* Honório de Medeiros
“Viu a sociedade tal qual é: as leis e a moral impotentes para com os ricos e viu na fortuna a última ratio mundi” (Honoré de Balzac acerca de Rastignac, personagem da “Comédia Humana”).
Até aqui foi firmada posição no sentido de acatarmos o primado do Realismo; da mesma forma, consideramos ser o Direito um “objeto cultural” sobre o qual a ciência se debruça objetivamente, para eliminarmos a possibilidade de uma análise do universo jurídico com fulcro em crenças subjetivas, juízos de valor, “argumentos de autoridade” ou de uma errônea aplicação da lógica indutiva.
Vimos, ainda, que tal primado se ampara, embora de forma oblíqua, na teoria kelseniana; e, por fim, afirmamos que, entre outra de suas características fundamentais, está sua extrínseca e diferenciada relação com o Poder Político, pois somente o Direito pressupõe a possibilidade do exercício da violência por determinação de alguém (ou alguns), para a consecução de uma determinada finalidade sob a aparência de legitimidade.
Essa extrínseca relação do Poder Político com o Direito espanta Norberto Bobbio naquilo que existe de inexplorado (2000:238).
Com efeito, para o autor italiano, os politicólogos e os juristas se ignoram, quando se trata das relações entre o Poder Político e o Direito.
Bobbio, inclusive, mostra que essa omissão é ainda mais presente no pensamento jurídico, apontando apenas, na época, Niklas Luhmann e sua obra “Potere e complessità sociale”, bem como M. Reale, “Law and Power and their Correlation” como exceções à regra.
Para Bobbio, a ligação entre um e outro é estreitíssima, tanto se por Direito entende-se o Direito enquanto algo objetivo, ou seja “um conjunto de normas vinculantes que se fazem valer, recorrendo-se, em última instância, à coação”, quanto “se por direito se entende o direito em sentido subjetivo” (OAC:238).
Para os propósitos deste trabalho, descartamos a possibilidade de discutirmos a natureza do Poder/Direito Subjetivo, até mesmo para criticá-la.
Ressaltamos, apenas, que nesse sentido, Poder significa capacidade, direito de postular, não Poder Político. Entretanto, em relação ao Poder Político/Direito de forma objetiva, convém logo observarmos que, para alguns estudiosos, aquele intervém neste desde o início, ou seja, a partir da confecção da norma jurídica até sua aplicação. Portanto, também na interpretação jurídica.
Essa constatação de Bobbio é corroborada por Luís Roberto Barroso, ao analisar a denominada “Teoria Crítica do Direito”, que tem como expoentes, entre outros, Michel Miaille e Luís Alberto Warat (1998:246).
Ele afirma que “A constatação inevitável, todavia, é a de que até hoje não se edificou uma teoria alternativa e substitutiva da dogmática convencional. O que significa que ela ainda não concluiu seu ciclo histórico” (idem).
Em relação à “Teoria Crítica”, Barroso entende que ela faz uma crítica da teoria, mas, ao mesmo tempo, preconiza uma atuação concreta do operador jurídico, à vista do princípio de que o papel do conhecimento não seria somente interpretar o mundo, mas transformá-lo.
Ou seja, ele teria um papel político específico.
De uma forma ou de outra, oblíqua ou diretamente, correta ou incorretamente, o pensamento de Barroso demonstra o viés do Poder Político produzindo, interpretanto e aplicando a norma jurídica.
O que nos diz a relação entre Poder Político e Direito?
A relação entre Direito e Poder Político, ainda segundo Norberto Bobbio, tanto pode ser olhada pelo ângulo do Poder como do Direito.
Bobbio nos informa que se olhado o Direito pelo ângulo do Poder, “a ordem jurídica existe apenas se existe em seu fundamento um poder capaz de mantê-la viva –, antes existe o poder e depois o direito (OAC:239); mas, se olhado pelo ângulo do Direito, como o fez Kelsen, antes existe o Direito, depois o Poder”.
Não é possível concordar com Bobbio, quanto a essa última assertiva, ou seja, que olhada a relação entre um e outro a partir do Direito, este, conforme Hans Kelsen, existiria antes do Poder Político.
Em primeiro lugar, porque quando Kelsen afirma que: “Esta norma fundamental autoriza a pessoa, ou pessoas que historicamente estabeleceram a primeira Constituição para a estatuição de normas que representam historicamente a primeira Constituição (...)”, o jusfilósofo italiano parece esquecer qual a natureza, apontada pelo autor de “Teoria Geral das Normas”, da norma fundamental: “(...) pois não é norma estabelecida, mas uma norma pressuposta. Não é positiva, estabelecida por um real ato de vontade, mas sim pressuposta no pensamento jurídico, quer dizer – como mostrado no que precedeu – uma norma fictícia” (1986:327 e segs).
Se a norma fundamental foi aceita em termos de conteúdo, ou seja, que ela seria um fato histórico decorrente do Poder Constituinte Originário, então, de qualquer forma foi o Poder Político que a instaurou, portanto a precedeu.
Poder-se-ia aceitar a afirmação de Norberto Bobbio, caso o Poder Político e Estado fossem a mesma coisa para Hans Kelsen. Não o é.
Para Kelsen, o Estado se reduz ao Direito e essa é uma inferência possível a partir do seu monismo metodológico, como afirma em “Teoria Geral do Direito e do Estado”: “A identificação de Estado e ordem jurídica é óbvia a partir do fato de que mesmo os sociólogos caracterizam o Estado como uma sociedade ‘politicamente’ organizada” (idem).
Ainda: “Estado é uma organização política por ser uma ordem que regula o uso da força, porque ela monopoliza o uso da força” (1995:191).
E, ao contrário, em relação ao Poder Político, acerca do qual expõe quando analisa o Estado enquanto dominação, observa que “A tentativa melhor sucedida de uma teoria sociológica do Estado talvez seja a interpretação da realidade social em termos de ‘dominação’” (OAC: 188).
Continua Kelsen:
“Essa teoria tem em mente a relação constituída pelo fato de um indivíduo expressar a sua vontade de que outro indivíduo se conduza de certo modo e essa expressão de sua vontade motivar o outro indivíduo a se conduzir de modo correspondente. Na vida social concreta, verifica-se uma infinidade de tais relações de motivação” (Idem).
Como como consequência de tais premissas, entra Kelsen na discussão acerca da legitimidade da ordem ou comando dado por alguém (alguns) a outro (outros) que, no seu entender, somente é possível a partir de um conceito de validade da ordem jurídica.
Desnecessário expor a respeito do caráter eufemístico da expressão “motivar”. Motivar alguém a se conduzir significa, neste contexto, determinar a ele que se conduza dessa ou daquela forma; significa impor uma conduta, obrigar, nada além.
Ainda por cima, convém expor a fragilidade da concepção de que o Direito age como barreira e/ou contenção do Poder Político na medida em que se constituiria, em essência, para além do seu caráter formal, de normas justas, validadas por princípios éticos. Ou seja, o Direito daria legitimidade ao Poder Político, quando calcado em normas justas.
Aqui podemos constatar um vício de origem que tem, como fulcro, o desconhecimento daquilo que Karl Popper chamou de dualismo crítico (ou convencionalismo crítico), e que seria uma etapa superior no entendimento acerca da distinção entre lei natural e lei normativa (1974:70...).
Com efeito, para largo segmento da comunidade científica, uma lei natural “descreve um fato regular, estrito e invariável, que ou efetivamente se realiza na natureza (e nesse caso a lei é uma afirmativa verdadeira), ou não se realiza (e nesse caso é falsa)”; uma lei normativa, ao contrário, pode ser modificada pelos homens, reforçada, mas nunca dizer o verdadeiro e o falso, pois não descreve um fato, impõe uma conduta (Idem).
Essa simples distinção, oriunda do gênio grego (Popper fala em Píndaro, poeta tebano, por citação de Platão) deveria ser um critério demarcatório, por si somente, entre jusnaturalismo e positivismo para quem, por exemplo, advoga a tese segundo a qual a norma jurídica tem, como fonte, a natureza das coisas, expressão ambígua que pode significar “sociedade”, “relações sociais”, “meio social”, ou a própria “realidade natural”.
Crer na possibilidade de a “natureza das coisas” nos impor decisões é acreditar que dela podemos extrair normas jurídicas quando, na realidade, nós é que nela introduzimos nosso discurso de Poder Político.
Paradigma de tal crença é, por exemplo, a definição de Direito que Montesquieu expressa em seu Espírito das Leis: “As leis são as relações necessárias que decorrem da natureza das coisas”.
“Natureza das coisas” que Norberto Bobbio entende estreitamente aparentada com “natureza do homem”, ambas pretensas fontes do Direito (1995:176).
Aliás, tal crença constitui-se no que se denomina, em lógica, de “falácia naturalista”, e é a “convicção ilusória de poder extrair da constatação de uma certa realidade, uma regra de conduta, que implica em um juízo de valor” (OAC:177).
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Persistir nesse caminho põe Norberto Bobbio em apuros teóricos por ele mesmo apontados:
“À objeção segundo a qual a legitimação que transforma um poder de fato em poder de direito é um evento não originário mas derivado, e que na origem, o poder que institui um grupo político é sempre um poder de fato, como mostram os casos extremos do usurpador no interior de um sistema autocrático, da ditadura revolucionária na passagem de um grupo autocrático para um grupo democrático, da ditadura contra-revolucionária na passagem de um grupo democrático para um grupo autocrático, pode-se responder que tanto as usurpações quanto as ditaduras são eventos temporários, e dão vida a um sistema de poder duradouro apenas se o seu respectivo poder for institucionalizado, definitivamente regulado também ele pelo direito” (2000:236).
Ora, Bobbio parece esquecer que, em ciência, um fato que negue a hipótese conjecturada a refuta.
Por isso, ele elabora essa “hipótese ad-hoc” especificamente para salvar uma teoria em apuros: a de que tais eventos, como os apontados acima, não merecem ser considerados por serem temporários. Seria o mesmo que aceitar, por exemplo, que o descumprimento de expectativas relacionadas a uma lei física não a refutasse. Tal comportamento não é científico.
Observe-se, em contraposição, o rigor teórico do formalismo kelseniano: sua “Teoria Pura do Direito” é uma conjectura científica, pois faz asserções, proposições, descrições, juízos de fato acerca do seu objeto específico, o Direito, que serão verificados, falsificados, testados, enfim, criticados. E propõe, ao final, uma apurada técnica interpretativa.
Entretanto, não pretende Kelsen que as sentenças judiciais, que são normas jurídicas, sejam verdadeiras ou falsas no sentido da Ciência, tampouco justas ou injustas, não se trata disso: elas são opções de política institucional.
Ou seja, em síntese, o homem diz a moral, e, não, o contrário. Também, neste sentido, temos a teoria de Chaïm Perelman que, mesmo partindo de pressupostos distintos, expõe, como se pretendeu demonstrar, uma das formas, a retórica, através da qual o Direito se instaura enquanto instância do Poder Político, corroborando, portanto, o entendimento de que a interpretação pode ser uma estratégia política: as premissas das quais se parte para desenvolver o discurso jurídico são verossímeis, mas, não necessariamente, verdadeiras.
Por outro lado, não é possível a existência do Direito sem o Estado e, nesse sentido, concordam marxistas e Kelsen.
Com efeito, embora por razões distintas, tanto os marxistas quanto Kelsen não aceitam a ideia de que o Direito pudesse existir, por exemplo, quando os homens vagavam pela terra em bandos e vivendo de caça, coleta e alguma agricultura no assim denominado, por Engels, período “bárbaro” (1997:24).
A ideia de que o Direito pudesse existir antes do Estado repousa em trabalhos de etnólogos e sociólogos defendendo que os costumes anteriores ao surgimento do Estado poderiam ser considerados como tendo natureza jurídica, por contemplarem meios de constrangimento para assegurar sua observância[1].
Tais estudos que mais recentemente permitiram, utilizando-se o mesmo princípio por analogia, encontrar normas jurídicas produzidas em favelas[2], nada mais fazem que confundi-las com normas de dominação, normas, enfim, pois contendo preceito e sanção, mas nunca jurídicas por lhes faltarem, por um lado, um critério de validade que somente a existência do Estado poderia lhes assegurar, tal qual lembra Kelsen, e, pelo outro, aquela condição real das relações de produção, a divisão social do trabalho, a acumulação de riquezas, o surgimento, enfim, da sociedade de classes, que ensejaria, somente então, o aparecimento da norma jurídica estatal (1995:188).
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[1] Ver GILISSEN, John; “Introdução Histórica ao Direito”; Fundação Calouste Gulbenkian; Lisboa, Portugal; 1ª edição; 1988; p. 36.
[2] Ver “Notas sobre a História Jurídico-Social de Pasárgada”, de SANTOS, Boaventura de Sousa (SOUTO e FALCÃO; Cláudio e Joaquim; “Sociologia e Direito”; Editora Pioneira; São Paulo; 2. Edição; 1999; p. 87).
* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estantevirtual.com.br