Norberto Bobbio, caso o Poder Político e Estado fossem a mesma coisa para Hans Kelsen. Não o é.

Para Kelsen, o Estado se reduz ao Direito e essa é uma inferência possível a partir do seu monismo metodológico, como afirma em “Teoria Geral do Direito e do Estado”: “A identificação de Estado e ordem jurídica é óbvia a partir do fato de que mesmo os sociólogos caracterizam o Estado como uma sociedade ‘politicamente’ organizada” (idem).

Ainda: “Estado é uma organização política por ser uma ordem que regula o uso da força, porque ela monopoliza o uso da força” (1995:191).

E, ao contrário, em relação ao Poder Político, acerca do qual expõe quando analisa o Estado enquanto dominação, observa que “A tentativa melhor sucedida de uma teoria sociológica do Estado talvez seja a interpretação da realidade social em termos de ‘dominação’” (OAC: 188).

Continua Kelsen:

“Essa teoria tem em mente a relação constituída pelo fato de um indivíduo expressar a sua vontade de que outro indivíduo se conduza de certo modo e essa expressão de sua vontade motivar o outro indivíduo a se conduzir de modo correspondente. Na vida social concreta, verifica-se uma infinidade de tais relações de motivação” (Idem).

Como como consequência de tais premissas, entra Kelsen na discussão acerca da legitimidade da ordem ou comando dado por alguém (alguns) a outro (outros) que, no seu entender, somente é possível a partir de um conceito de validade da ordem jurídica.

Desnecessário expor a respeito do caráter eufemístico da expressão “motivar”. Motivar alguém a se conduzir significa, neste contexto, determinar a ele que se conduza dessa ou daquela forma; significa impor uma conduta, obrigar, nada além.

Ainda por cima, convém expor a fragilidade da concepção de que o Direito age como barreira e/ou contenção do Poder Político na medida em que se constituiria, em essência, para além do seu caráter formal, de normas justas, validadas por princípios éticos. Ou seja, o Direito daria legitimidade ao Poder Político, quando calcado em normas justas.

Aqui podemos constatar um vício de origem que tem, como fulcro, o desconhecimento daquilo que Karl Popper  chamou de dualismo crítico (ou convencionalismo crítico), e que seria uma etapa superior no entendimento acerca da distinção entre lei natural e lei normativa (1974:70...).

Com efeito, para largo segmento da comunidade científica, uma lei natural “descreve um fato regular, estrito e invariável, que ou efetivamente se realiza na natureza (e nesse caso a lei é uma afirmativa verdadeira), ou não se realiza (e nesse caso é falsa)”; uma lei normativa, ao contrário, pode ser modificada pelos homens, reforçada, mas nunca dizer o verdadeiro e o falso, pois não descreve um fato, impõe uma conduta (Idem).

Essa simples distinção, oriunda do gênio grego (Popper fala em Píndaro, poeta tebano, por citação de Platão) deveria ser um critério demarcatório, por si somente, entre jusnaturalismo e positivismo para quem, por exemplo, advoga a tese segundo a qual a norma jurídica tem, como fonte, a natureza das coisas, expressão ambígua que pode significar “sociedade”, “relações sociais”, “meio social”, ou a própria “realidade natural”.

Crer na possibilidade de a “natureza das coisas” nos impor decisões é acreditar que dela podemos extrair normas jurídicas quando, na realidade, nós é que nela introduzimos nosso discurso de Poder Político.

Paradigma de tal crença é, por exemplo, a definição de Direito que Montesquieu expressa em seu Espírito das Leis: “As leis são as relações necessárias que decorrem da natureza das coisas”.

“Natureza das coisas” que Norberto Bobbio entende estreitamente aparentada com “natureza do homem”, ambas pretensas fontes do Direito (1995:176).

Aliás, tal crença constitui-se no que se denomina, em lógica, de “falácia naturalista”, e é a “convicção ilusória de poder extrair da constatação de uma certa realidade, uma regra de conduta, que implica em um juízo de valor” (OAC:177).
Persistir nesse caminho põe Norberto Bobbio em apuros teóricos por ele mesmo apontados:

“À objeção segundo a qual a legitimação que transforma um poder de fato em poder de direito é um evento não originário mas derivado, e que na origem, o poder que institui um grupo político é sempre um poder de fato, como mostram os casos extremos do usurpador no interior de um sistema autocrático, da ditadura revolucionária na passagem de um grupo autocrático para um grupo democrático, da ditadura contra-revolucionária na passagem de um grupo democrático para um grupo autocrático, pode-se responder que tanto as usurpações quanto as ditaduras são eventos temporários, e dão vida a um sistema de poder duradouro apenas se o seu respectivo poder for institucionalizado, definitivamente regulado também ele pelo direito” (2000:236). 

Ora, Bobbio parece esquecer que, em ciência, um fato que negue a hipótese conjecturada a refuta.

Por isso, ele elabora essa “hipótese ad-hoc” especificamente para salvar uma teoria em apuros: a de que tais eventos, como os apontados acima, não merecem ser considerados por serem temporários. Seria o mesmo que aceitar, por exemplo, que o descumprimento de expectativas relacionadas a uma lei física não a refutasse. Tal comportamento não é científico.

Observe-se, em contraposição, o rigor teórico do formalismo kelseniano: sua “Teoria Pura do Direito” é uma conjectura científica, pois faz asserções, proposições, descrições, juízos de fato acerca do seu objeto específico, o Direito, que serão verificados, falsificados, testados, enfim, criticados. E propõe, ao final, uma apurada técnica interpretativa.

Entretanto, não pretende Kelsen que as sentenças judiciais, que são normas jurídicas, sejam verdadeiras ou falsas no sentido da Ciência, tampouco justas ou injustas, não se trata disso: elas são opções de política institucional.

Ou seja, em síntese, o homem diz a moral, e, não, o contrário. Também, neste sentido, temos a teoria de Chaïm Perelman que, mesmo partindo de pressupostos distintos, expõe, como se pretendeu demonstrar, uma das formas, a retórica, através da qual o Direito se instaura enquanto instância do Poder Político, corroborando, portanto, o entendimento de que a interpretação pode ser uma estratégia política: as premissas das quais se parte para desenvolver o discurso jurídico são verossímeis, mas, não necessariamente, verdadeiras.

Por outro lado, não é possível a existência do Direito sem o Estado e, nesse sentido, concordam marxistas e Kelsen.

Com efeito, embora por razões distintas, tanto os marxistas quanto Kelsen não aceitam a ideia de que o Direito pudesse existir, por exemplo, quando os homens vagavam pela terra em bandos e vivendo de caça, coleta e alguma agricultura no assim denominado, por Engels, período “bárbaro” (1997:24).

A ideia de que o Direito pudesse existir antes do Estado repousa em trabalhos de etnólogos e sociólogos defendendo que os costumes anteriores ao surgimento do Estado poderiam ser considerados como tendo natureza jurídica, por contemplarem meios de constrangimento para assegurar sua observância[1].

Tais estudos que mais recentemente permitiram, utilizando-se o mesmo princípio por analogia, encontrar normas jurídicas produzidas em favelas[2], nada mais fazem que confundi-las com normas de dominação, normas, enfim, pois contendo preceito e sanção, mas nunca jurídicas por lhes faltarem, por um lado, um critério de validade que somente a existência do Estado poderia lhes assegurar, tal qual lembra Kelsen, e, pelo outro, aquela condição real das relações de produção, a divisão social do trabalho, a acumulação de riquezas, o surgimento, enfim, da sociedade de classes, que ensejaria, somente então, o aparecimento da norma jurídica estatal (1995:188).

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[1] Ver GILISSEN, John; “Introdução Histórica ao Direito”; Fundação Calouste Gulbenkian; Lisboa, Portugal; 1ª edição; 1988; p. 36.

[2] Ver “Notas sobre a História Jurídico-Social de Pasárgada”, de SANTOS, Boaventura de Sousa (SOUTO e FALCÃO; Cláudio e Joaquim; “Sociologia e Direito”; Editora Pioneira; São Paulo; 2. Edição; 1999; p. 87).

* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estantevirtual.com.br

segunda-feira, 2 de junho de 2025

6. CARACTERÍSTICAS DO DIREITO: A NORMA JURÍDICA E SUA RELAÇÃO COM O PODER POLÍTICO

  


* Honório de Medeiros


“Hipóteses são redes; quem as lança, colherá” (Pólen; Novalis).

Faz parte da psicologia do conhecimento o processo de distinguir para conhecer[1].

Conhecemos por que distinguimos e nossas conjecturas e elas sobrevivem às críticas, nos moldes descritos na Teoria da Seleção Natural, de Charles Darwin.  

Karl Popper distinguiu entre objetos do Primeiro, Segundo e Terceiro mundos: o mundo material (que existe independente do homem); o mental ou disposicional (estados mentais, propensões para agir, etc.); e o das teorias e suas relações lógicas, dos argumentos em si mesmos, etc.

Podemos distinguir, dentre esses objetos do Terceiro Mundo, a Música, o Direito, a Arte, a Linguagem – todos eles objetos culturais que diferem entre si em razão de suas peculiaridades.

Embora a existência desses objetos culturais decorra da presença do homem na face da terra, o que lhes imputa a identidade de fenômenos sociais  - em relação ao Direito, já o intuíra o gênio romano: “ubi societas, ibi jus” -, este tem características, peculiaridades que lhe são próprias e que o tornam distinto de seus congêneres.


A CARACTERÍSTICA INTRÍNSECA ESPECÍFICA DO DIREITO: A NORMA JURÍDICA


É característica intrínseca do Direito, constitui-se algo estrutural seu, a presença da norma jurídica, descrita por Kelsen lembrando que a “a definição da norma jurídica, assinala sua especificidade em comparação às outras normas sociais” (1995: 11-12).

Não qualquer norma, pois em assim sendo, não haveria como distingui-lo da Moral. Ou seja, o que há de específico no Direito que o distingue de outros fenômenos sociais é a norma jurídica, oriunda do Estado, enquanto uma determinação de conduta para cujo descumprimento se prevê uma sanção.

É impossível a existência do Direito sem a norma jurídica, pois, então, ele se descaracterizaria enquanto tal.

Miguel Reale, em sua ontologia jurídica, diz-nos ser o Direito “norma”, “fato” e “valor”. Entretanto, assinala Maia, “fato” e “valor”, além de serem elementos comuns à Moral ou Sociologia, somente têm relevância no mundo jurídico se informados pela norma jurídica, a ela “subsumidos”. (2000:38).

É a lição de Hans Kelsen,sempre esquecida. Assim é que Kelsen lembra a estrutura da norma jurídica:

“uma ordem, e principalmente uma ordem que se qualifica como norma, pressupõe dois indivíduos: um que ordena, que dá a ordem, fixa a norma, e um outro, ao qual a ordem é dirigida, ao qual alguma coisa é imposta, um indivíduo cuja conduta a norma prescreve, estabelece como devida” (1986:1). 

A isso acresça-se, segundo sua lição, a sanção pelo seu descumprimento e sua origem estatal.

Se a norma jurídica e sua especificidade permitem um estudo próprio - uma ciência jurídica da qual nos fala Kelsen, “pura”, pois constituída de asserções ou proposições lógicas acerca do seu peculiar objeto, e, não, de autos-de-fé[2], crenças subjetivas, o mesmo se pode dizer quanto às causas e conseqüências de sua existência enquanto ordenamento em um ambiente social.

A norma jurídica é objeto da ciência jurídica: o ordenamento, da ciência social.

Teríamos, então, utilizando a imagem que os efeitos de uma pedra lançada na superfície de um lago plácido origina, um círculo concêntrico específico contido por outro maior, uma ciência contendo outra.

Talvez nada explique melhor esse emaranhado epistemológico que uma metáfora, qual seja a do jogo de xadrez. Convém observar, entretanto, que aqui o seu sentido difere daquele empregado por Alf Ross ao utilizar a mesma metáfora. Em sua obra, ela é utilizada para propor um conceito de “direito vigente”; aqui, ela se presta a demonstrar os elos entre a norma jurídica enquanto objeto e o ordenamento jurídico, na qualidade de fato social, enquanto preocupação da Ciência (2000:34ss) .

Suponhamos dois circunstantes que se disponham a jogar uma partida de xadrez. Para iniciá-la, deverão estar previamente concordes quanto às regras a serem seguidas. Sabem que descumpri-las é fatal: haverá sanção (no jogo de damas, cartas, ou outro qualquer, as regras surgirão, também, através de acordo preliminar, de “pacto social”).

Uma vez iniciada a partida, ela desenvolver-se-á em dois planos: no primeiro, de natureza formal, sob a égide de regras que disciplinam o jogo, e que são oriundas de fatores a ele externos, tais como as decisões da Federação Internacional de Xadrez (FIDE), entidade que congrega e ordena a atividade enxadrística no âmbito internacional, ou mesmo o regulamento do torneio – previamente acertado - do qual estão participando os contendores; no segundo, serão observadas, pelos contendores, regras (técnicas) imanentes à própria disputa, ao jogo-em-si, descobertas ao longo do tempo pelos estudiosos, para que se obtenha a vitória almejada, mas somente existentes e atuantes nos limites estabelecidos pelas regras de natureza formal: noções estratégicas e táticas.

O Observador Cognoscente pode analisar esse Objeto Cognoscível (o jogo, a partida sendo desenvolvida) distintamente: na primeira, enquanto não-participante, ao se perguntar acerca da história dessa disputa, as causas e conseqüências da sua existência, o seu papel social, a psicologia dos participantes, sua finalidade última ou primeira (no plano metafísico) e, nesse caso, estará trabalhando, enquanto historiador, psicólogo, sociólogo ou filósofo, externamente ao fenômeno.
 
A segunda maneira, enquanto participante, seja no Xadrez, seja no Direito, impõe raciocínio dedutivo a esse Observador Cognoscente às voltas com aquelas regras impostas de fora para dentro pela FIDE (Federação Internacional de Xadrez) ou pelo ordenamento jurídico positivo (pacto social, Constituição): as premissas do raciocínio são as normas existentes.

Assim o é no Direito e no Xadrez, do qual este pode ser uma metáfora daquele, do ponto-de-vista formal.


CARACTERÍSTICA EXTRÍNSECA ESPECÍFICA DO DIREITO: A PRESENÇA DO PODER POLÍTICO 


Se, para Kelsen, bem como para outros pensadores, aquilo que caracteriza especificamente o Direito, em uma perspectiva intrínseca a ele, é a norma jurídica, em uma perspectiva extrínseca essa característica é sua relação com o Poder Político do qual ele, o Direito, por sua vez, parece ser uma característica intrínseca.

Ou seja, a norma jurídica está para o Direito, da mesma forma que o Direito está para a Sociologia Política (Ciência Política).

Talvez, em um exercício audacioso de conjectura, possamos ousar dizendo que a norma jurídica está para o Direito como o elétron está para o átomo; e que o Direito está para o Poder Político, como o átomo para a matéria.

Poder Político que, lembra Bobbio, é “o sumo poder ou poder soberano, cuja posse distingue, em toda sociedade organizada, a classe dominante” (2000:221).

A relação entre Poder Político e Direito permeia, como um viés oculto, mas onipresente enquanto “leitura extrínseca”, toda a “Teoria Pura do Direito”, de Hans Kelsen: “O dever-ser – a norma – é o sentido de um querer, de um ato de vontade, e – se a norma constitui uma prescrição, uma mandamento – é o sentido de um ato dirigido à conduta de outrem, de um ato, cujo sentido é que um outro (ou outros), deve (ou devem) conduzir-se de determinado modo" (OAC:3).

Outra não é a posição de Norberto Bobbio.  Este autor, ao discorrer acerca da estrutura da norma fundamental observa, acerca das críticas ao seu conteúdo, que o poder originário (poder constituinte) que a instaura é “o conjunto das força políticas que num determinado momento histórico tomaram o domínio e instauraram um novo ordenamento jurídico”... (1997:65).

Repudia Bobbio a teoria que pretende confundir Poder Político com Força para criticar o Poder Constituinte originário e sua norma fundamental. Lembra ele que Poder nem sempre se confunde com Força, embora dele não prescinda, ao comentar que o Poder Constituinte Originário pode instaurar a norma fundamental de forma consensual. Discordamos: pode faze-lo apenas, por deter a possibilidade de utilizar a força. Ou seja, essa possibilidade de utilização esteve implícita:

“Quando a norma fundamental diz que se deve obedecer ao poder originário, não deve absolutamente ser interpretada no sentido de que devemos nos submeter à violência, mas no sentido de que devemos nos submeter àqueles que têm o poder coercitivo. Mas este poder coercitivo pode estar na mão de alguém por consenso geral. Os detentores do poder são aqueles que têm a força necessária para fazer respeitar as normas que deles emanam. Nesse sentido, a força é um instrumento necessário do poder”(OAC:65).

Essa característica extrínseca específica, qual seja a relação entre Poder Político e Direito é uma conjectura exposta enquanto asserção, proposição acerca do “Real”, passível de ser submetida à crítica para ser aceita pela ciência, nos moldes propostos por Karl Popper em sua epistemologia sem Sujeito Cognoscente, critério de demarcação entre ciência e não-ciência, enfim, sua metodologia científica.

A distinção entre o caráter extrínseco e intrínseco do Direito é, com variações sutis, aceita e comentada por Paulo Bonavides, quando ele analisa o que denomina de concepção tradicional de sistema no Direito: sistema extrínseco e sistema intrínseco:

“Mas nos sistema extrínseco, o teórico constrói, dogmatiza e impõe a lógica ao Direito, ao passo que no sistema intrínseco, ainda o de natureza formal, como o de Kelsen, a lógica, ao contrário, está no próprio Direito, no ordenamento dotado de racionalidade à espera de revelação, racionalidade que já existe e independente dos meios lógicos do sujeito cognoscente, o qual, até mesmo por insuficiência de compreensão, poderá pelo discurso deixar de reproduzí-lo com fidelidade, falseando assim a base intrinsecamente lógica ou dedutível da ordem jurídica” (1994:92).

Não por outro motivo a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, pretende ser plenamente científica. Com efeito, nela trata-se o direito como de fato ele o é, não como deveria sê-lo, razão pela qual seu objetivo foi encontrar a estrutura daquilo que, no espaço e no tempo, ou seja, historicamente, caracterizou o fenômeno jurídico. O que seria isso, ou seja, qual essa característica onipresente no fenômeno jurídico?

Kelsen se pergunta assim:

“O que o assim-chamado Direito dos antigos babilônios tem em comum com o – igualmente assim-chamado – Direito que prevalece hoje nos Estados Unidos? O que pode a ordem social de uma tribo negra, sob a liderança de um chefe despótico, ter em comum com a constituição da República suíça? Ainda assim há um elemento comum que justifica essa terminologia, que permite à palavra ‘Direito’ surgir como a expressão de um conceito com um significado social muito importante. Pois a palavra refere-se à técnica social específica de uma ordem coercitiva, que, apesar das enormes diferenças entre o Direito da antiga Babilônia e o dos Estados Unidos de hoje, entre o Direito dos ashantis da África Ocidental e o Direito da Suíça, na Europa, é essencialmente a mesma para todos esses povos que diferem tão amplamente em tempo, lugar e cultura – a técnica social que consiste em ocasionar a conduta social desejada dos homens por meio da ameaça de coerção no caso de conduta contrária” (idem).

Em síntese: o Poder Político.

[1] “Foi assim que Deus procedeu diante do caos primitivo (Gn 1, v. 2). Ele separa, distingue: a luz das trevas, a terra do céu etc” (IDE, Pascal; “A Arte de Pensar”; Martins Fontes; São Paulo; 1ª edição; 1995; p. 165).

[2] Kelsen diz: “A luta não se trava na verdade – como as aparências sugerem – pela posição da Jurisprudência dentro da ciência e pelas conseqüências que daí resultam, mas pela relação entre a ciência jurídica e a política, pela rigorosa separação entre uma e outra, pela renúncia ao enraizado costume de, em nome da ciência do Direito e, portanto, fazendo apelo a uma instância objectiva, advogar postulados políticos que apenas podem ter carácter altamente subjetivo, mesmo que surjam, com a melhor das boas fés, como ideal de uma religião, de uma nação ou de uma classe” (KELSEN, Hans; “Teoria Pura do Direito”; Armênio Amado Editora; Coimbra; 6ª edição; 1984; p. 8).

* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estante virtual.com.br