Tigran Petrosian
* Honório de Medeiros
Cheguei em Natal para estudar, vindo de Mossoró, em fevereiro de 1974. Tinha 16anos incompletos.
Escolhi, depois de alguma hesitação, a antiga Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte, e não o Marista, meu destino inicial.
Na Etfrn, dei três passos no rumo do que eu queria em minha vida, de uma forma ou outra: escrever, jogar xadrez, e a política.
Lá, eu e Rui Lopes criamos o jornal mural "A Capa", sucesso entre os alunos, que causou alguns incômodos à administração da imensa figura humana que foi o Professor Arnaldo Arsênio, seu diretor, por nossa postura, meio inconformista, digamos assim, ao ponto de sermos chamados a seu gabinete para uma "admoestação" carinhosa.
Fui, também, Presidente do Centro Cívico Escolar Nilo Peçanha, o que me introduziu na política estudantil.
Naquela época, plena ditadura, implantamos na Etfrn uma experiência inédita: debate direto entre a direção e os alunos, realizado sempre no Ginásio de Esportes, o que me levou a ser convidado pelo Padre Sabino Gentilli para dar uma palestra aos colegas do Salesiano. Foi minha primeira experiência nessa área.
Por outro lado, representei, após o maior enxadrista norte-rio-grandense de todos os tempos, Máximo Macedo, as cores da Etfrn e sua hegemonia nos disputadíssimos Jogos Estudantis do Rio Grande do Norte, o JERNS, juntamente com Alexandre Macedo. Naquele ano, 1975, conseguimos acrescentar a décima medalha de ouro consecutiva à coleção da Escola.
Ironia: no ano seguinte quebramos, eu e Gilson Ricardo de Medeiros Pereira, outro depois notável enxadrista potiguar, a hegemonia da Etfrn e conseguimos, para o Churchill, creio que sua primeira medalha de ouro no xadrez.
Gilson Ricardo, eu, Maurício Noronha, Wilson Roberto, Dilermando Jucá, João Maria "Tarrasch" e Jairo Lima constituíamos a turma mais jovem que frequentava o P4BR Clube de Xadrez, de saudosa memória, do qual cheguei, tempos depois, a ser presidente.
Funcionava no último andar do Edifício Barão do Rio Branco, lá onde Manxa, excepcional artista plástico do nosso Estado, tinha seu estúdio, e, assim como nós, invadia as madrugadas nos dias-de-semana e sábados até a hora de irmos embora a pé, sem medo de absolutamente nada, por uma Natal adormecida e tranquila. Ônibus somente até as onze da noite.
Conversávamos muito, na época, acerca do jogo de xadrez: seus jogadores do passado, os grandes feitos, a história do esporte/arte, a situação local, quais torneios participaríamos... O importante, entretanto, era discutir a grande questão: a qual estilo nós, individualmente, nos filiávamos: seríamos posicionais ou táticos? Privilegiávamos a defesa ou o ataque?
Quem defendia o estilo posicional tinha, como ídolo, Tigran Petrosian; quem assumia o tático incensava Mikhail Tahl. Ambos eram, se podemos dizer assim, os maiores representantes de cada um dos estilos, segundo o entendimento dos estudiosos do assunto.
Hoje sei que eu, mesmo mediocremente, poderia ser considerado um jogador de estilo posicional, aos moldes de Petrosian, apesar de todas as limitações que um amador ingênuo possa ter. Cheguei a essa conclusão muito mais pelas características da personalidade de Petrosian que, propriamente pelo seu belo e estranho estilo de jogar.
Esse "insight" veio quando li uma frase que ele proferiu em algum momento de sua vida: "Em meu estilo, como em um espelho, está refletido meu caráter". Caráter não somente enquanto moral, mas, sim, como forma-de-ser, muito embora Petrosian fosse muito respeitado por sua dignidade e postura.
De fato, seu xadrez era cauteloso, prudente, posicional, defensivo, mas ele não via o seu estilo como passivo. Nós dizíamos, no nosso tempo, que ele parecia uma jiboia: envolvia progressivamente seu oponente, e ia triturando-o lentamente, deixando-o sem espaço, cada vez mais sem opções de jogada, até o arremate final.
Um dos grandes feitos de Petrosian, interromper uma sequência de dezenove partidas ininterruptas de Bobby Fischer em seu auge, originou um precioso comentário do gênio americano em seu My 60 Memorable Games: "Eu estava pasmado no transcorrer do jogo. Cada vez que Petrosian conseguia uma boa posição, ele manobrava para obter uma melhor".
Petrosian dera um nó no genial Bobby Fischer!
Quando Petrosian derrotou Botvinnik, ganhando o título mundial, este comentou: "Petrosian possui um talento único em xadrez. (...) Mas enquanto Tahl tentava alcançar posições dinâmicas, Petrosian criava posições nas quais os eventos se desenvolviam em câmara lenta. É difícil atacar suas peças: as peças atacantes só avançam lentamente, atoladas no pântano que cerca o campo das peças de Petrosian".
Ou seja, para Petrossian, o primordial era primeiro defender, para depois atacar; enquanto que para Tahl, o ataque era a melhor defesa.
Pois bem, ao longo dos anos, canhestramente, passei a crer que Petrosian tinha razão quando dissera que o jogo de xadrez refletia a forma-de-ser de cada jogador. E, ousadamente, ampliei o espectro do alcance de sua teoria: estou convicto que qualquer esporte reflete as características pessoais dos jogadores quando de sua atuação, desde o xadrez até o futebol, passando pelo pôquer ou artes marciais.
Creio que hoje, no futebol, estão presentes as duas escolas tradicionais do xadrez, como reflexo da personalidade de seus protagonistas, principalmente os técnicos, quais sejam a posicional e a tática, a postura centrada na defesa, e a postura centrada no ataque. Seria o caso de Tite e Guardiola.
Com base em Anatol Rapoport, o psicólogo e matemático americano nascido russo, em seu famoso livro de 1960, Fights, Games, and Debates, defensor da tese segundo a qual os princípios que norteiam sua "teoria dos conflitos" se estendem, por exemplo, aos debates, vou ainda mais longe: podemos perceber a existência desses dois estilos até mesmo na política.
Basta nos lembrarmos de Tancredo Neves e Leonel Brizola.
Tudo isso, claro, sem abrir mão de que na realidade não há nunca somente preto e branco.
Há os infinitos matizes do cinza.
Quanto a escrever, essa é uma outra história...
@honoriodemedeiros
honoriodemedeiros@gmail.com
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