sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

"SEU LULA"


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Ali e acolá, em livros que somente alguns lêem, seja por que deliberadamente os procuram, seja por um desses acasos da vida nos quais eles aparecem sem que saibamos como nem muito menos a razão, me deparo com seu nome. Está posto em um pé-de-página, ou em algum parágrafo, incidentalmente, fugazmente. Recentemente, ao reler a literatura norteriograndense acerca da saga lampiônica em Mossoró – Raul Fernandes e Raimundo Nonato da Silva – lá estava seu nome, “en passant”, como teria dito, para trazer expressões próprias do jogo de xadrez, que amava tanto, até o cotidiano.
 
Foi exatamente o jogo de xadrez que me levou a conhecê-lo. Eu e vários de minha geração, a quem ele pacientemente ensinou a jogar. Tínhamos em torno dos oito anos e nosso mundo era muito simples: brincar no Colégio Diocesano, brincar no patamar da Igreja de São Vicente, brincar em casa nas raras vezes em que a rua nos era proibida por castigo ou doença. E brincar de aprender a jogar xadrez nas tardes provincianas de Mossoró, na pequena casa onde Lula Nogueira - “Seu Lula” - vivia sozinho com o filho solteirão – uma figura misteriosa a quem quase nunca víamos e acerca de quem falávamos aos sussurros.
 
“Seu” Lula morava em uma casinha branca com área de entrada diminuta, porta e janela dando imediatamente para a sala, saleta, salinha que era de visita e jantar ao mesmo tempo. Do lado esquerdo de quem entrava dois quartos: o primeiro, com janelão para a rua, era o seu; o outro, do filho. A sala dava para uma pequena cozinha dela separada por uma mureta onde pontificava um filtro de água de cerâmica e um varal de madeira de empilhar pratos, meio escondidos por um pano. Tudo muito normal, tudo muito comum não fosse uma mesa oficial de xadrez colocada perpendicularmente à janela da sala para aproveitar a luz do sol, na qual ficavam postados, desde sempre, livros e revistas argentinas acerca do jogo, além de majestosas e manuseadas peças tipo “Stauton” para os embates enxadrísticos.

Embora possa me lembrar de “Seu Lula nas calçadas de nossa rua conversando, principalmente na roda de “Seu Napoleão”, onde o escutei, entre perplexo e admirado, certa vez, afirmar enfaticamente que somente morreria após a passagem do ano 2000, essas incursões eram raras. Certo, mesmo, era passar em frente à sua casinha, fosse manhã ou tarde, e encontra-lo defronte ao tabuleiro de xadrez, mão esquerda com dedos polegar e indicador apoiando a cabeça, cigarro esquecido embora aceso entre os dedos médio e anular, enquanto a mão direita movia as peças para cima e para baixo, para um lado e para o outro, ou na diagonal, na tentativa de criar ou solucionar problemas enxadrísticos que já haviam lhe granjeado reputação nacional. Podia, também, ser o caso de estar, simplesmente, reproduzindo uma partida de xadrez de grandes mestres internacionais.
 
Depois eu, como os outros, fui embora. O mundo nos esperava. Nunca esquecemos – aqueles que fomos seus alunos – nosso professor de xadrez. Basta, ainda hoje, ver peças tipo “Stauton”, ou mesmo um tabuleiro oficial, que volto no tempo para aqueles dias já longínquos quando um menino magro, tímido, e um ancião de mãos nodosas, emoldurados pela claridade solar que ultrapassava a janela da sala e escandia a fumaça dos muitos cigarros fumados ou esquecidos, jogavam intermináveis partidas nas quais somente a profunda gentileza do professor impedia uma humilhação contínua ao aluno.









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