* Honório de Medeiros
A EPISTEMOLOGIA SEM SUJEITO COGNOSCENTE
É
em decorrência dessa ontognosiologia ou, melhor dizendo, é acatando a afirmação de caráter ontológico de Karl Popper, qual seja, a de que a Realidade é
constituída de três subuniversos; que o “Terceiro Mundo” ou “Mundo 3” é
habitado por “objetos” de intrínseca natureza cultural; e
que o conhecimento objetivo cresce na medida de nossa interação (o Sujeito Cognoscente) com o conteúdo do “Terceiro Mundo” ou “Mundo 3” (Objeto Cognoscível),
que pode ser entendida sua epistemologia e a importância que ela assume para a
crítica às teorias interpretativas cujas premissas sejam “auto-evidentes”, ou
“evidentes em si mesmas”, como é o caso daquelas de caráter subjetivistas.
Ou
seja, citando Popper: “a epistemologia tradicional, com sua concentração no
‘Segundo Mundo’, ou no conhecimento no sentido subjetivo, é irrelevante para o
estudo do conhecimento científico”.
Ainda:
“os cientistas agem com base numa suposição ou, se preferirdes, numa crença
subjetiva (pois assim podemos chamar a base subjetiva de uma ação) referente
[apenas] ao que é promissor em termos de crescimento iminente no Terceiro Mundo
do conhecimento objetivo” (OAC:113).
Por
que falham as teorias subjetivistas do conhecimento? Popper nos diz que falham
por várias razões, dentre as quais, a mais importante, é supor que todo o
conhecimento é subjetivo ou que ele somente é possível a partir da observação
ou da experiência sensorial, ou seja, aquilo mesmo acerca do qual nos falou
Gaston Bachelard quando pediu que nos acautelássemos tanto com o Idealismo
ingênuo, quanto com o Realismo exacerbado.
Contra essas teorias subjetivistas, Popper defende que o conhecimento não é o mesmo que meu conhecimento – ao contrário do que se acredita, ele é resultado da absorção de tradições (senso comum) e pensamento crítico.
Por exemplo: saber
onde se localiza a garagem da própria casa é o meu conhecimento, resulta de
minha própria experiência. Entretanto, essa experiência é resultante da apropriação
intelectiva da tradição (senso comum) e não da observação.
No fundo, o subjetivista crê que o senso comum ou a experiência decorreram da observação. Entretanto, para Popper, tomando-se por base as ciências biológicas, “é muito possível acreditar-se que o homem, assim como os animais e, mesmo, os insetos, nasçam com tradição ou instinto inatos”(1987:118).
Evidente
que poderia alegar-se que esse conhecimento inato seria oriundo de
observações de gerações anteriores. Tal afirmativa não procede, vez que, de
há muito, a ciência já escanteou o “lamarquismo” e sua crença na “experiência
observacional individualmente adquirida”, ou seja, nas mudanças ocasionadas por
fatores exógenos ao indivíduo, optando pelo darwinismo.
O darwinismo, ao contrário do lamarquismoe, entende que o conhecimento resulta de uma “avaliação”
interna em relação a expectativas não satisfeitas quanto ao mundo exterior.
Diz
Popper:
“O análogo psicológico, ou biológico, de uma hipótese, pode ser descrito como uma expectativa ou antecipação de um acontecimento. Essa expectativa ou antecipação pode ser consciente ou inconsciente. Consiste na prontidão do organismo para agir, ou reagir, em resposta a uma situação de um certo gênero específico. Consiste na ativação (parcial) de certas disposições.
Exemplos
clássicos da maneira como expectativas inconscientes se podem tornar
conscientes são: falhar um degrau ("Pensei que não houvesse aqui nenhum
degrau"), ou ouvir um relógio parar ("Não me apercebia de ouvi-lo trabalhar, mas ouvi-o quando parou").
O
nosso organismo estava a antecipar, inconscientemente, certos acontecimentos, e
só ficamos conscientes do fato depois que as nossas expectativas foram frustradas, ou falsificadas.
Este
estar preparado de forma disposicional para o que há de vir parece ser o
verdadeiro análogo biológico do conhecimento científico. Num organismo animal,
as disposições para reagir de uma certa maneira a certos gêneros de estímulos
são, em parte, inatas.
A minha tese é a de que, tanto quanto são adquiridas, são modificações de disposições inatas que são <plásticas> e que se desenvolvem e mudam, ao serem ativadas por estímulos, e, especialmente, também sob influência do fracasso e do sucesso (e talvez associados a sentimentos dolorosos e de prazer); pois as ações e reações que são desencadeadas pelos estímulos são, regra geral, orientadas para certos objetivos biológicos. Deste modo, o organismo desenvolve o seu conhecimento disposicional inato: aprende por tentativa e erro”(OAC:121).
Muito
diferente, portanto, do quadro desenhado por David Hume quando de sua análise do
problema da indução, qual seja, o de que o conhecimento surge a partir de
repetições de observações.
Nenhum
exemplo, entretanto, pode ser mais marcante para contrariar esse falso
empirismo de Hume que o de Helen Keller ([1]): cega, surda e muda, foi capaz de engendrar uma possibilidade de comunicação com o mundo
exterior, graças à “disposição” inata para aprender e resolver problemas
básicos relacionados com sua sobrevivência.
Aliás,
outro não é o pensamento de Gaston Bachelard, como posto anteriormente.
Se
Popper nos apresenta sua lógica do conhecimento, aquele nos apresenta sua
psicologia do conhecer e, em o fazendo, diz-nos que o vetor do conhecimento, em
última instância, sempre vai do racional para o real.
É
nesse sentido que a epistemologia sem Sujeito Cognoscente de Karl Popper nos permite
rejeitar qualquer teoria acerca da interpretação
que tenha como fulcro, base, premissa inicial, postulado, ou pressuposto, uma crença subjetiva exposta com fulcro no “argumento de autoridade” como o são, por
exemplo, aquelas que se expressam a partir de juízos de valor, e, não, juízos
de fato, e que, no devido tempo, serão objeto de crítica quanto à sua possível
utilização enquanto instrumentos do Poder Político, por plena fragilidade
teórica.
O CRITÉRIO DE DEMARCAÇÃO ENTRE CIÊNCIA E METAFÍSICA. POSSIBILIDADE DE CRÍTICA A TEORIAS SUBJETIVAS.
Tal critério – o da epistemologia sem sujeito cognoscente - ao qual se soma, na tarefa de fornecer subsídios para a crítica às teorias de conteúdo subjetivista, o de demarcação entre ciência e não-ciência ([2]), consiste em somente considerar científico, segundo Popper, quando suas afirmações são passíveis de refutação:
“De
acordo com essa concepção, que mantenho, um sistema só deve ser considerado
científico se faz afirmativas que podem chocar-se com observações; de fato, as
teorias são refutadas pelas tentativas de provocar esses choques – isto é,
pelos esforços para refutá-las. Portanto, testabilidade vem a ser o mesmo que
refutabilidade, e pode ser adotada como critério de demarcação” (Popper,
1972:284).
Por
fim, e para completar essa via-crucis tão complexa acerca do obstáculo
epistemológico que é uma teoria subjetivista (tal qual a Hermenêutica enquanto Ciência
do Espírito, por exemplo), convém observar o que Popper expõe a
esse respeito:
“A intenção dos filósofos empiristas, de Bacon a Hume, Mill e Russel, era prática e realista. À exceção, possivelmente, de Berkeley, todos eles queriam ser realistas terra-a-terra. Mas as suas epistemologias subjetivas estavam em contradição com as suas intenções realistas. Em vez de atribuírem à experiência sensível o importante, mas limitado poder de testar, ou de inspecionar as novas teorias acerca do Mundo, esses epistemólogos sustentaram <a teoria de que todo o conhecimento é derivado a partir da experiência sensível>, e fizeram <é derivável> equivaler a <é indutivamente derivado>, ou, ainda mais freqüentemente, a <tem origem>. Nunca viram claramente que não é a origem das idéias que deveria interessar aos epistemólogos, mas sim a verdade das teorias..." (1987:107).
Assim, o Realismo, essa Ontognosiologia possível, e a possibilidade concreta de conhecimento objetivo a partir da crítica de teorias acerca dos habitantes do “Terceiro Mundo” ou “Mundo 3” enquanto objetos cognoscíveis; a epistemologia sem sujeito cognoscente; e o critério de demarcação entre ciência e não-ciência, permitem expor a fragilidade teórica do Idealismo, do positivismo, empirismo e fenomenologia e suas exacerbações realistas e suas crenças de natureza subjetivistas que não somente se fazem presentes na interpretação jurídica, mas, inclusive, permitem sua instrumentalização.
(1) Helen Keller não dispunha
da capacidade inata e base genética para interpretar como símbolos os símbolos
bastante artificiais, o do nome da água, por exemplo; enquanto esta lhe corria
sobre as mãos, a professora escrevia nelas a palavra <água> (Conforme Sir Karl Raymond Popper; “O Conhecimento
e o Problema Corpo-Mente”; Edições 70; Lisboa; 1ª edição; 1997; p.
60).
([2] ) Não seria errado substituir “não-ciência” por “metafísica”. A opção por aquela, em detrimento desta, decorreu de uma opção por uma linguagem mais incisiva. Em uma, como na outra, pode-se compreender melhor a distinção a partir da demarcação, em Kant, entre fenômeno e coisa-em-si. O termo “metafísica” pressupõe uma gnosiologia, o quê amplia o universo de sua abrangência. Essa gnosiologia, como se pode supor, por ser calcada no conhecimento absoluto proporcionado pela intuição direta das coisas, a partir da Razão, parece mais um privilégio de místicos.
* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estantevirtual.com.br