quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

"ATÉ QUE TUDO CESSE, NÓS NÃO CESSAREMOS"

 


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Em 1979, entrei no Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 

Vinha do Curso de Matemática, pois, a mim, faltara vocação. 

Ainda estávamos em plena ditadura militar. Críticas ao Governo eram feitas com muito receio. Não fazia muito tempo que a repressão implicava em tortura e desaparecimento. 

No Planalto, o Presidente João Figueiredo iria substituir Ernesto Geisel e continuar a “abertura política lenta e gradual”, timidamente iniciada por seu antecessor, sob a batuta do General Golbery do Couto e Silva. 

O Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti, do Curso de Direito, cujo grito de guerra era “até que tudo cesse, nós não cessaremos” fora extinto em anos anteriores, assim como todos os outros, substituídos por Diretórios Acadêmicos que representavam cada Centro Universitário. 

A razão era óbvia: era muito mais fácil os órgãos de repressão controlarem diretórios acadêmicos, em bem menor número, que centros acadêmicos, um por cada curso existente na Universidade. 

Nos corredores do curso um grupo de estudantes, do qual eu fazia parte, se reunia habitualmente para discutir política, principalmente a participação no processo de democratização que se desenrolava à conta-gotas Brasil adentro, e livros, muitos livros. 

Tínhamos em comum o hábito da leitura, o amor pela discussão, o interesse pela política. 

Em certo momento, logo no começo do curso, resolvemos dar um passo além: refundarmos o Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti, de tantas e gloriosas tradições. 

Realizamos duas notáveis Assembleias Extraordinárias para as quais todos os alunos do curso de Direito foram convidados e compareceram em massa. 

Contávamos, também, com a simpatia de alguns poucos professores do curso, principalmente o Professor Jales Costa, de saudosa memória pelo exemplo, cultura e empatia com seus alunos. 

Aprovada a proposta por unanimidade, ressurgiu, então, o Centro Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Seu primeiro presidente, eleito pela última Assembleia, foi João Hélder Dantas Cavalcanti. Tive a honra de ser o segundo, dessa vez com disputa eleitoral. 

O Centro Acadêmico protagonizaria momentos impressionantes, logo após seu retorno às atividades: fizemos o primeiro debate, no Brasil, nos estertores da ditadura, entre candidatos a Governador do Estado, em pleno auditório da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cedido, para nosso espanto, pelo Reitor à época, professor Diógenes da Cunha Lima, justiça lhe seja feita. 

O evento foi noticiado pela grande imprensa brasileira. Em noite memorável, Aluízio Alves e José Agripino Maia debateram, sob a mediação do Professor Jales Costa, acerca dos destinos políticos do Brasil e do Rio Grande do Norte naquela que seria a primeira eleição direta para Governador do Estado após 1964. 

Aqui ressalvo a conduta do então Prefeito de Natal, por eleição indireta, José Agripino Maia. Eu e João Helder fomos a sua residência para convidá-lo. Sabíamos que toda seu “entourage” era contra sua ida ao debate. 

Fizemos o convite, ponderando acerca de quão ruim seria para sua imagem as fotos de sua cadeira vazia em pleno auditório lotado, bem como quão ruim seria para a democracia que estava ressurgindo sua negativa em participar. 

Jussier Santos, um dos seus secretários municipais, fez uso da palavra se colocando contra a participação de José Agripino, alegando que toda a plateia presente seria, com certeza, claque de Aluísio Alves. 

José Agripino, entretanto, não hesitou e confirmou sua presença. Ponto para ele, nós e a democracia. 

Não paramos. Dias depois colocamos para debater entre si, sob minha mediação, os dois candidatos principais, no mesmo pleito, ao Senado da República pelo Rio Grande do Norte: Roberto Furtado, pela oposição, e Carlos Alberto de Souza, pela situação. 

Carlos Alberto levou uma claque disciplinada para aplaudi-lo, liderada por Eri Varela, um seu assessor. A noite foi tumultuada, mas tudo terminou acontecendo da melhor forma possível. 

Continuando o exercício de ousadia, realizamos vários encontros nos quais foi discutida abertamente, com a presença maciça de estudantes e professores, a relação entre marxismo e Direito. 

Para um desses debates foi convidado, especialmente, o ex-Governador Cortez Pereira, naquele momento ainda cassado em seus direitos políticos. Cortez Pereira uma vez me disse que tinha sido sua primeira manifestação pública desde a cassação! 

Por fim, e não menos importante, fizemos também o primeiro debate, no Brasil, entre os candidatos a Reitor à sucessão do Professor Diógenes da Cunha Lima, mesmo que o pleito viesse a ser, como de fato o foi realizado de forma indireta. Todos concorrentes compareceram. Lá estiveram Pedro Simões, Dalton Melo, Jales Costa, Genibaldo Barros e Lauro Bezerra. 

Resgato essas lembranças graças sob o impacto das manifestações que estão ocorrendo no Brasil e que, segundo minha avaliação, são muito importantes politicamente. Desejo ardentemente que o povo enseje as mudanças que o Brasil precisa, principalmente no que diz respeito ao combate feroz e determinado contra a corrupção. 

E tendo resgatado essas lembranças aproveito para homenagear meus companheiros de luta daquela época: João Hélder Dantas Cavalcanti, Evandro Borges e Rossana Sudário, em nome dos quais abraço todos quanto estiveram conosco naquelas gloriosas manhãs na sala F1 do Setor V, do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, gritando, juntos, felizes, ansiosos para mudar o Brasil, “até que tudo cesse, nós não cessaremos”.

domingo, 10 de janeiro de 2021

CANGAÇO: POR QUE LAMPIÃO INVADIU MOSSORÓ (UM MISTÉRIO QUASE CENTENÁRIO, CAPÍTULO I)

Texto original no livro História de Cangaceiros e Coronéis, do autor

Acompanhe neste blog todos os domingos

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Em dias do início do mês de junho do ano da graça de 1927, pelas terras do Rio Grande do Norte que confrontam com as da Paraíba, lá no alto Sertão desses estados, mais precisamente aquelas que ficam entre as cidades de Uiraúna, PB, e Luis Gomes, RN, vindos de Aurora, no Ceará, da Região do Cariri Novos de Nosso Senhor Jesus Cristo, eles, os cangaceiros, entraram no território potiguar. 

Era uma horda selvagem com aproximadamente cinquenta a setenta homens, para o mais ou para menos, imundos e bestiais, a cavalo, fortemente armados, portando rifles, fuzis, revólveres, pistolas, punhais longos e curtos, e farta munição. Vinham ébrios, ferozes, e sedentos de violência, sem qualquer outro propósito – assim supõe o senso comum - que não a rapinagem, pura e simples. 

E assim entraram. 

Durante os oitocentos quilômetros e quatro dias que durou a epopeia, saindo e voltando à Aurora, Ceará, após alcançarem Mossoró, desenharam, com a ponta dos cascos dos cavalos ou a face externa das alpargatas com as quais pisavam o chão potiguar, como que um movimento em pinça cujos contornos lembram o de uma flor de mofumbo, sendo as laterais as margens da Serra de Luis Gomes e do Martins, por um lado, e, pelo outro, aquelas do serrame do Pereiro, limites com o Jaguaribe, Ceará adentro. 

Espalharam o terror por onde passaram. 

Humilharam, surraram, feriram, extorquiram, sequestraram, furtaram, roubaram, mataram... 

Em toda a história do cangaço, complexa e específica por si mesma, nada há igual. Mesmo quanto à história do banditismo rural universal o feito chama a atenção. 

Não foi um ataque qualquer a um arruado, vila ou povoação. Nem mesmo a uma cidade pequena. 

Foi um ataque a uma cidade de grande porte para os padrões da época, bem dizer litorânea, a segunda maior do Rio Grande do Norte, com quatro igrejas, três jornais, agência do Banco do Brasil, população que rivalizava com a da capital do Estado, um comércio rico e pujante, funcionando como centro para o qual convergiam paraibanos, norte-rio-grandenses e cearenses, e, por intermédio do porto de Areia Branca, ao qual se chegava pelo Rio Mossoró ou Apodi, caso necessário, o Brasil todo. 

Mossoró não acreditava que tal ataque pudesse se concretizar. O Governo do Estado do Rio Grande do Norte também não. Era inconcebível. O Brasil, representado por sua capital, o Rio de Janeiro, quedou perplexo. 

Tanto anos depois seria possível acrescentar algo novo quanto às causas que levaram Lampião a empreender esse ataque?

De antemão, que se diga: não é consenso haver mistério quanto às causas do ataque de Lampião a Mossoró. 

Ao contrário. Excetuando-se algumas vozes isoladas aqui e ali, faladas aos sussurros em Mossoró e outros recantos desse mundaréu de Deus Nosso Senhor, é prática corrente atribuir-se à ganância de Lampião, Isaías Arruda e Massilon – este com papel secundário, a existência do episódio ([1]). 

Entretanto, ao estudarmos com atenção redobrada, até mesmo com obstinação, o acervo do qual dispõem os pesquisadores atualmente, constatamos a existência de dúvidas, perplexidades, contradições, mistérios que insistem em aparecer desafiando o passar dos anos e a natural inércia originada das versões consumadas pelo tempo e descuido dos homens. 

Levando-se em consideração essas questões, após tê-las colhido e estudado, assim é que, a seguir, dando-lhes um tratamento mais racional e factual possível, buscando a isenção necessária à qual se deve ater quem busca encontrar a melhor explicação entre várias concorrentes – tal é o método que nos impõe a ciência, são elas elencadas, analisadas e colocadas à disposição do leitor, para que este possa fazer seu próprio julgamento ou, se não for o caso, meramente ser colocado a par de suas existências. 

Há, portanto, e basicamente, quatro hipóteses acerca das causas do ataque de Lampião a Mossoró: 

(i) teria resultado da ganância do Coronel Isaías Arruda e de Lampião, no que foram secundados por Massilon; 

(ii) resultou unicamente da ganância de Massilon; 

(iii) foi consequência da paixão de Massilon por Julieta, filha de Rodolpho Fernandes; 

(iv) decorreu de um plano político. 

Qual dessas hipóteses é a verdadeira? 

O tempo dirá?

---

[1] Notável exceção é o pesquisador Marcos Pinto, voz solitária e tonitruante, autor de DATAS E NOTAS PARA A HISTÓRIA DE APODY, natural de Apodi, RN, e integrante da
Academia Apodiense de Letras-AAPOL, mas residente há muitos anos em Mossoró.

sábado, 9 de janeiro de 2021

CRÔNICA: O FIM DO MUNDO ESTÁ PRÓXIMO

 

Crédito: Getty Images/iStockphoto - Direitos autorais: Steven Wynn

*Honório de Medeiros (honoriodemedeiro@gmail.com)

Seu Geraldo, ontem, me vaticinou que o fim do mundo está próximo. 

Bebíamos uma água de coco, eu e a comadre, depois da caminhada, quando puxei assunto. Eu queria uma informação, mas achei melhor não ir direto ao ponto. 

Perguntei-lhe como estavam as vendas, e ele me garantiu que estavam boas. 

"É melhor coco do que pipoca?". 

"Aqui". "Lá no colégio, não". "Vender pipoca é muito melhor". "Botei meu menino lá". 

Baixo, cabelos finos ralos e desgrenhados, rosto marcado por queimaduras de pele, nem gordo, nem magro, um certo olhar de fanático, intenso, mas às vezes ausente, como se estivesse falando para si mesmo, me garantiu que tinha criado seus cinco filhos vendendo pipoca. 

"Comprei até um sítiozinho." 

"Tem gado?" 

"Não, só uma garrota, mas lá tem água de um olheiro, tem água salgada, e água da Caern." 

"Muito bom." "E casa, tem?" 

"É, eu fiz uma casinha lá, às vezes vou dormir depois do almoço e tenho que vestir uma camisa. Faz frio." "Terra boa, dá macaxeira, mandioca, fruta muita!" 

Enquanto ele falava, observei que fizera o transporte de seus apetrechos de venda, que incluíam dois caixotes grandes de isopor postados em cima de tamboretes, duas cadeiras de plástico para os fregueses, e uma espécie de caixa alta, de compensado, vazada para o lado, no qual ficavam, em tabiques divisórios internos, moedas, panos, facas para descascar ou rachar os cocos, e outras trapizongas, de um lado da calçada para o outro. 

Por que fizera isso? Não quis lhe perguntar, mas creio que estacionando seu velho jipe, que ficava parado bem para dentro da rua mesmo em frente ao ponto onde antes comerciava, enquanto ocupava o outro lado com sua venda, impedia que surgisse algum concorrente. Com essa manobra, tornara-se dono único dos espaços disponíveis. 

Inteligente, Seu Geraldo. 

"Mas você não tem medo da insegurança?" 

O olhar de fanático se acentuou. E se desviou de mim, fixando-se em algum ponto invisível além do meu lado direito. 

"Deus é por mim". "É só não mostrar que você tem as coisas." "Tá vendo esse carro velho? Já andei com bastante dinheiro nele, para cima e para baixo, em tudo que é canto, e nunca ninguém nem olhou". 

"Lá no sítio, é do mesmo jeito". "Daqui a uns seis meses eu vou de vez pra lá." "Aproveitar o que me resta da vida". 

"Você ainda está novo, vai viver muito". 

"O senhor não entendeu. Tudo isso está muito perto de acabar." 

"O mundo?" 

"É". "Só não vê, quem não quer." 

Não ousei lhe perguntar como isso ia acontecer. E ele se calou, o olhar fixo no nada... 

Eu até me esqueci de colher a informação que me interessava: tinha olhado para cima e para baixo e não conseguia atinar onde ele fazia xixi, quando a vontade apertava. Os hotéis ficavam longe, a praia também, não havia mato por perto, o posto policial estava permanentemente fechado, e, ainda por cima, ele não tinha com quem deixar seus apetrechos enquanto satisfazia suas necessidades. 

A não ser que.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

EMPREGO: COMO ENCONTRAR O TRABALHO DE SUA VIDA

 

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Ao longo de minha vida enquanto professor, encontrei muitos casos de alunos que claramente não queriam se bacharelar em Direito.

Estavam ali, no curso, cumprindo uma trajetória que não era de seu agrado. Prefeririam se dedicar à música, à história, a escrever, à arquitetura, jornalismo, psicologia...

Quando eu percebia procurava conversar. Às vezes, em alguns casos, sequer o aluno tinha percebido que sua praia não era aquela. Seduzido por ideais que lhe eram impostos pela sociedade, como status e dinheiro, ou, pior, por ideais que seus pais cultivavam, ali ficavam eles, nas salas de aula, a passar horas e horas tomando contato direto com uma realidade, no seu caso, no mínimo entediante.

Mesmo aqueles que sabiam exatamente o que queriam, tal como passar em um concurso público e supostamente se tranquilizar quanto ao futuro, para, então, se dedicar a alguma atividade que lhe desse prazer, tal como a literatura, era fácil perceber que tinham uma dúvida latente e perturbadora pairando sobre suas mentes: “será que vale a pena todo esse tempo perdido? A vida é tão curta...”

Pois bem, se é assim, ou mesmo que seja apenas para lhe assegurar a certeza de sua escolha, na medida em que isso seja possível, ou por pura curiosidade, vale a pena ler COMO ENCONTRAR O TRABALHO DE SUA VIDA, de Roman Krznaric.

Desde já advirto: não se trata propriamente de livro de autoajuda. O livro é bem escrito, bem fundamentado, e faz parte de uma coleção “tocada” pelo filósofo Alain de Botton, autor de Religião para Ateus e Como Proust pode Mudar sua Vida.

Eu mesmo somente me interessei, quando li uma citação de Richard Sennet, pensador de meu agrado, no livro.

Quanto ao escritor, é membro fundador da “The School of Life”, e foi mencionado pelo jornal “Observer” como um dos mais importantes pensadores sobre estilo de vida do Reino Unido, além de ser conselheiro de organizações tais quais a Oxfam e Nações Unidas.

Então, se for o caso, mãos à obra!

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

MEMÓRIA: RAFAEL NEGREIROS, O INDOMÁVEL


Rafael Negreiros ao lado de Ivonete Paula em evento na ACDP

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Alguns anos atrás, final dos anos oitenta, eu e Franklin Jorge resolvemos lançar um jornal em Pau dos Ferros que cobrisse, para o Estado, todo o Alto Oeste. Seria semanal e iria para as bancas aos sábados.

Foi algo insano, mas naquela época não tínhamos noção acerca da aventura na qual nos meteríamos, e a história da “Folha do Alto Oeste” um dia será contada, através de “perfis”, “sueltos” e “bicos-de-pena”, como somente Franklin Jorge sabe fazer.

O que importa, entretanto, é registrar que Rafael Negreiros foi nosso primeiro e mais importante colaborador e, já no terceiro ou quarto número criou, com a iconoclastia que o caracterizava, a figura do “ombudsman” jornalístico – que a Folha de São Paulo criaria algum tempo depois, se arrogando pioneira, sem saber que no Sertão do Rio Grande do Norte essa experiência já existira. 

Naquele artigo Rafael Negreiros desancou o jornal com tiradas tipicamente suas: ironias cortantes, entremeadas por observações pertinentes e oportunas acerca do exercício do jornalismo, em um artigo que ele enviou para publicação, divertindo-se com nosso possível constrangimento.

Publicamos, claro, e graças a ele fizemos história. 

Talvez tenha sido essa a única vez que mantive um contato mais estreito com ele, apesar de conhecê-lo desde menino. O final da minha infância e início da adolescência – os últimos anos nos quais morei em Mossoró – foi cheio do que chamávamos de “as histórias de Rafael”, casos que eram contados nas esquinas da província e nos deliciavam pelo espírito de rebeldia, sem que disso tivéssemos noção.

Víamos Rafael – pelo menos eu via – como alguém que tinha coragem de tomar posições. Para mim não importava que posições fossem essas, mas, sim, seu destemor com as quais as assumia e defendia, além do torrencial volume de erudição que envolvia cada escrito. 

Anos depois acompanhei, por intermédio de Fernando Negreiros, filho caçula e amigo meu de infância, seu distanciamento da turbulência que o caracterizava. O tempo, domador de homens, cumprira seu papel como sempre deslealmente, porque escolhera para cúmplice anões morais com os quais Rafael Negreiros se recusava a compartilhar a experiência de sorver a vida daquela forma tão sua e tão peculiar.

Era o fim de uma era de titãs em Mossoró. Homens símbolos. Os contemporâneos dos seus últimos dias – imberbes arrogantes e pragmáticos, desletrados e vazios – sequer sabiam, quando o conheciam, ou dele ouviam falar, com que graça esdrúxula, humor derruidor, inteligência aguda, Rafael desmontava as armadilhas da mediocridade cotidiana. 

E hoje, com raras e honrosas exceções, lembram-no por seu talento menor – o humor, a excentricidade – desconhecendo, lamentavelmente, que se a coragem de firmar opinião usando como veículo a iconoclastia tivesse nome, seria, com certeza, Rafael Negreiros.

Existe ainda uma outra faceta de Rafael que eu considero ímpar. Lembra um poema atribuído a Borges que depois soube-se não ser de sua autoria. 

No poema, em tom confessional, o autor ou a autora lamentava-se, olhando para o próprio passado e adivinhando a velhice que chegava a passos largos, não ter aproveitado um pouco mais da vida com coisas pueris. 

Aparentemente pueris, digo eu, como um banho de chuva, mar, quem sabe de rio ou açude, o cavaqueado com os amigos do peito, a piada pronta, o espírito zombeteiro, discussões literárias, gargalhadas... 

Não importa caro autor ou autora, Rafael Negreiros fez isso por você. 

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

PALAVRAS: PARA QUÊ SERVEM AS PALAVRAS?

 

Machado de Assis, por Fraga

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

"As palavras valem também para isso, dar alguma existência aos nossos delírios", diz Raduam Nassar em Cantigas d'amigos (Cadernos de Literatura Brasileira, Ariano Suassuna).

Ariano, entrevistado pelo Cadernos, em certo momento lembra: "não sou um escritor de muitos leitores; costumo dizer que sou um autor de poucos livros e poucos leitores -, (...) Mesmo que eu não publique, tem um círculo de leitores que sempre lê o que escrevo." 

Retruca o Cadernos: "Este é um circuito antimoderno, o circuito da comunidade interessada." 

Qual uma confraria de amigos, na Idade Média, digo eu, onde foi iniciada essa tradição. 

Assim é, assim será o caráter dos tempos atuais e futuros, no qual a imagem evanescente e superficial é tudo e as palavras, mesmo quando amalgamando belos e profundos textos, manjar para poucos. 

A palavra é arte, arte fugidia, de domínio difícil e angustiante.  

Relendo O Crime do Padre Amaro do imenso Eça, lá encontro essa ideia pela voz do seco Padre Notário: 

- Escutem, criaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja uma brincadeira! Irra! Eu não sou um pedreiro-livre! O que eu quero dizer é que é um meio de persuasão, de saber o que será que passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para ali... E quando é para o serviço de Deus, é uma arma. Aí está o que é - a absolvição é uma arma." 

A palavra é uma arma. 

Recordo-me que dizia para meus alunos de Filosofia do Direito ser a confissão um inteligente serviço secreto, à serviço da aristocracia, para a manutenção dos interesses da elite dominante nos tempos medievais. 

A palavra: arte ou instrumento. Às vezes ambos ao mesmo tempo. 

Não somente a palavra escrita, mas também a falada, mesmo aquela que suscita nossos delírios: arma com a qual nos ferimos. 

Natal, em 7 de março de 2015.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

GESTÃO PÚBLICA: COMO AVALIAR UM GOVERNO

 


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Em Desenvolvimento como liberdade, Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia, ex-membro da Presidência do Banco Mundial, ex-professor da Universidade de Harvard, esposo de Emma Rothschild – autora, por sua vez, de Sentimentos Econômicos, um denso ensaio acerca de Adam Smith, Condorcet e o Iluminismo – nos convida a percebermos o contraste entre “um mundo de opulência sem precedentes” e “um mundo de privação, destituição e opressão extraordinários.” 

Na verdade Amartya Sen nos convida a entendermos o desenvolvimento como “um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”, e, não, como algo a ser identificado com o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB), aumento de rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social. 

Ao se referir à expansão das liberdades reais Amartya Sen se refere, por exemplo, aos serviços de educação e saúde – e aqui eu acrescento segurança pública – e os direitos civis (a possibilidade de participar efetivamente do governo e das discussões e averiguações públicas em relação ao dinheiro do povo). 

Aceitar esse ideário como premissa implica em compreender que somente podemos considerar desenvolvido ou em desenvolvimento um País, Estado ou Município no qual, à título de esclarecimento, e em termos bastante simplificados, o dispêndio com obras públicas, tais como calçamentos, praças, ruas, estradas, asfaltamento, prédios, pontes, açudes, barragens, somente ocorra como conseqüência da implantação de políticas públicas voltadas para o avanço em áreas como educação, saúde e segurança. 

Políticas públicas estabelecidas claramente através de programas e projetos que tenham metas, prazos, alocação de recursos humanos e financeiros e possam ser acompanhados e questionados pela sociedade. 

Óbvio que não é isso que vemos: a lógica é outra. As obras públicas são sempre “vendidas” à sociedade como sendo essenciais para o desenvolvimento. Essa lógica, consciente ou inconscientemente, busca privilegiar quem se beneficia financeiramente com ela, ou seja, aqueles que detêm o capital em suas mãos e querem o retorno imediato do investimento político realizado.

Um exemplo particular dessa lógica é a relação estreitíssima, no Brasil, entre empreiteiros, construtores, empresários da construção civil e os governos, sejam estes federais, estaduais e municipais, os quais após realizadas as eleições, pressionam seus candidatos eleitos a investirem em obras escolhidas a dedo. 

A constatação daquilo que aqui se afirma pode ser feita por qualquer um: basta que nos perguntemos se com todo o investimento em obras ocorrido no Brasil, digamos, desde Fernando Henrique Cardoso, houve diminuição sensível da miséria, e a educação, a saúde, a segurança pública estão significativamente melhores. É claro que não. Muito ao contrário. 

O que nós percebemos, nitidamente, é que o avanço, se é que houve, é um verniz que não resiste a uma visita a postos de saúde, escolas públicas e delegacias de polícia. 

Portanto a conclusão é óbvia: desconfiemos de qualquer obra que não esteja atrelada a uma política pública na área de educação, saúde ou segurança. Para começo de assunto. 

Isso, por uma razão muito simples: primeiro, os programas; depois os projetos; enfim, as ações. 

sábado, 2 de janeiro de 2021

GESTÃO PÚBLICA: OBSTÁCULOS NO CAMINHO DAS PRÓXIMAS GESTÕES

 


Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Os servidores públicos, no geral, são os verdadeiros heróis desta imensa bagunça que é a máquina estatal brasileira. 

Altruístas, competentes, dispostos, quando o são, carregam o piano, muito embora, o mais das vezes, não vejam seus esforços serem recompensados. 

Mal pagos, não recebem elogios; são preteridos por carreiristas; estão sempre no centro daquele evento nefando que é a cara da nossa administração pública: quando acertam, o mérito é do chefe, quando erram, a culpa é deles. 

Entretanto, há o outro lado da moeda: parte dos servidores públicos, como em qualquer instituição, são venais; outros, podem não o ser diretamente, mas se omitem, e sua omissão é muito danosa. Veem o errado acontecendo e, qual avestruzes, escondem a cabeça no buraco mais próximo. 

E não estamos abordando, aqui, o caso daqueles que por cansaço, desencanto, preguiça, mal costume, e assim por diante, impedem que haja qualquer tipo de avanço na administração governamental. 

Há um outro tipo de servidor, também, que é muito prejudicial ao serviço público, qual seja aquele que por compromisso ideológico ou mera opção “tribal” pelo grupo político derrotado, cuida de solapar diariamente a o novo governo. 

É sabido por quem quer que tenha alguma experiência na gestão de pessoas na gestão pública, que esse tipo de servidor é um dos maiores obstáculos, ao lado dos corruptos, na implementação de reformas administrativas, ou mesmo de ações, projetos ou programas governamentais. 

O mais das vezes são órfãos de governos anteriores, às vezes oligárquicos, ou têm um projeto específico de natureza ideológica a ser alcançado. E, por assim serem, criam obstáculos, engavetam documentos, fazem circular indefinidamente decisões que impliquem em ações, projetos e programas importantes, levantam dificuldades inexistentes, criam cizânias no ambiente de trabalho... 

São o joio no meio do trigo (Mateus 13:24-30). 

O gestor público, ao exercer qualquer cargo que implique em tomada de decisões, precisa estar extremamente atento ao acontece no ambiente no qual exerce seu comando. Às vezes seu órgão é pequeno, mas tem a imensa capacidade de atrapalhar toda a administração. 

Há meios eficazes para eliminar ou conter esse problema. Um deles é o critério do mérito; outro é do controle; por fim, o último, é o da punição. 

Qual o mais apropriado?

Veremos na continuação...

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

FELIZ NATAL, FELIZ ANO NOVO!

 


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Quando vi essa imagem pela primeira vez, ela tinha sido postada por minha querida amiga Camila Cascudo.

Hoje me lembrei dela e não resisti: aí está para vocês.

Na primeira vez e todas as outras que a vi, senti uma vontade muito forte de pegar essa criança no colo, abraça-la, cuidar dela, tentar manter esse sorriso lindo permanentemente em seu rosto.

É esse abraço que eu mando para todos vocês, enquanto um Feliz Natal e Ano Novo!

domingo, 20 de dezembro de 2020

CANGAÇO: UMA TRINCHEIRA EM MOSSORÓ, 1927, E O MISTERIOSO JÚLIO PORTO

 

blogdetelescope.blogspot.com
Mossoró, primeira metade do século XX

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Nos idos de 1925, o adolescente Raimundo Nonato Alfredo Fernandes, então com quinze anos, viu encostar, no terreiro da casa de seus pais, José Fernandes Chaves e Maria Adília Fernandes, um Ford 1922 com duas pessoas dentro. 

Era Elias Fernandes, que vinha convidá-lo para trabalhar com Alfredo Fernandes, proprietário da empresa do mesmo nome em Mossoró, e da lendária residência na Avenida Getúlio Vargas, vizinha, por um lado, à também lendária residência do Coronel Rodolpho Fernandes, de quem era cunhado, e que hoje é a sede da Prefeitura da Cidade de Mossoró, e, pelo outro, à também lendária Igreja de São Vicente de Paula.

Elias e Alfredo Fernandes, primos legítimos de Raimundo Nonato, eram filhos do Coronel Adolpho Fernandes, protagonista do “Fogo de Pau dos Ferros”, em 1919, quando sua família, por ele liderada, expulsou o líder político Coronel Joaquim Correia da cidade. O Coronel Joaquim Correia jamais voltou a Pau dos Ferros. E o Coronel Adolpho Fernandes era Prefeito (Intendente) da cidade quando Lampião atacou Mossoró.

A outra pessoa no carro atendia pelo nome de Júlio Porto, e era motorista da família Fernandes. Raimundo Nonato não sabia, mas viajou até Mossoró ao lado do seu primo e de um cangaceiro que teve papel importante nas articulações que suscitaram os ataques a Apodi, em 10 de maio, por Massilon e seu bando, e Mossoró, em 13 de junho de 1927, dessa vez por ninguém menos que o próprio Lampião. 

Atentemos para o detalhe: em 1922 Júlio Porto, natural de Aurora, no Ceará, já conhecia, e bem, Mossoró.

Passam-se dois anos. Estamos em 1927. Junho. No dia 13, Lampião invadiu Mossoró.

No final da Rua hoje denominada Dr. Francisco Ramalho, lateral da Igreja de São Vicente de Paula, no sentido de quem vai para o centro da cidade, do lado direito, na última residência, residia Ezequiel Fernandes de Souza, sobrinho do Coronel Adolpho Fernandes e sócio de Alfredo Fernandes. 

Nela, a poucos passos da Igreja, montou-se uma tosca trincheira para aguardar os cangaceiros.

Sob a liderança de Ezequiel Fernandes lá estavam sua esposa Ester(1), que havia dado a luz e padecia de febre puerperal; o chofer de um caminhão da Prefeitura que aguardava condições para retirá-la da cidade, mas que fugiu tão logo aconteceu os primeiros tiros; um freguês da empresa Alfredo Fernandes chamado de “Velho Chico”; e um amigo da família, Maurílio, que lá estava porque tinha raptado Isabel, sobrinha de Afonso Freire e a depositado sob os cuidados dos donos da casa.

Os demais, quinze pessoas, recolheram-se em um quarto no centro, no entorno da cama da doente: Ezequiel Fernandes; Pedro Ribeiro, seu primo; seus filhos Laete, Luís e Aldo; Francisco Fernandes de Sena (Chico Sena), seu sobrinho; Isabel; as domésticas Leonila e Esmerinda; as vizinhas Maria Leite e sua filha Laura; Julieta, filha de Delfino Fernandes; Alzenita Fernandes; e Raimundo Nonato, então com dezessete anos.

Os integrantes da trincheira, que se posicionaram no telhado da residência foram o “Velho Chico” e Maurílio(2).

Dessa vez Raimundo Nonato não chegou a ver Júlio Porto, mas o ex-motorista dos Fernandes que fora lhe buscar em Pau dos Ferros talvez tenha estado com os cangaceiros de Lampião e Massilon no ataque a Mossoró. Com certeza já estivera na invasão de Apodi, com Massilon.

Júlio Porto, o misterioso Júlio Porto, nasceu em Aurora, no Ceará, mesma cidade onde nascera e exercia enorme influência política no Cariri o Coronel Isaías Arruda. 

Em 1927 Júlio Porto tinha vinte e três anos de idade. Júlio Porto não era Porto. Seu verdadeiro nome era Júlio Sant’anna de Mello. O “Porto” viera de sua estreita ligação com Martiniano Porto, fidalgote nas terras do Apodi, e inimigo sangue-a-fogo do Coronel Francisco Pinto, líder político da cidade.

Martiniano Porto era relacionado por laços de interesse recíprocos com Tylon Gurgel e Benedito Saldanha(3) - futuro Prefeito daquela cidade -, todos ferrenhos opositores do Coronel Francisco Pinto.

Tylon Gurgel, por sua vez, era sogro de Décio Hollanda, e Benedito Saldanha, protetor de Massilon Leite no Ceará, fronteira com Apodi, o qual se considerava “afilhado” de seu irmão, o Coronel Quincas Saldanha, a quem chamava de "padrinho", desde os tempos de sua jagunçada em Brejo do Cruz, quando matou Manoel Paulino de Moraes, José Augusto Rezende (juiz da cidade), feriu Minervino de Almeida (também juiz), e Severino Elias do Amaral, a serviço de um consórcio de coronéis da região.

Júlio Porto pode ter sido um dos elos de ligação entre os inimigos políticos dos Coronéis Francisco Pinto e Rodolpho Fernandes, com o Coronel Isaías Arruda, pelo fato de ser de Aurora(4). Ele está presente em momentos cruciais ligados à invasão de Apodi e Mossoró.

Em seu depoimento à polícia Bronzeado corrobora essa versão, ao afirmar que:

“trabalhava com o senhor José Cardoso, que mora em uma fazenda do senhor Izaias Arruda chefe de Missão Velha e do qual o Cardoso é primo. Estava ali trabalhando quando chegou a ordem do senhor Izaías de seguirem para Apody, afim de fazerem o ataque já conhecido, a convite do senhor Décio Hollanda, morador em Pereiro. Ele e outros não queriam seguir, mas foram obrigados. O portador da carta de Décio fora o conhecido ‘chauffeur’ Júlio Porto, também bandido, que aqui morou”(5).

Júlio Porto conhecia Mossoró, portanto, como ninguém. Raul Fernandes nos relata o seguinte, em A MARCHA DE LAMPIÃO(6): 

"Joanna Bezerra da Silva, conhecida por Doca, deu-nos uma entrevista interessante: Morava em Mossoró. Empregada doméstica da casa de José de Oliveira Costa (Costinha Fernandes), comerciante, sócio da firma Tertuliano Fernandes & Cia. Disse que Júlio Porto fora por último chofer de caminhão da referida firma. Meses antes do assalto a Apodi, desaparecera de Mossoró. Vez por outra aparecia à noite, muito apressado. Entrava pelo portão do fundo do quintal da casa, pedia café à Doca e sumia. Aconteceu chegar vestido à moda de cangaceiros. Dizia ser o traje onde trabalhava".

Sendo de Aurora, Ceará, com certeza Júlio Porto sabia quem era José Cardoso, proprietário da Fazenda “Ipueiras”, parente e aliado do Coronel Isaías Arruda. A ele, quem sabe, apresentou Décio Hollanda, genro de Tylon Gurgel, amigo e correligionário de Martiniano Porto e Benedito Saldanha. Disse a Décio Hollanda, representante do grupo político contrário aos Coronéis Francisco Pinto e Rodolpho Fernandes, talvez, que José Cardoso era o homem certo para se chegar ao Coronel Isaías Arruda e, através dele, a cangaceiros e jagunços a serem comandados por Massilon.

É possível que Júlio Porto não tenha participado do ataque a Mossoró, embora estivesse na invasão de Apodi. Essa é a opinião de Calixto Jr, no excelente VIDA E MORTE DE ISAÍAS ARRUDA(7):

"Depois do assalto (a Apodi), tendo regressado a Aurora, Júlio Porto retorna à casa de Mundoca Macêdo no Angico, a quem vendeu por 95$000 um rifle e cinquenta balas que lhe havia sido cedido para a empreitada. Efetuada a venda, retirou-se para Juazeiro do Padre Cicero, onde viria a matrimoniar-se, ainda em 1927. Lançando mão de algum dinheiro que a esposa possuía, montou carpintaria nas proximidades da atual rua do Cruzeiro, onde trabalhou por uma temporada até ser preso".

Uma vez preso e recambiado para Apodi, como visto, e liberto por Roldão Maia, o assassino do Coronel Chico Pinto, então carcereiro ou coisa que o valha, sumiu no oco do mundo...

(1) Ester Fernandes não resistiu à doença e faleceu quatorze dias depois, no dia 27 de junho, cercada pela família.

(2) Tudo aqui é contado conforme o livro RAIMUNDO FERNANDES, ANTEPASSADOS E DESCENDENTES, da lavra de Inês Maria Fernandes de Medeiros, com alguns acréscimos.

(3) Do pesquisador Marcos Pinto, acerca de Décio Hollanda, Benedito Saldanha, e Tylon Gurgel, recebi a seguinte correspondência eletrônica, em 23 de janeiro de 2012: 

"Encontrei um fato por demais interessante no inquérito/processo que apurou o 'FOGO DE PEDRA DE ABELHAS'.

Consta por testemunha firme e valiosa que DÉCIO HOLLANDA comprou, no começo do ano de 1925, duas mil balas de rifle e mandou esconder em local que o Capitão Jacintho não conseguiu localizar. Agora, veja a coincidência: dois anos (1927) depois consta que Lampião recebeu um suprimento de duas mil balas de rifle quando se preparava para atacar Mossoró. 

Ora, se esta munição não foi gasta nem apreendida pelo Capitão Jacintho, é a mesma que Décio conduziu, em caixões muito bem disfarçados, “escanchados” em lombos de burro, segundo octogenários que ainda hoje comentam o episódio em Felipe Guerra.

Estou alinhavando um novo artigo que terá o seguinte título: “CANGAÇO NO OESTE POTIGUAR – DO FIO DA NAVALHA AO FIO DA MEADA. Vou provar por A mais B a proteção dada ao cangaceirismo por parte dos desembargadores FELIPE GUERRA e HORÁCIO BARRETO e do Juiz de Direito JOÃO FRANCISCO DANTAS SALES, que recebia abertamente, em sua casa em Apodi, Décio Holanda, Tylon Gurgel e Benedito Saldanha.

JOÃO DANTAS SALES foi transferido, “a pedido”, para Acari, em 25 de maio de 1925, por instâncias do Governador José Augusto, que convenceu o então Presidente do Superior Tribunal de Justiça Estadual, atual TJE.

Acrescente-se que HORÁCIO BARRETO era sobrinho de JUVÊNCIO BARRETO, que veio de Martins para Apodi em 1915, à convite de MARTINIANO DE QUEIRÓZ PORTO, para fixar residência e cerrar fileira na oposição à família PINTO comandada por Tylon Gurgel e seu genro Décio Hollanda. 

O Dr. José Fernandes Vieira também traficou influência em favor do seu sogro Martiniano Porto, sendo certo que, em 1925, o aconselhou a ir residir em Pau dos Ferros. 

Observo que os dois mil cartuchos que foram comprados por Décio Hollanda, o foram em Mossoró, em 1925. 

Lembrei-me de outra particularidade: o Desembargador Horácio Barrêto era sobrinho da esposa (Alexandrina Barrêto) do Governador do Rio Grande do Norte, Joaquim Ferreira Chaves, que deu apoio oficial à perseguição policial a Joaquim Correia e aos Ayres em Pau dos Ferros, em 1919. Horácio e Felipe Guerra foram indicados e nomeados desembargadores por Ferreira Chaves em 1919. 

Felipe Guerra foi candidato e eleito Deputado Estadual em 1934 na chapa dos “Pelabucho” na qual constava, ainda, Benedito Saldanha".

(4) Leiamos um auto de interrogatório de Júlio Porto no qual ele informa que é cearense e, também, que o guarda que lhe deu fuga, jagunço do Coronel Benedito Saldanha, foi o mesmo Roldão Maia que anos depois assassinaria o Coronel Chico Pinto: 

"Auto de perguntas feitas a Julio Sant’Ana de Melo, vulgo Júlio Porto.

Aos vinte e dois dias do mês de maio do ano de mil novecentos e trinta e três, nesta cidade de Apodi, município do mesmo nome, Estado do Rio Grande do Norte, em o salão da cadeia pública desta cidade, aqui presente o cidadão Osório Martins de Moura Brasil, Delegado de Polícia deste município, comigo escrivão abaixo assinado, presente o preso Júlio Sant’Ana de Melo, vulgo Júlio Porto, pela mesma autoridade lhe foram feitas as seguintes perguntas: Qual o seu nome, prenome, idade, estado, profissão, naturalidade, profissão, residência e se sabe ler e escrever? Respondeu chamar-se Júlio Sant’Ana de Melo, vulgo Júlio Porto, com vinte e nove anos de idade, solteiro, motorista, natural do Estado do Ceará, filho de Manoel Sant’Ana de Melo e Francisca Maria da Conceição, residindo nesta cidade, sabendo apenas assinar o nome. Perguntado como fugiu da prisão, quem o auxiliou e porque voltou? Respondeu que em o dia vinte do corrente mês, cerca de dezenove horas, com um pedaço de pau, abriu a prisão em que se achava e abrindo o portão, saiu pelo interior da cadeia; que se tinha alguma praça o guardando na ocasião em que saiu da prisão, não viu; que saiu na carreira na procura de Mossoró, onde destinava-se; que chegando no lugar chamado “Mato Verde”, e depois de subir a serra, resolveu voltar, chegando hoje nesta cidade, cerca de nove horas; que não teve quem o auxiliasse a fugir da prisão, bem assim quem o aconselhasse a fugir; que saiu como um doido quando saiu, pois estava bastante ébrio; que passou em casa de Arnóbio Câmara, despediu-se da mulher deste e saiu às carreiras; que Arnóbio não estava em casa quando passou por lá; que da casa de Arnóbio saiu pela estrada afora em busca de Mossoró; passou em casa de uma mulher conhecida por Preta, despediu-se da mesma e seguiu viagem; que no Sítio ? mais ou menos, nas proximidades da casa de José Honorato de Moraes, vulgo Zeca ?, pressentiu que ia a sua procura uma força; que ocultou-se dentro do mato e viu quando a força passou, reconhecendo serem uns soldados; que na tarde do dia em que fugiu andava só uns soldados da força do Tenente Virgílio Barbalho, e chegando em casa de Amália de Tal, os mesmos soldados tomaram um pouco de aguardente e deixaram um bocado em um copo para o respondente; que tomou o aguardente e saiu logo embriagado não sabendo o que ia fazendo; que quem trancou o respondente na prisão no dia em que fugiu foi o guarda Roldão, isso por lhe terem dito. E como nada mais disse..."

(5) O CANGAÇO NA IMPRENSA MOSSOROENSE; PIMENTA, Antônio Filemon Rodrigues; Tomo II; Coleção Mossoroense; Série “C”; nº1.104; 1999; Mossoró. 

(6) 4ª. Edição; Nota 9 ao Segundo Capítulo.

(7) CALIXTO JÚNIOR, João Tavares; Fortaleza: Expressão; 2019.

sábado, 19 de dezembro de 2020

POESIA: A BALADA DO RETORNO

 

https://estudiopratyahara.com.br/2019/03/03/noite-chuvosa-1314/

* Honório de Medeiros (honóriodemedeiros@gmail.com).

Agora, retorno.
Recolho as velas da minha nau imaginária. 
Solto a âncora.
Desço ao cais.
Respiro fundo a solidão da noite.
Olho as luzes, as construções, e sigo.
Caminho lentamente.
A neblina molha as pedras, me molha. 
Chego à minha porta. 
Entro.
Enxugo o rosto molhado com o braço.
Tomo um grogue. 
Eis que chega seu sorriso luminoso,
Seu colo perfumado,
Seu olhar de madrugadas.
Nossa história comum. 
Então, primeiro há o silêncio.
Depois, vinho, cantigas e risos.
Dança-se. 
Estou em casa.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

ELEGÂNCIA: A VELHA SENHORA

 

"Portrait Maman”, de Edith Blin. 1943, desenho a carvão, em http://artenarede.com.br/blog/index.php/retratos-de-uma-velha-senhora/

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Formavam um belo casal. 

Ambos já acima dos setenta, beirando os oitenta, cabelos totalmente brancos, andar pausado, vinham todos os dias, até nos finais de semana, tomar, por volta da hora do “ângelus”, uma sopa de legumes especialmente preparada para eles. 

Quando os vi pela primeira vez, despontando na esquina da rua onde estávamos, no restaurante, chamei a atenção: “vejam”. Vinham lentamente, de mãos dadas, parecendo um casal de namorados a apreciar a companhia um do outro, enquanto flanavam. 

Embora ela aparentasse ser mais idosa, estava em melhor estado de conservação. E notava-se claramente seu cuidado para com ele. Sua mão que enlaçava era também a que conduzia, guiando-o e o afastando de possíveis obstáculos, tais como irregularidades no calçamento ou cadeiras postas no meio do caminho. 

Mas não era só. Depois de sentados, era ela quem puxava conversa e lhe fazia breves relatos - querendo entretê-lo - aos quais ele pontuava com monossílabos, ou chamava sua atenção para algo diferente, tal como o olhar cândido e curioso da criança sentada na mesa próxima a sua. 

Mesmo após vezes seguidas observando-os, ao longo dos dias, quase nunca os vi sorrir. Eram muito sérios e somente em uma ou outra oportunidade pude surpreender um carinho eventual de um para com o outro. 

Não que isso demonstrasse distanciamento, ao contrário. Havia, entre eles, uma transcendência – era perceptível – quanto ao trivial de gestos desnecessários, típica de um relacionamento antigo, onde o entendimento era perfeito e o silêncio comum pleno de compreensão. 

Eu e os outros conversamos vezes sem conta acerca do casal, com quem os atendia. Tinham nascido em outro lugar, disse-nos o garçom, uma cidade grande, eram aposentados e tinham optado por não terem filhos. 

Agora, no final da vida, desejando mais tranquilidade, vieram para uma cidade menor onde não possuíam parentes próximos nem conhecidos. 

“Quem cuida deles?”, perguntei. “Ninguém; há uma moça que faz a limpeza do apartamento e do restante eles mesmos cuidam”. “Quando querem sair”, prosseguiu, “já têm um motorista de táxi de confiança que os leva para onde desejam ir”. “Saem?”, continuei. “Vão à missa, aos médicos...” 

Após algum tempo trocávamos cumprimentos, mas jamais passou disso. Havia certa reserva em cada um deles que desestimulava a aproximação para a conversa coloquial. 

Talvez já não tivessem interesse em construir novas relações e absolutamente não se sentissem solitários; quem sabe gostassem da solidão e do tipo de paz que ela lhes proporcionava? Se não fosse assim, por qual motivo teriam saído de sua cidade e vindo para cá, um lugar desconhecido? 

No fim, tudo acabou como esperado, como sempre acaba tudo. Ele teve um infarto fulminante e ela ficou só. No início, pelos relatos, pensou em continuar no apartamento que dividiam e tocar a vida. Mas um dia, quando cheguei e percebi sua ausência na hora de costume, fui informado que decidira partir e ir morar em um local especializado em idosos. 

Antes, aparecera para se despedir. Deixara, até mesmo, uma pequena lembrança, um “souvenir”, para cada um dos que trabalhavam no restaurante. Agradecera muito, delicadamente, toda a atenção recebida. Não tocara no assunto de sua viuvez, nem dissera para onde ia. 

Depois, apertara a mão dos proprietários, desejara felicidade, e se fora, com seu passinho miúdo, o vestido elegante, de talhe antigo, deixando, pela última vez, o cálido registro do esvoaçar dos seus finos cabelos brancos e um leve vestígio de “Fleur de Rocaille” no ar. 

Em mim, como vieram, foram-se. Deixaram por muito tempo uma lembrança vaga, um toque de melancolia de um matiz suave, crepuscular, como uma fotografia em sépia, algo a ficar em um nicho adormecido do meu museu de lembranças. 

Resolvi resistir proustianamente. Na medida dos meus limites, eis esse registro, enquanto homenagem à elegância, discrição, e à arte de cultivar a reserva pessoal, tão desprezada nos dias de hoje. 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

DESTINO: APENAS FAGULHAS NA NEBLINA

 

Barreira de Névoa | Ilustração: Tianhua X

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

"O mais velho estava seguindo os passos do pai, só que em outro ministério, e já se aproximava daquele estágio no serviço público em que a inércia é recompensada com a estabilidade" (A Morte de Ivan Ilitch, Tolstoi).

Esse pequeno trecho de uma das mais expressivas novelas do grande escritor russo nos mostra como o homem e suas relações são os mesmos, malgrado o tempo e a distância.

Aqueles momentos nos quais o homem parece romper com seu destino comum são fagulhas, e elas logo desaparecem na névoa da rotina.

Como se fôssemos livres para nadar no rio, desde que dele não saíssemos, e sempre terminássemos no mar.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

JUSTIÇA E DIREITO: JUSTIÇA? QUE JUSTIÇA?

 

Themis (falaguarda.blogspot.com)

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Aos meus alunos do curso de Filosofia do Direito, vez por outra eu propunha o seguinte problema: 

“Façam de conta que vocês são chefes de uma estação de trens, responsáveis, entre outras coisas, pela direção que as locomotivas devem tomar em seus percursos diários.” 

“Um dia, durante o expediente, vocês recebem um comunicado urgente lhes informando que uma das locomotivas que passam em sua estação está completamente desgovernada e em alta velocidade.” 

“Em sua estação vocês têm a possibilidade de direcionar a locomotiva, apertando os botões A ou B, por duas diferentes opções.” 

“Seu tempo para decidirem é extremamente curto. Algo como segundos. E implica em salvar vidas”. 

“Vocês sabem que na linha A trinta homens estão trabalhando na manutenção. Na linha B, cinco homens.” 

“Qual a decisão de vocês?” 

Em todos os anos de ensino, a resposta foi sempre a mesma: todos optaram por apertar o botão B. Ao lhes indagar porque faziam assim, respondiam-me que lhes parecia certo escolher a linha na qual estavam menos homens. 

Então eu lhes perguntava: “e se, na linha B, estava um engenheiro de manutenção, que por coincidência, era pai de vocês”? 

Seguia-se um silêncio embaraçoso. A grande maioria se recusava a responder à questão. 

Questões como essas começam a ser esmiuçadas pela psicologia social, um ramo que em muito deve seus avanços à combinação de duas vertentes poderosas: a teoria da seleção natural de Darwin, e o afã em larga escala, tipicamente americano, de realizar pesquisas de campo. 

É nesse nicho que transitou Leonard Mlodinow, festejado autor de “O Andar do Bêbado”, em seu novo livro denominado Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas. 

Mlodinow é doutor em física e ensina, ou ensinou, no famoso Instituto de Física da Califórnia. Mais que isso, ele é coautor, junto com Stephen Hawking – sim, isso mesmo – de alguns livros de inegável sucesso tanto de público quanto de crítica. 

Em Subliminar, Mlodinow, fundamentado em vasta pesquisa, nos encaminha a hipóteses instigantes, como essa que eu transcrevo abaixo: 

“Como enuncia o psicólogo Johathan Haidt, há duas maneiras de chegar à verdade: a maneira do cientista e a do advogado. Os cientistas reúnem evidências, buscam regularidades, formam teorias que expliquem suas observações e as verificam. Os advogados partem de uma conclusão à qual querem convencer os outros, e depois buscam evidências que a apoiem, ao mesmo tempo em que tentam desacreditar as evidências em desacordo. 

Acreditar no que você quer que seja verdade e depois procurar provas para justifica-la não parece ser a melhor abordagem para as decisões do dia a dia. 

(...) 

Podemos dizer que o cérebro é um bom cientista, mas é um advogado absolutamente brilhante. O resultado é que, na batalha para moldar uma visão coerente e convincente de nós mesmos e do resto do mundo, é o advogado apaixonado que costuma vencer o verdadeiro buscador da verdade.” 

Muito embora o autor se refira a advogados, claro que ele alude a todos quanto lidam com a tarefa de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica. 

Em assim sendo faz sentido acreditar, como muitos acreditam, que os juízes, por exemplo, primeiro constroem um ponto de partida extrajurídico (sua visão do mundo, seus valores, seus interesses pessoais etc.) e, somente depois, buscam evidências que apoiem suas futuras decisões. 

Isso é o que denominamos de Retórica, aquela esmiuçada por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca em A Nova Retórica. 

A partir do que os operadores do Direito constroem esse ponto de partida pode ser lida em um dos mais instigantes capítulos da obra de Mlodinow: “In-groups and out-groups”. Nesse capítulo o autor chama a atenção para um epifenômeno que, hoje, é fato científico: a tendência que temos de favorecer “os nossos”, amplamente estudada pela Sociologia e Antropologia a partir da Teoria da Seleção Natural: 

“Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de um ‘in-group’, e qualquer grupo que as exclui de ‘out-group’. (...) É uma diferença importante, porque pensamos de forma diversa sobre membros de grupos de que somos parte e de grupos dos quais não participamos; como veremos, também veremos comportamentos diferentes em relação a eles.” 

“Quando pensamos em nós mesmos como pertencentes a um clube de campo exclusivo, ocupando um cargo executivo, ou inseridos numa classe de usuários de computadores, os pontos de vista de outros no grupo infiltram-se nos nossos pensamentos e dão cores à maneira como percebemos o mundo.” 

“Podemos não gostar muito das pessoas de uma maneira geral, mas nosso ser subliminar tende a gostar mais dos nossos companheiros do nosso ‘in-group’.” 

Essa constatação – de que gostamos mais de pessoas apenas por estarmos associados a elas de alguma forma – tem um corolário natural: também tendemos a favorecer membros do nosso grupo nos relacionamentos sociais e nos negócios (...)” 

Ou seja, como diz o senso comum: para os amigos tudo; para os indiferentes, a lei; para os inimigos, nada... 

Se assim o é, e a ciência vem mostrando que sim, um dos corolários da obra de Mlodinow é pelo menos intrigante, e dá razão ao que dizem, desde há muito, vários pensadores, ou seja, a "visão de estamento", estudada por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder, contamina as decisões do aparelho judiciário. Não somente do aparelho judiciário. Contamina a produção, interpretação e aplicação da norma jurídica. 

Isso, também, quanto aos marxistas e anarquistas. Quanto aos darwinistas, nem se discute mais o assunto. Para quem não é anarquista ou marxista, basta Gaetano Mosca, autor de The Ruling Class, a Teoria da Classe Política, que também aborda, brilhantemente, essa perspectiva, quando trata da "classe política dirigente". 

Quase um consenso. 

E quanto ao mundo jurídico? Neste caso, ainda está muito atrasada a discussão. Ainda há "juristas" que discutem se Direito é ou não ciência...

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

CANGAÇO: A HISTÓRIA DO CANGAÇO, SUAS VERDADES E MITOS

 


Com a mediação do Professor Gilberto Cardoso, e para minha alegria, ao lado de Epitácio de Andrade Filho e Kydelmir Dantas, o que muito me honra, estaremos debatendo, a partir das 19 horas, a história do cangaço, suas verdades e mitos, no canal facebook.com/gcarsantos.

Aguardo vocês.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

HISTÓRIA: PAU DOS FERROS ONTEM E HOJE

 

Fonte: Wikipedia

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com). Originalmente publicado na Revista do Instituto Histórico do Rio Grande do Norte de nº 97.

Quando os europeus chegaram ao Rio Grande do Norte, lá por 1500, encontraram a grande nação tupi-guarani no litoral, representada pelos Potiguares, e, no Sertão, os Cariris, que significa “os tristonhos, calados, silenciosos”[1], ramo do povo Tapuia. 

Diz uma lenda recolhida por missionários, conta-nos Tarcísio Medeiros, terem os Tapuias vindos de um lago encantado do setentrião continental, como sugeriu Capistrano de Abreu, descendo a costa e fixando-se no interior depois de acossados pelos tupis. 

Os Tapuia/Cariris estiveram em evidência durante a “guerra dos bárbaros”, iniciada com a resistência à penetração da pecuária que se adensara nas ribeiras dos rios, áreas essenciais à sobrevivência dos animais, mas também à dos índios, durou sessenta e cinco anos (1685-1750), terminando com a completa vitória do homem branco, que os extinguiu[2]

No Sertão nordestino, especificamente no Sertão potiguar, existiram vários ramos dos Cariris, dentre eles os Pacajus ou Paiacus, que habitaram Portalegre, Francisco Dantas, Viçosa, Riacho da Cruz e Encanto, assim como os Panatis, habitantes de Pau dos Ferros, Encanto, Dr. Severiano, São Miguel e Rafael Fernandes[3]

No início do século XVIII, bandeirantes paulistas, missionários, senhores de engenho de Pernambuco, Paraíba, Bahia e Rio Grande, além de oficiais de alta patente que combateram os indígenas passaram a disputar as terras do Sertão norte-rio-grandense. Denise Matos Monteiro[4] nos relata uma dessas disputas entre grandes senhores de terras e escravos de Pernambuco e Bahia e colonos potiguares: 

“Dentre os sesmeiros de outras capitanias interessados nas terras do Rio Grande, estava, por exemplo, Antônio da Rocha Pita, da Bahia, que através de quarenta dos seus vaqueiros tentou expulsar da ribeira do Assú colonos que lá procuravam estabelecer fazendas de gado. Objetivando atender às reclamações desses colonos, o rei de Portugal mandou demarcar e medir as terras desses sesmeiros em 1701. Anos mais tarde, em 1733, seus descendentes receberam uma larga faixa de terra que se estendia, dessa vez, entre os atuais municípios de Pau dos Ferros e São Miguel, na ribeira do Apodi[5]”. 

É certo que a primeira sesmaria que se tem conhecimento, alusiva à região, foi requerida por Manoel Negrão em 1717, e dizia respeito ao lugar denominado “Podi dos Encantos”, presumindo-se que se trate da Data da Conceição[6]. Negrão declarava ser morador da ribeira do Apodi e ter descoberto o terreno em companhia de Domingos Borges de Abreu. 

Mas foi somente em 1733 que a Data da Sesmaria de Pau dos Ferros foi concedida a Luiz da Rocha Pita Deusdará, Francisco da Rocha Pita, Simão da Fonseca Pita, Dona Maria Joana Pita, todos filhos e herdeiros do Coronel Antônio da Rocha Pita. Como lembra Câmara Cascudo, os “Rocha Pita” eram baianos e foram grandes latifundiários no Rio Grande do Norte. 

Manoel Jácome de Lima observa: Diz Ferreira Nobre que em 1733 Francisco Marçal fundou uma fazenda de gado no local em que se achava a vila. Em 1738, afirma o Monsenhor Francisco Severiano no seu livro 'A Diocese na Paraíba', foi iniciada a construção de uma capela que em 1756 foi elevada à categoria de matriz com a criação da freguesia, a 19 de dezembro daquele ano.” Começava Pau dos Ferros. 

A paróquia de Pau dos Ferros é a mais antiga da zona Oeste do Estado e, na época, abrangia quase todo o território da atual Diocese de Mossoró. 

O nome da cidade surgiu quando do início do seu povoamento. José Edmilson de Holanda[7] assevera ter o nome da Fazenda de Francisco Marçal, fundada próxima a uma pequena lagoa, onde existia uma frondosa oiticica, passado ao povoado: 

“O nome inicial da fazenda passou ao povoado, pois desde a sua fundação era conhecida por Pau dos Ferros, em face dos vaqueiros gravarem, à ponta da faca, no tronco de frondosa oiticica existente à margem da lagoa, os ferros das reses tresmalhadas que por lá apareciam, com a finalidade de identificar o proprietário e a origem das mesmas. A oiticica servia de pouso para os comboieiros, boiadeiros e vaqueiros das fazendas que por lá passavam.” 

Em 1761 o município de Portalegre foi criado englobando o povoado de Pau dos Ferros. Entretanto já no fim do século XVIII a povoação era maior que sua sede e a cidade de Apodi. 

Em julho de 1841 os pau-ferrenses fizeram uma representação à Assembleia Provincial, assinada por 492 pessoas de todas as classes sociais, pedindo a criação do município. A Comissão de Estatística e Justiça, em parecer assinado por João Valentim Dantas Pinagé e Elias Antônio Cavalcanti de Albuquerque, foi favorável ao pleito, mas na sessão do dia 4 de novembro de 1841, o requerimento não foi aprovado. 

Em 1847 o deputado provincial João Inácio de Loiola Barros apresentou um projeto transferindo a sede da Vila de Portalegre para a povoação de Pau dos Ferros, pedido também rejeitado. 

Seis anos depois, em 12 de abril de 1853, os deputados Luiz Gonzaga de Brito Guerra, futuro Barão de Assú, e Elias Antônio Cavalcanti de Albuquerque (novamente), apresentaram um projeto para elevar a povoação de Pau dos Ferros ao status de Vila, com a denominação de Vila Cristina, mas não lograram êxito. 

Finalmente em 23 de agosto de 1856 projeto apresentado pelo Deputado Benvenuto Vicente Fialho, criando o município de Pau dos Ferros, foi aprovado. E em 4 de setembro de 1856 o Presidente da Província, Dr. Antônio Bernardo Passos, sancionou a Lei nº 344, elevando à categoria de Vila o povoado de Pau dos Ferros, e determinando os limites do novo município. 

Hoje Pau dos Ferros, com 259,959 km², limitando-se ao Norte com São Francisco do Oeste e Francisco Dantas, ao Sul, com Rafael Fernandes e Marcelino Vieira, ao Leste, com Serrinha dos Pintos, Antônio Martins e Francisco Dantas, e ao Oeste com Encanto e Ereré (CE), é uma cidade com mais de 30.000 habitantes fixos, segundo dados do IBGE/2017, muito embora nela circulem, em decorrência de sua posição de polo regional, cerca de cinquenta mil pessoas por dia. 

Cidade pujante, centro comercial e administrativo da região, centraliza a prestação dos serviços estaduais e federais, e sedia a Escola de Enfermagem Catarina de Siena, a Faculdade do Oeste do Rio Grande do Norte, a Faculdade Evolução do Alto Oeste Potiguar, o Instituto Federal do Rio Grande do Norte, a Universidade Anhanguera Educacional, a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e a Universidade Federal Rural do Semi-Árido. 

Ressalte-se, do ponto de vista cultural, a importância de sua Feira Intermunicipal de Educação, Cultura, Turismo e Negócios do Alto Oeste Potiguar (FINECAP), realizada anualmente e congregando toda a região. 

Não por outra razão, a cidade também é conhecida como “Capital do Alto Oeste” e “Princesinha do Oeste”, embora muitos a chamem de “Terra dos Vaqueiros”, ou, ainda, “Terra da Imaculada Conceição”, em homenagem a sua santa padroeira. 

Em 12 de abril de 2018.

[1] MEDEIROS, Tarcísio; “Proto-História do Rio Grande do Norte”; Rio de Janeiro: Presença Edições; Fundação José Augusto; 1985.

[2] LOPES, Fátima Martins: “Índios, Colonos e Missionários na Colonização da Capitania do Rio Grande do Norte"; Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado e Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte; 2003. 

[3] MEDEIROS FILHO, Olavo; “Índios do Açu e Seridó”; Natal: Sebo Vermelho; 2011. 

[4] MONTEIRO, Denise Mattos; “Introdução à História do Rio Grande do Norte”; Natal: Flor do Sal; 4ª edição; 2015. 

[5] Pág. 59.

[6] LIMA, Manoel Jácome de; in “Revista Comemorativa do Bicentenário da Paróquia e Centenário do Município de Pau dos Ferros (1756-1856-1956)"; Natal: Sebo Vermelho; Edição Fac-similar; 2015. 

[7] HOLANDA, José Edmilson de; “Pau dos Ferros: Crônicas, Fatos e Pessoas”; Natal: Gráfica Vital; 2011.