Nas madrugadas de Barcelona, as largas calçadas acomodam,
em dezembro, o frio, os jovens cheios de vinho que passam cantando e de braços dados,
bicicletas e motocicletas em lugares apropriados, que não impediam a
passagem dos pedestres. Conto para Carlos Santos das calçadas tomadas por esses
meios de transporte quando chega a noite. Ele ri e me fala de uma cadeira em
ruínas, acorrentada em plena Praça do Codó, condenada à prisão para não ser
furtada tão logo o dono lhe dê as costas.
"Cadê a polícia?", pergunto ao Georgiano taxista, setentão, que
me conduz. Ele responde que não precisa, basta chamar, e todo mundo chama se
alguma coisa está errada, e a polícia chega imediatamente, e, de fato, mal vi a
polícia em Barcelona. O Georgiano, por sua vez, me pergunta de onde sou. Eu lhe digo que sou
brasileiro, e ele sorri, e me fala em Pelé e Garrincha. "Garrincha?", "sim, Garrincha, Garrincha", diz ele, "o grande Garrincha, hoje a sua seleção, me
desculpe, eu não assisto, não quero assistir".
"E o senhor largou a Geórgia por quê?" "Putin", me diz ele, "um
homem muito mau, como Stálin, que era da Geórgia, mas nunca fez nada por ela. Stálin era muito mau, repete, very bad, very very bad, um homem sem pai, sem mãe, criado
em orfanato, depois foi para a polícia, cruel, e meus pais perderam tudo e
vieram embora, e eu vim também, mas a casa de meus pais ainda existe,
fechada, na bela Geórgia, e eu vou lá, e tomo vinho, a Geórgia tem um vinho
muito bom, e a casa fica fechada, mas quando eu vou, abro a casa e tomo muito
vinho, falo muito minha língua, e durmo".
Continuamos seguindo, eu vejo as bandeiras catalãs
postadas nas janelas dos apartamentos, e me lembro do livreiro que tem um sebo
em frente ao "Palau de la Musica Catalana" onde tantos famosos se apresentaram, e
de seu olhar ressabiado quando lhe pedi um livro com a história da Catalunha em
espanhol, e ele me respondeu, ríspido, "em espanhol eu não tenho, tenho em
Catalão", e eu lhe disse que infelizmente não lia Catalão, mas
acidentalmente tinha aberto meu casaco que ocultava uma camiseta na qual estava escrito “The Catalan Way of
Life”, e ele sorriu e lamentou não ter esse livro de história da Catalunha escrito em
espanhol, acrescentando, mordaz, que não sabia se havia algum que não fosse ruim.
É, Barcelona é algo muito especial, muito especial mesmo,
fiquei pensando enquanto caminhava, dias antes, no rumo da "Cidade Gótica", pela
qual me apaixonei sem resistência, foi uma verdadeira entrega, querendo parar em cada obra de arte
encontrada por seus caminhos tortuosos, escuros e estreitos, em cada igreja, ouvir os músicos que tocavam em todos os lugares, tal qual aquele que
executava uma sonata arcaica de Scarlatti em violino e parecia ausente de todos que o escutavam
e depositavam moedas em seu chapéu, pois tocava de olhos fechados, como se
estivesse longe daquela realidade barulhenta, multicolorida e de muitos idiomas
que lhe cercava, até chegar à minha pracinha predileta, tão pequena, tão
impossível de descrever, em cujas madrugadas eram executados os republicanos contra as paredes do colégio e igreja que lhe estabelecem os limites, nos anos
terríveis da guerra civil. Que diria François se estivesse ali?
"Olhe aqui", me dissera uma mineira dias antes, está vendo as marcas das
balas nas paredes, "claro", digo eu, "pois perceba, alguns buracos são muito
altos, não atingiriam ninguém, sabe por quê?", "claro que não", "é porque", continua
ela, "naquele tempo, todo mundo se conhecia em Barcelona, e alguns dos carrascos
eram amigos das vítimas". "Meu Deus", penso eu.
Ah, Barcelona. A gaúcha que nos acompanhou a Montserrat
pareceu interessada quando lhe contei acerca da cruzada que a igreja empreendeu
contra os cátaros no século XIII. "São Luiz?", pergunta, "sim, São Luiz, tudo era
uma questão de poder e terras disputada entre os nobres do norte, liderados por
ele, contra os do sul, liderados pelo poderoso conde de Toulouse, guerra apadrinhada pela igreja que temia o surgimento de uma nova religião a partir daquela doutrina
perigosíssima, o catarismo, e, veja, o Santo Graal está aqui, em
Montserrat", "é, eu sei", diz ela, "Hitler mandou seus soldados liderados por
Himmler, mas eles não encontraram nada". "Sei onde está", eu disse. "Sabe?", pergunta ela, "claro", respondo, "olhe aquelas rochas, você vê um perfil?", "sim, eu vejo", "então", continuo, "o nariz aponta para uma fissura na rocha, é lá", ela olha e depois olha para mim
e fica sem saber se eu brinco ou sou louco, e muda de assunto: "você não fala em
Gaudí quando fala em Barcelona", "ah, Gaudí", eu digo, "o delírio de Gaudí, como
posso gostar de Gaudí, tão distante do homem comum, não bebia, não fumava, não
jogava, não dançava, não tinha mulher, era carola, morava nas obras da Igreja
da Sagrada Família, é tudo muito bonito, mas irreal, eu gosto de Gaudí, mas ele
era pouco humano e somente o humano me interessa, e viva Terêncio, que disse
isso muito tempo atrás".
"Do que você gostou?", ela me pergunta, com aquele sotaque do
interior do Rio Grande do Sul, "das obras de arte escondidas em cada recanto", eu digo, "dos músicos de rua, da fé que os Catalães têm na Catalunha, de tantos
imigrantes, tal qual o coreano que trabalha dezoito horas por dia no seu
mercadinho próximo do apartamento no qual eu estou, do cuidado com os idosos,
pois as ruas são pensadas a partir deles e para eles, das espanholas tão
sensíveis a elogios a sua beleza, desde que feitos como se fosse uma rendição,
nunca uma tentativa de conquista, da simpatia para com os
brasileiros, do bairro gótico, da elegância dos caminhantes, das crianças que
brincam felizes e despreocupadas em todos os cantos da cidade, da ausência da
polícia e do respeito à lei, da história da nação catalã, da relação da
Catalunha com a Provença francesa..."
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