quarta-feira, 28 de novembro de 2012

OS MISTÉRIOS DO ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ, QUARTA E ÚLTIMA TEORIA, SÉTIMA PARTE


Honório de Medeiros
 

Quarta teoria: o ataque a Mossoró resultou de um plano político (sétima parte)
 

A oposição chegara ao cúmulo de tentar levar o Coronel Rodolpho Fernandes, um homem sério, respeitado, ao ridículo, como nos lembra Paulo Fernandes na mesma carta: 

As advertências à população e providências tomadas por meu pai eram exploradas pela oposição até com o ridículo. Chamavam-no, por exemplo, de velho medroso, por se preocupar com um possível ataque de Lampião à cidade (...). 

Raul Fernandes confirma: 

 Adversários políticos e maledicentes desfrutavam, com vantagem, o receio do Prefeito. 

Apesar dessa situação política tensa na qual vivia naquele momento, em 1927, o Prefeito, o futuro parecia promissor: sua liderança em Mossoró era inconteste, a cidade crescia a olhos vistos sob sua administração, dois dos seus três filhos homens faziam medicina fora e voltariam, brevemente, para dar continuidade a seu legado político, e sua família era, naquele período, uma das mais ricas do Estado. 

Mesmo assim o Coronel Rodolpho Fernandes não descuidava de tudo quanto lhe dizia respeito. Conhecia bem os meandros da política interiorana. Não saía de sua lembrança a forma violenta através da qual seus parentes de Pau dos Ferros tomaram o poder naquela cidade[1], mandando embora, definitivamente, seu maior líder político, à época, o Coronel Joaquim Correia.
 
Coronel Joaquim Correia 

As histórias acerca de feitos do cangaço corriam de boca-em-boca pelas feiras, praças e ruas de Mossoró, sempre envolvendo coronéis e tendo disputas políticas como pano-de-fundo, principalmente aquelas oriundas do Cariri cearense no qual, não fazia muito tempo, Pe. Cícero e Floro Bartolomeu tinham liderado a deposição do Governador do Estado do Ceará, pela força das armas. 

Notícias vindas do Acre, por sua vez, davam conta das aventuras de seu parente, o Coronel Childerico Fernandes, o Guerreiro do Yaco, irmão do Coronel Adolpho Fernandes, nessa mesma época Prefeito de Pau dos Ferros, repletas de violência, como a batalha da qual participara, enquanto um dos líderes, em Sena Madureira, à frente de trezentos homens fortemente armados[2].
 
Coronel Childerico Fernandes, o "Guerreiro do Yaco" 

O Coronel Chico Pinto também lhe punha a par dos desmandos de seus adversários que iriam redundar na invasão da cidade por Massilon e em seu assassinato, alguns anos depois, na campanha do Partido Popular contra o Interventor Mário Câmara. 

As estripulias de Massilon em Brejo do Cruz e região, agindo a mando de pessoas que também tinham interesses políticos em Apodi[3] e região; as histórias oriundas do Cariri cearense, de deposição de Coronéis por outros Coronéis através das armas; as desavenças com José Augusto Bezerra de Medeiros; os embates com a dura oposição que lhe era feita em Mossoró, tudo isso lhe trazia profunda preocupação. 

Assim lhe pareceram particularmente preocupantes as informações que pessoas a si ligadas por laços comerciais e afetivos lhe fizeram chegar por aqueles dias do começo do ano de 1927. É como nos conta seu filho Raul Fernandes, em trecho já citado: 

Na última quinzena de abril, de 27, a notícia veio à luz de modo concreto. Argemiro Liberato, de Pombal[4], escreveu ao compadre Rodolpho Fernandes sobre a pretensão dos chefes de bandidos. Dos remotos sertões de Pernambuco, da Paraíba e do Ceará surgiam indícios dos agenciadores da vergonhosa empreitada. 

Raul Fernandes diz mais a frente, em nota ao texto: 

Ouvi de meu pai referências à missiva. 

Raimundo Nonato, na introdução à primeira edição de seu celebrado “LAMPIÃO EM MOSSORÓ[5]”, recorda: 

Desde alguns meses, é certo, soprava dos sertões um vento de intranquilidade, de sobressalto e permanente insegurança.
 
Escritor Raimundo Nonato, festejado autor de "Lampião em Mossoró" e "Jesuíno Brilhante" 

Quem agenciava essa empreitada? A mando de quem? Com qual objetivo oculto? 

O Coronel Rodolpho Fernandes sabia mais do que deixava transparecer, naquele momento, aos que lhe eram próximos. 

Não falou a seus filhos acerca de tudo quanto estava por trás desse agenciamento que acontecia no Sertão paraibano e cearense; tampouco disse qualquer coisa a esse respeito, que tenha sido registrado para a história, a seus interlocutores nas reuniões onde expôs a possibilidade de invasão da cidade por Lampião e os convocou para sua defesa. 

Pressentia, entretanto, o Coronel, que o ataque à cidade, se viesse a acontecer, ocultava outro plano, um plano dentro do plano, cujo objetivo era ele. 

Que outra explicação podia ser dada, se não essa, analisando-se os fatos depois de acontecidos, para a excessiva concentração de forças defensoras no entorno de sua residência, quando era sabido que ele, individualmente, jamais teria, consigo, dinheiro suficiente para qualquer resgate que valesse a empreitada do ataque a Mossoró? 

Enquanto isso os planos dos seus inimigos iam, aos poucos, tomando corpo. 

Não seria possível a eliminação pura e simples de Rodolpho Fernandes, com base na jagunçada. Seria um escândalo de proporções nacionais, e, na medida em que centrado exclusivamente na sua pessoa, alvo de uma forte e exaustiva investigação. 

Mossoró, como visto, rivalizava com Natal em tamanho e importância. Era o escoadouro natural para onde desaguavam comerciantes do sertão paraibano, do Ceará[6], e de outras cidades do Rio Grande do Norte. Além disso, ficava a meio caminho entre Natal e Fortaleza e era quase litorânea, com porto importante para o recebimento e escoamento de pessoas e mercadorias. Uma cidade rica e próspera. 

A não ser que fosse possível embutir o projeto de eliminação de Rodolpho Fernandes em outro projeto maior, que funcionaria como cortina de fumaça: invadia-se Apodi[7], para caracterizar a presença do cangaço no Rio Grande do Norte, e, a seguir, invadia-se Mossoró, saqueava-se o que se pudesse saquear e, enquanto o ataque acontecia, um grupo especialmente escolhido atacava a casa do Prefeito de Mossoró e o assassinava, conduzindo a opinião pública à ideia de que tudo quanto acontecera fora consequência da existência do cangaço. 

Para executar essa estratégia, entretanto, era necessária a presença de muitos cangaceiros na invasão. E para ser possível a teoria de que a invasão de Mossoró por Lampião ocultava o projeto de matar o Coronel Rodolpho Fernandes, era preciso que essa trama tivesse sido anterior à entrada, nela, do Rei do Cangaço, do Coronel Isaías Arruda, mas não, obviamente, de Massilon Leite[8].

Em entrevista ao Autor[9], datada de 12 de maio de 2011, o pesquisador Marcos Pinto informa o seguinte:

Cresci ouvindo  meu  avô  paterno  ARISTIDES  FERREIRA  PINTO (18.04.1907 / 19.09.1975)  narrar, de forma  minuciosa, no  alpendre  de  sua  fazenda, a  saga do seu  irmão  Cel. FRANCISCO  FERREIRA  PINTO (17.04.1895 / 02.05.1934), sempre  relatando  trechos da  carta  escrita  pelo  mesmo, e  enviada  para o  seu  parente  RODOLFO  FERNANDES, por  emissário  especial, após o  célebre  ataque à  Apodi, por  uma  parte  do bando  do  famigerado  Lampião, comandados  pelo  célebre  cangaceiro  Massilon  Benevides, fato ocorrido  à  10 de Maio  de  1927. 

Lembro-me que o meu avô fez o relato sempre observando ter ouvido inúmeras vezes do seu perseguido irmão, em que dentre o intrincado de particularidades da missiva informando o Rodolfo, destacava:                           

Que fora informado por pessoa de acentuada estima e confiança, de que fora armado um complô com fito único de exterminá-los fisicamente, engendrado pelo quarteto sinistro composto por Jerônimo Rosado, Felipe Guerra, seu cunhado Tilon Gurgel, que por sua vez arregimentou a participação do seu genro Décio Holanda; 

O alerta a Rodolfo para a necessidade e cuidados de chefe de estado maior em só arregimentar pessoas de sua mais íntima amizade e confiança, de preferência parentes; 

Que o complô tinha como objetivo abrir lacunas nos executivos de Apodi e Mossoró, proporcionando a assunção de Tilon Gurgel em Apodi, e o retorno de Jerônimo Rosado ao comando do executivo mossoroense, em Presidência da Intendência municipal (Equivalente ao de Prefeito) já ocupara para o período 1917-1919, tendo como Vice-Presidente da Intendência (equivalente ao cargo de Vice-Prefeito) o Dr. Antônio Soares Júnior, genro de Felipe Guerra;          

Antes de adentrar na resposta, faço a observação de que o grande e profícuo historiador VINGT-UN ROSADO enfatizou, em um dos seus livros em que aborda a atuação de seu irmão Dix-Sept como governador do RN, a importância do mesmo ter ratificado o intrínseco vínculo de amizade existente entre seu pai (Jerônimo Rosado) e o Dr. Felipe Guerra, com a nomeação do Dr. OTO GUERRA para o pomposo cargo de Procurador Geral do Estado.                    

Acredito  que  o  sutil  afastamento  do  VINGT-UN  em  relação  a  minha  pessoa  dera-se  em  decorrência  de um  artigo que escrevi  em  um  jornal  de  Mossoró, com  o  sugestivo  título  "FORJARAM  FATOS  NA  HISTÓRIA DE  MOSSORÓ"  em que  desmitifiquei   fatos  supostamente históricos  elencados  por  VINGT-UN  sobre  o  "MOTIM  DAS  MULHERES"  e  sob  o  verdadeiro  motivo  que fez  com  que  o  então  governador  DIX-SEPT  ROSADO  encetasse  a  viagem  ao  Rio de Janeiro, então Capital  da  República, ou seja, que a  viagem  dera-se  em atendimento  a  um telegrama  enviado  pelo  Presidente  Getúlio  Vargas, que  pretendia  aparar  arestas existentes entre  DIX-SEPT  e  o  CAFÉ  FILHO, então  Vice-Presidente  da  república.  Ressalte-se  que  o Dr. VINGT-UN  nunca deixou  de  saudar-me  quando  nos  encontrávamos.  Em que cofre estará  escondida  a  carta  do  Cel. Francisco Pinto? Terá sido incinerada  pelo  Dr.  Aldo  Fernandes, genro  de  Jerônimo  Rosado ?  Por que  deram  sumiço  a  essa  prova, que  paira  apenas como uma  referência  metafórica  a  um segredo?

Os  interesses  políticos  e  pessoais  que  uniam  JERÔNIMO  ROSADO, FELIPE GUERRA  e  seu  cunhado  TILON GURGEL, somado  à  intrínseca  participação  do seu genro Décio  Holanda, conduz  à  certeza  de  que havia  um  consórcio em confidências  íntimas  e  profundas. Delas se poderá  até  deduzir  que, nos  episódios  dos  10 de Maio  de  1927  e  de  13 de Junho  do mesmo  ano, Jerônimo  e  Felipe  Guerra  atuaram  como  espécies  de   mentores  com  acentuadas  ascendências. As  perspectivas de  sucesso  das  nefastas  empreitadas  alegravam  perversamente  os seus  espíritos.  Em  sentido  adverso a eles, os desígnios  divinos anularam  tamanha  virulência  em  matéria de  inveja  e  cobiça. Nuances que  anularam  seus princípios de homens públicos  e  anulam  suas  individualidades.  Foram   pródigos  em protagonizarem  distorções  de  caráter. A ânsia  pelo  poder fez com que perdessem  inteiramente  o  contato  com  a  realidade. 

O PLANO DENTRO DO PLANO 

Há indícios que isso seja possível? Há. Basta que nos lembremos dos interesses políticos existentes em descartar o Coronel Rodolpho Fernandes de sua liderança no Oeste e Alto Oeste Potiguar. E basta que nos lembremos das relações de Massilon com os Coronéis Quincas e Benedito Saldanha. 

A comprovação desses interesses é o menosprezo e a agressividade com a qual o Prefeito é tratado quando expõe a possibilidade de invasão da cidade; outra é o permanente trabalho de intriga contra si realizado junto a José Augusto Bezerra de Medeiros, Governador do Estado, já relatado; outra, ainda, é o apoio político e pessoal por ele dado ao Coronel Chico Pinto, em Apodi. 

Cabe lembrar, também, que o Prefeito de Pau dos Ferros, em 1927, o Coronel Adolpho Fernandes, pai de Alfredo Fernandes, primo e dono do palacete vizinho ao do Coronel Rodolpho Fernandes, e um dos seus principais suportes financeiros na compra das armas para a resistência mossoroense, era adversário político ferrenho de José Augusto Bezerra de Medeiros.
 
Alfredo Fernandes, muito rico, parente próximo de Rodolpho Fernandes, contribuiu financeiramente para a aquisição de armas para a resistência a Lampião em Fortaleza, onde morava 

José Augusto Bezerra de Medeiros depusera os Maranhão do poder e, assim, lançaram na oposição, em Pau dos Ferros, seus aliados (dos Maranhão) naquela Região. Aliados que tinham recebido todo o apoio de Ferreira Chaves, o último da oligarquia Maranhão a governar o Estado, para promover a tomada, em anos passados, pela força das armas, do poder do qual dispunha seu adversário, o Coronel Joaquim Correia. 

Mágoas antigas, mal curadas, essas e muitas outras, redundaram no descaso proposital, QUIÇÁ COSTURADO POLITICAMENTE PELOS QUE TINHAM INTERESSE no fim do poder político dos Fernandes, com que José Augusto Bezerra de Medeiros recebeu o pedido de socorro que o Coronel Rodolpho Fernandes lhe enviou, como nos conta Raul Fernandes[10]: 

Apelaram ao Governador do Estado. (...) ‘Desiludidos de qualquer providência do Governo Estadual’, os mossoroenses compreenderam que teriam de contar com os próprios recursos. 

Se houve, portanto, um plano dentro do plano, então a estratégia foi a seguinte: as verdadeiras causas do assassinato do Coronel Rodolpho Fernandes ficariam ocultas sob o pó que o ataque cangaceiro a Mossoró levantaria; e a estranheza de um ataque de cangaceiros diretamente a Mossoró não seria percebida, pois, antes, fora banalizada por outro ataque, este a Apodi, claro que em menores proporções, para não chamar muita atenção.

Ora, com o ataque a Apodi matavam-se dois coelhos com uma cajadada só: introduzia-se o cangaço no Rio Grande do Norte, criando-se a necessária “cortina de fumaça”, desmoralizava-se o Coronel Chico Pinto e sua liderança, bem como se eliminava a estranheza de um ataque cangaceiro direto a Mossoró, uma cidade grande e quase litorânea de um Estado até então livre da praga do cangaço. 

CONTINUA... 

PARA ENTENDER ESTE TEXTO É CONVENIENTE LER OS TEXTOS ANTERIORES POSTADOS EM www.honoriodemedeiros.blogspot.com PROCURE Cangaço, DENTRE OS Marcadores, E LEIA TUDO QUANTO FOI ESCRITO ANTES ACERCA DO TEMA.


[1] Ver “O Fogo de Pau dos Ferros” em “MASSILON”, do Autor.
 
[2] Ver “DICIONÁRIO DAS BATALHAS BRASILEIRAS”; DONATO, Hernâni; verbete “SENA MADUREIRA”, bem como “O GUERREIRO DO YACO”, FERNANDES, Calazans.
 
[3] Os Saldanhas.
 
[4] Cidade paraibana onde nasceu Jerônimo Rosado. Pertence à mesma área de Brejo do Cruz, PB, cidade na qual eram influentes as famílias Maia e Saldanha.
 
[5] Sexta edição; Coleção Mossoroense; 2005; Mossoró.
 
[6] Limoeiro do Norte, Aracati e adjacências.
 
[7] O maquiavelismo, aqui, do qual Massilon seria o executor, teria sido no sentido de que ele sabia que o Coronel Chico Pinto não seria morto, porque sua morte teria tal repercussão que inviabilizaria o “plano dentro do plano”, mas, disso, não sabiam as lideranças menores apodienses envolvidas, caso contrário haveria perda de prestígio político por parte de quem estava manipulando as ações por trás dos cordéis e precisava continuar dominando o cenário político em Apodi e Região.
 
[8] Como explicado acima, a chegada inesperada de Lampião em Aurora, CE, pode ter precipitado a execução da estratégia cujos desdobramentos foram anunciados ao Coronel Rodolpho Fernandes pela carta de Argemiro Liberato. Existem, também, relatos de uma famosa carta enviada pelo Coronel Chico Pinto ao Coronel Rodolpho Fernandes informando-lhe acerca do próximo ataque a Mossoró. Dá notícia desta carta o jornal “CORREIO DO POVO” (NONATO, Raimundo; “LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; Sexta edição; Coleção Mossoroense; 2005; Mossoró).
 
[10] “A MARCHA DE LAMPIÃO”; Editora universitária; Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 1981; 2ª edição; Natal, RN. 

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

DO TÉDIO


 
Honório de Medeiros
                                                                                                                                             Os fartos reclamam do tédio. É insidiosa - essa reclamação - idêntica, em sua onipresença, àquela fulva neblina da qual falou Elliot, em "A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock". Comentam, até, em tom veladamente triste, os saciados, que nos países escandinavos a juventude, entediada, está se suicidando. Assim como na Suíça e outros menos votados.

"Taedium Vitae", diziam os romanos. Aliás, os mais belos textos, em minha opinião, oriundos daquela época, são os de Sêneca, Lúcio Aneu Sêneca, um estoico de carteirinha. Em "Consolação à minha mãe Hélvia", ou "Apocoloquintosis", são vertidos, em melancólica linguagem, conselhos para superar-se a dor da existência, a custo de desprezo por ela.

Curiosamente esse estoicismo, defendido por Sêneca, e iniciado por Zenão, o Grego, sob distintas roupagens, floresceu mais ou menos na mesma época, em diferentes regiões da terra sem que, aparentemente, houvesse elo entre elas. Temos a Hélade, onde surgiu no Ocidente, Roma, séculos depois, a Índia, com o Budismo, e a China, com o Taoísmo. Existiria uma raiz comum?

Um pouco mais recentemente - quando o romantismo assumia contornos lúgubres - talvez chamássemos o tédio de "inquietude d'alma". Assim mesmo, com apóstrofe e tudo. Esse tédio era decorrente de uma angústia filosófica - o homem queria saber qual o sentido da vida, para onde caminha a humanidade, etc.

Hoje, a realidade é outra. O senso prático predomina. Na aldeia global, altamente informatizada, no mundo formigueiro, esse tédio é algo a ser combatido por terapeutas, psicólogos ou coisa que os valha, imediatamente, se afetar o processo de adaptação social. Lógico. O sistema não quer pessoas questionando o sentido de tudo que lhe cerca. Ela os quer trabalhando, produzindo. Em outro nível, o superficial, falar-se em tédio, é quase um cumprimento, contanto que essa afirmação seja dita assim, mais ou menos, como quem diz, languidamente, estar com preguiça.

Ora, o tédio, também hoje, é para os fartos. Aqueles que não o são sequer têm direito a isso - a luta pela sobrevivência não lhes permite. Dessa forma ele é, digamos, uma consequência do bem-estar - entediam-se apenas os que podem.

Quem quer que ouse afirmar que esse tédio é decorrência de outra coisa que não a ausência de dinheiro no bolso e um bom lazer serão olhado de soslaio. Haverá, dependendo da plateia, certo interesse cauteloso, mas não passará disso. Afinal, quem se entedia em Manhattan, Paris, Rio de Janeiro? Se a ousadia for além, e enumerarem-se as causas que levam os homens a entediar-se, como por exemplo, o ócio, abre-se a porta para o constrangimento.

Ernst Becker escreveu um livro chamado "A Negação da Morte", que até lhe deu o prêmio Pulitzer, acerca do que ele considera o impulso psicológico primordial no homem. Tal impulso seria oriundo do medo da morte. Freud não tinha razão, segundo ele, quando apostava todas suas fichas no complexo de Édipo. Mas Otto Rank, que foi um seu discípulo não tão badalado, sim. E, para ele, o homem é um grande mentiroso - todas as suas lutas são ambições de imortalidade, tenham sido elas grandes ou pequenas. Ou seja, por exemplo, o desejo de procriar, ter filhos, nada mais é que uma aposta - perdida - contra a morte.

Becker foi mais além. Pegou o pensamento de Kiekergaard (não aquele que originou "O Diário de Um Sedutor") e extraiu-lhe a essência. Para Sorën Kiekergaard tudo isso que Rank disse é mais que verdade (lógico que não foram contemporâneos; este antecedeu aquele), embora visto dentro de uma perspectiva mística, ou seja, a única realidade neste mundo de ilusão seria a morte, companheira do homem desde seu nascimento e, a forma de enfrentá-la, criar um caminho para Deus.

Pois bem, no final sobrou algo assim: Becker acha que o impulso primordial psíquico do homem é originado pelo seu temor à morte; esse temor o leva a construir uma mentira vital para si - empreender uma ambiciosa história pessoal em busca da imortalidade seja qual seja ela (carreira política, etc.); mas o que conta, realmente, é a consciência do ato criador: criar é á única forma de transcender os limites da morte. Alguns têm consciência disso; outros, não.

Dentro de outro contexto, essa opção por criar é, talvez, a resposta inteligente para combater o tédio. Isso para quem possuir alguns neurônios a mais, lógico. Explica-se, assim, porque profissionais bem sucedidos, mas nauseados com a máquina de moer gente que é a luta pela sobrevivência, largam tudo e começam outra vida, mais conforme com essa ansiedade íntima de criar algo, ao invés de ser mero instrumento dos projetos de imortalidade dos outros.

Observe-se que muitas pessoas recusam-se a pensar acerca desse assunto. Embriagam-se de trabalho, sexo, drogas, qualquer outra coisa, mecanicamente. Fogem. Pensar faz sofrer, segundo eles. O lema é "vamos tocando a vida, vivendo seus bons momentos, e deixando o resto para lá". E pronto. Aceitam constatar que o tempo passa e destrói os sonhos mais íntimos mas, é isso mesmo, acontece com todos.

Talvez haja certa lógica nessa postura. Afinal, como dito acima, desde há muito o homem pondera, mede e aquilata o tédio e nada. Talvez faça parte da condição humana, dizem eles e, como tal, não tem jeito.

O certo é que há muitos tédios. E só há um. Ou seja, cada qual com seu tipo de sapato, embora todos o usem. E, parece, no final das contas ele é um instante que pode ou não durar muito. Até neste caso o tempo é relativo. Mas sendo ou não de curta duração, somente surge pela falta de algo: satisfação com a vida que se está vivendo, embora a mesma esteja sendo, digamos, confortável.

Mas, qualquer que seja ele, desde Hesíodo e seu "Os Trabalhos e os Dias", a receita para combatê-lo, a mais simples, é o trabalho. De preferência criativo. Isso, desde que não se siga a Bíblia ao pé da letra. Por que está lá, no Eclesiastes: "Que vantagem tem o homem, de todo o seu trabalho, que ele faz debaixo do sol?" (1,3).

sábado, 24 de novembro de 2012

DE COMETAS POLÍTICOS


 
 

Honório de Medeiros

 

                                      Alguns políticos são líderes de um sistema de forças políticas.
 
Porque sistema? Para diferenciá-lo de conjunto, um aglomerado de alguma coisa reunido sem qualquer propósito específico. Um monte de pedras, por exemplo, largados em algum lugar.
 
“Forças políticas”, por sua vez, são segmentos constituídos por militantes expostos ou não, que embora integrantes do todo que é o sistema, atuam em espaços e tempos distintos: há o âmbito municipal, o estadual, o federal; há o judiciário, o legislativo, o executivo; há a Igreja Católica, a Evangélica, o Candomblé; há os homossexuais, os negros, as mulheres, os jovens; há os intelectuais, os técnicos, os carregadores-de-piano, há os servidores públicos e os celetistas; há as associações de classe e os sindicatos, e assim por diante. Cada segmento desses é uma força política em si mesma.
 
                                      O líder de um sistema de forças políticas possui seguidores firmes, no topo e/ou na base, em todos esses segmentos, que são elos de ligação, pontos de intersecção, núcleos irradiadores e receptores da teia ou rede que é como visualmente podemos conceber o ambiente e o tempo onde o sistema se espraia ou se concentra. Tais seguidores podem ter herdado seu próprio “status” ou mesmo tê-lo conquistado ao longo de um processo às vezes demorado, às vezes rápido, mas plenamente absorvível, desde que respeitada a tessitura, o bordado que o compõe e que é seu limite natural de sobrevivência.
 
                                      Sabe-se acerca da existência de um sistema de forças políticas por intermédio de vários meios, mas o apropriado, realmente, é utilizar o princípio da exclusão ao se analisar o quadro político onde supostamente ele estaria inserido. Basta, então, nos perguntarmos, ao analisarmos um determinado espaço delimitado geograficamente, como o Rio Grande do Norte, qual grupo político nele não poderia faltar, sob pena de descaracterização da pesquisa.
 
Da mesma forma, podemos utilizar o mesmo princípio da exclusão para localizarmos, sem qualquer dúvida, qual o verdadeiro líder de um sistema político: será sempre aquele sem o qual há um vazio de poder inaceitável, uma fragmentação de toda a rede ou teia, um desmoronamento de todo arcabouço construído.
 
                                      Obviamente dentro do próprio sistema de forças políticas às vezes o líder é conduzido, embora sempre pareça o oposto; da mesma forma, pode ocorrer, em vida, abruptamente ou não, o deslocamento do bastão de comando das mãos do antigo líder para as de outro mais jovem. Em sistemas de forças políticas razoavelmente sofisticadas, apesar de alguns abalos de percurso, esse processo ocorre naturalmente, embora também haja o contrário, situação esta que, o mais das vezes, conduz a rupturas que iniciam o seu desmanche.
 
                                      O certo é que há políticos, em contraposição, que não lideram sistemas de forças, mas um conjunto de agregados, vez que não comandam, coordenam ou dão direção à teia, rede, ou malha, com algum propósito que não seja a mera e instintiva sobrevivência.
 
Não possuem núcleos de Poder nos quais se firmem; não conhecem intercessões técnicas nos processos nos quais estão inseridos; não recebem e enviam informações através de mecanismos de busca e recepção confiáveis.
 
Por não possuírem recursos humanos qualificados dos quais se valham em qualquer situação, tais líderes políticos supõem comandar quando, na realidade, são pautados ou manipulados a uma distância além da possibilidade do seu entendimento; por não compreenderem que o instante não faz a história; a força não cria o Poder; a circunstância não elabora o definitivo; o presente não engendra o futuro ansiado; o efêmero não constrói o permanente; e a decisão solitária não tece a sabedoria.
 
Firmam-se, em contraposição à perenidade concreta dos sistemas planetários, para usar uma analogia pobre, mas consistente, como cometas[1] que brilham majestosos por algum tempo, mas logo se desfazem em pó, sequer deixando sua marca no imenso espaço do Universo.

[1] Introdução aos Cometas (http://www.if.ufrgs.br/ast/solar/portug/comet.htm): cometas são corpos pequenos, frágeis e irregulares, compostos de uma mistura de grãos não-voláteis e gases congelados. Eles têm órbitas altamente elípticas, que os trazem para muito perto do Sol e os jogam profundamente no espaço, freqüentemente para além da órbita de Plutão.
 
 

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

"O TEMPO PASSA E EU NÃO VEJO: DURMO NOVO E ACORDO VELHO"



Honório de Medeiros

Seu Antônio de Luzia, oitenta e seis anos, sentado em sua cadeira de balanço, na calçada de sua casa, no Sítio Canto, em Martins, é o próprio símbolo da passagem inalterável das manhãs, tardes, noites, madrugadas, do ritmo lento dos dias que se sucedem bucólicos, tais e quais as contas debulhadas do rosário de Sinhá, oitenta e poucos não admitidos, deslizam por entre seus dedos, à hora do ângelus, enquanto seu pensamento vagueia nos limites de sua circunstância, e nada escapa do seu olhar dardejante e de seus ouvidos “de tuberculoso”, como me confidencia ela.

Pergunto a Seu Antônio acerca das coisas que estão mudando mundo afora, em uma rapidez vertiginosa, impossível de serem acompanhadas. Lembro a ele a chegada do homem na Lua, o computador, o celular...

Ele fica calado um bocado de tempo. Quando penso que esqueceu o assunto, ergue um pouco o braço e aponta com o dedo um passante, quebra o silêncio do final-de-tarde e me diz: “desde que o mundo é mundo, podem as coisas ter mudado, mas o homem, meu filho, é o mesmo de sempre”.

“Quando eu era de menino para rapaz”, continua, “pensava que as pessoas lá fora eram diferentes. Viajei, corri légua, vi e ouvi muitas coisas que eu prefiro esquecer, e voltei. Fico comparando o homem que vive lá fora com o homem que vive aqui, e não vejo diferença. Lá se mata, como aqui; lá se bebe, como aqui; lá se trai, como aqui; lá se rouba, como aqui. Tudo que existe lá fora, maior, existe aqui, menor”.
 
Fez-se silêncio, novamente, durante algum tempo.

“Eu às vezes penso” prosseguiu, “que tanto faz como tanto fez, o homem se engana demais com as coisas, é como a roupa que a mulher veste: pode ser de qualquer tipo, mas ela é sempre a mesma”.

                            E, depois de beber um gole de café, arrematou: “lá fora o tempo passa e eu não vejo: durmo novo e acordo velho; aqui, eu vejo que o tempo não passa: faz uma eternidade que estou vivo!”.


* Imagem do vendavaldasletras.wordpress.com

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

OS MISTÉRIOS DO ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ, QUARTA E ÚLTIMA TEORIA, SEXTA PARTE


Honório de Medeiros

Quarta teoria: o ataque a Mossoró resultou de um plano político (sexta parte)

JERÔNIMO ROSADO

No que diz respeito à Mossoró e a Jerônimo Rosado, a historiografia é avara em relação a essa época, excetuando-se as obras de Raul Fernandes e Raimundo Nonato, que tratam apenas do episódio específico da invasão da cidade por Lampião.

Não há, como se pode constatar, mesmo quando consultamos “NOTAS E DOCUMENTOS PARA A HISTÓRIA DE MOSSORÓ”, de Luis da Câmara Cascudo, ou “HISTÓRIA DE MOSSORÓ”, de Francisco Fausto de Souza, praticamente nada alusivo aos anos vinte.

Sabemos, entretanto, por textos esparsos, que o começo da ascendência dos Rosados em Mossoró nasce com o século XX, a partir de Jerônimo Rosado, paraibano de Pombal, que se casara com uma integrante da tradicional família Maia[1], enviuvara, desposara sua cunhada, e estava em Mossoró desde 1890 pelas mãos do líder político – já nos idos de 1917 - Coronel Francisco Pinheiro de Almeida Castro, casado com Dna. Yayá[2], da família Veras e Saldanha, parenta, portanto, de Benedito Saldanha.

Sob a liderança de Almeida Castro, Jerônimo Rosado  foi Presidente da Intendência Municipal de Mossoró entre 1917 – 1919[3]:

Presidente[4] da Intendência: Jerônimo Rosado; Vice, doutor Antônio Soares Junior[5]. Intendentes: Sebastião Fernandes Gurgel, Francisco Xavier Filho, Francisco Borges de Andrade, Raimundo Leão de Moura e Camilo Porto de Figueiredo.

Em 1920-1922 Jerônimo Rosado seria, novamente, intendente (vereador). Muito amigo de Almeida Castro, chegando a ser, junto com Rafael Fernandes, um dos dois principais suportes de sua trajetória política, quando aquele, em 1921, seguiu para o Rio de Janeiro no intuito de assumir seu mandato de Deputado no Congresso Federal, Jerônimo Rosado foi designado, junto com Rafael Fernandes, para assumir a direção política do município, em carta aberta à população[6].

Mas em 20 de junho de 1922 morria Almeida Castro.

Poucos dias depois, no “O Mossoroense” de 15 de julho de 1922, em sua primeira página, é publicado um Edital do Partido Republicano Federal informando a população que a chefia política do Município ficaria sob os cuidados de um Diretório constituído por Raphael Fernandes, como Presidente; Cel. Manoel Cyrillo dos Santos, Vice; e Jerônimo Rosado, 1º Secretário, dentre outros.

Nesse mesmo “O Mossoroense” se informava que Raphael Fernandes fora indicado pelo Governador Ferreira Chaves para substituir Almeida Castro no Congresso Federal.

Chegavam os Fernandes, assim, à chefia política da segunda maior cidade do Rio Grande do Norte, com forte influência em todo o Oeste e Alto Oeste potiguar.

Consequência dessa situação vai ocorrer logo em 1926, quando da escolha do novo Prefeito de Mossoró: 

1926-1928: Presidente, Rodolpho Fernandes de Oliveira Martins; Vice, Hemetério Fernandes de Queiroz. Intendentes: Luís Colombo Ferreira Pinto, Francisco Clemente Freire, Antonio Teodoro Soares Frota, Manuel Amâncio Leite e Francisco Borges de Andrade[7].

Por qual razão Jerônimo Rosado foi preterido? Tanto o Presidente, quanto o Vice, eram ligados por laços familiares diretamente a Rafael Fernandes. Jerônimo Rosado foi, assim, escanteado das posições políticas que o falecido Almeida Castro para ele reservou ao longo de sua vida de liderança em Mossoró.

Não que Jerônimo Rosado, discreto, lamentasse publicamente o fato. Muito antes pelo contrário. Em Mossoró era pública e notória sua amizade com Raphael Fernandes.

Mas não havia qualquer aproximação sua com o Coronel Rodolpho Fernandes. Ficou ele ressentido com seu alijamento do poder?

Por sua vez os coronéis Quincas e Benedito Saldanha, se de fato planejavam a hegemonia política na região, e para tal lutaram tão ferozmente contra o Partido Popular alguns anos depois, defendendo o Interventor Mário Câmara, contavam, portanto, com esses dois fatos, para tentar a ampliação de seu espaço de poder no Oeste potiguar: o desejo do Governador José Augusto de minar a liderança ascendente dos Fernandes e ressentimento de Jerônimo Rosado com seu alijamento do topo da política mossoroense pela ascensão do Coronel Rodolpho Fernandes.

Não que Jerônimo Rosado fosse homem de maquinações maquiavélicas na luta pelo poder, diga-se de antemão. Pelo menos até onde se sabe. Muito antes pelo contrário, é de se presumir. Sua conduta foi e é considerada irrepreensível até hoje.

Mas era uma liderança política inconteste e influente em Mossoró, respeitado política e empresarialmente, muito mais significativa, em termos de prestígio, que Antônio Soares, o “nome” da oposição e do Governador José Augusto em Mossoró.

Se Almeida Castro, anos antes, rompera com os Maranhão[8], não seria estranho Jerônimo Rosado romper com os Fernandes e se aliar a José Augusto.

E os coronéis Quincas e Benedito Saldanha sabiam que graças aos laços familiares de Jerônimo Rosado, natural de Pombal, na Paraíba, casado duas vezes no seio da família Maia, tradicional aliada dos Saldanha, com o desaparecimento do Coronel Rodolpho Fernandes da política, a balança penderia a seu favor em Mossoró e Região.

Contra Jerônimo Rosado depõe sua estranha ausência na defesa da cidade que escolhera para si e sua família e que o recebera tão bem ao ponto de lhe guindar à participação concreta na sua elite dirigente. Não há registro, sequer, de sua participação nas reuniões promovidas pelo Coronel Rodolpho Fernandes, antes da invasão, para discuti-la.

Não é aceitável a desculpa, muitas vezes ouvida em Mossoró, de que Jerônimo Rosado fugiu da luta contra Lampião para preservar sua numerosa família.

O Coronel Rodolpho Fernandes, por exemplo, assim como outros, obrigou Raul Fernandes, seu filho, dezoito anos à época, a embarcar com sua esposa, filha e netos no trem que saiu da cidade conduzindo mulheres, crianças e idosos, mas contou sempre com a ajuda de seu filho mais velho[9] na trincheira do Palacete. Paulo Fernandes, seu outro filho, estava naquele ano no Rio de Janeiro, onde fazia medicina.

RODOLPHO FERNANDES[10]
 
Foto gentilmente cedida por Orlando Martins

Estamos, agora, em pleno 1927, e o Coronel Rodolpho Fernandes é o Prefeito de Mossoró, segunda maior cidade do Rio Grande do Norte.

Aos poucos vamos inter-relacionando Massilon, Quincas e Benedito Saldanha, José Augusto Bezerrra de Medeiros, Jerônimo Rosado, e Rodolpho Fernandes.

Mossoró rivaliza com Natal, a capital. Sua população, incluindo a do município, era, em 1927, de 20.300 habitantes. Natal alcançava 30.600, nos diz Raul Fernandes[11].

A ascensão ao poder do Coronel Rodolpho Fernandes revela o predomínio político que sua família, descendente do filho[12] de um português casado com uma filha do fundador de Martins, o português Francisco Martins Roriz, adquirira ao longo do tempo, e que se baseava, fundamentalmente, na exploração industrial da cultura do algodão e do sal.

Aqueles eram novos tempos, o Coronel Rodolpho Fernandes o pressentia. O Sertão, através de José Augusto Bezerra de Medeiros granjeara, para si, o poder que os Maranhão, ricos usineiros do açúcar, entregaram lentamente aos coronéis proprietários de terra onde o algodão brotava.

Esse mesmo poder, entretanto, calcado na terra, cedia agora, por sua vez, espaço a uma burguesia que se firmava por intermédio da industrialização e do comércio em larga escala. 

Os Fernandes estavam à frente desse processo de mudança e iriam viver seu apogeu logo mais, após a vitoriosa campanha do Partido Popular[13] contra o Interventor Mário Câmara, com a eleição do médico Rafael Fernandes para dirigir os destinos do Rio Grande do Norte.
 
Nogueirinha, casado com Julieta Fernandes. Foto gentilmente cedida por Orlando Martins

Enquanto não se consolidava de vez o poder estadual nas mãos dos Fernandes, seguidores de José Augusto Bezerra de Medeiros, na capital, olhavam com preocupação o avanço político da família oestana em Mossoró, cidade de liderança inconteste do Oeste Potiguar, sob o comando do Coronel Rodolpho Fernandes.

 No Alto Oeste, sua cidade principal, Pau dos Ferros, já era dominada pelo Coronel Adolpho Fernandes, parente e correligionário do Coronel Rodolpho Fernandes. De Mossoró para dentro, até a fronteira com a Paraíba e o Ceará, incluindo, portanto, Martins[14] e Luis Gomes, os Fernandes dominavam. Em Apodi, embora o Coronel Chico Pinto não fosse Fernandes, era correligionário, compadre, contraparente[15] e amigo pessoal do Prefeito de Mossoró.

Mas a oposição em Mossoró não descansava, era aguerrida e o eco dos seus passos chegava até os salões do Palácio do Governo, onde auxiliares diretos de José Augusto Bezerra de Medeiros o intrigavam junto ao Coronel Rodolpho Fernandes e vice-versa.

Em carta dirigida ao escritor Nertan Macedo[16], Paulo Fernandes, filho do Coronel Rodolpho Fernandes, enfatiza essa intriga entre os dois líderes políticos: 

O Governador do Rio Grande do Norte, Doutor José Augusto Bezerra de Medeiros e o seu chefe de polícia, Desembargador Manoel Benício de Melo, estavam à época, em franco dissídio com o prefeito de Mossoró (meu pai); O Sr. Mirabeau Melo, chefe da repartição do telégrafo em Mossoró era irmão do chefe de polícia, e atuava como informante das coisas locais e porta voz do governo era um medíocre intrigante, inadequado para a missão que o destino lhe reservou pois tanto o governador do estado e seu chefe de polícia como o prefeito de Mossoró eram homens de bem e do mesmo partido político de modo só se compreende o dissídio entre eles em torno do problema de interesse público em virtude da ação maléfica de mexeriqueiros[17] (...).
 

                   Continua...


[1] A família Maia era tradicional aliada dos Saldanha no Sertão paraibano. O Coronel Francisco Pinheiro de Almeida Castro, cearense, era casado com uma Saldanha. Jerônimo Rosado era, portanto, fortemente relacionado com os Maias e os Saldanhas.
 
[2] Dna. Francisca Veras Saldanha (1862-1909).
 
[3] “NOTAS E DOCUMENTOS PARA A HISTÓRIA DE MOSSORÓ”; CASCUDO, Luis da Câmara; Fundação Vingt-Un Rosado; Coleção Mossoroense, Série “C”; Volume 849; Maio de 1986; 3ª. Edição; Co-edição com EFERN/UNED Mossoró e Petrobrás S.A.
 
[4] Presidente da Intendência, ou seja, da Câmara dos Vereadores.
 
[5] O mesmo Antônio Soares Junior que lideraria a oposição veemente contra o Coronel Rodolpho Fernandes na época da invasão de Lampião. Ligado a José Augusto Bezerra de Medeiros.
 
[6] “CONVERSA EM TEMPO DE MUTIRÃO SOBRE FRANCISCO PINHEIRO DE ALMEIDA CASTRO”; ROSADO, Tércio e Outros; Coleção Mossoroense; Série “C”; volume 1.080; 1999; Mossoró, RN.
 
[7] “NOTAS E DOCUMENTOS PARA A HISTÓRIA DE MOSSORÓ”; CASCUDO, Luis da Câmara; Fundação Vingt-Un Rosado; Coleção Mossoroense, Série “C”; Volume 849; Maio de 1986; 3ª. Edição; Co-edição com EFERN/UNED Mossoró e Petrobrás S.A.
 
[8] “Almeida Castro fora Presidente da Intendência em outubro de 1891, na vaga de Manoel Benício de Melo, e elaborou o primeiro orçamento da Mossoró Republicana. O Dr. Miguel Joaquim de Almeida Castro, também cearense, seu primo, filho de Joaquim Felício, irmão do seu pai, eleito pelo Congresso, assumiu a presidência do Estado em setembro e foi deposto em novembro desse 1891. A Junta Governativa, amiga de Pedro Velho, adversário medular de Miguel Castro, demitiu Castro da presidência a 16 de novembro, nomeando Manoel Cirilo dos Santos. O demitido jamais esqueceu o golpe, jurando oposição a todos os governos da oligarquia Maranhão (“CONVERSA EM TEMPO DE MUTIRÃO SOBRE FRANCISCO PINHEIRO DE ALMEIDA CASTRO”; ROSADO, Tércio e Outros; Coleção Mossoroense; Série “C”; volume 1.080; 1999; Mossoró, RN.).
 
[9] José Rodolpho.
 
[10] Dizia-se em Mossoró que o Coronel Rodolpho Fernandes era bom de briga.
 
[11] “A MARCHA DE LAMPIÃO”; Editora universitária; Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 1981; 2ª edição; Natal, RN.
 
[12] Mathias Fernandes Ribeiro.
 
[13] Acerca dessa histórica campanha, ler “HISTÓRIA DE UMA CAMPANHA”, de Edgar Barbosa.
 
[14] O prefeito de Martins era Emídio Fernandes, parente seu.
 
[15] Conforme telegrama encaminhado pelo Coronel Francisco Pinto ao Coronel Rodolpho Fernandes em 16 de junho, com o seguinte texto: “Queira prezado parente aceitar e transmitir ao povo mossoroense meus sinceros parabéns” (PIMENTA, Antônio Filemon Rodrigues; “O CANGAÇO NA IMPRENSA MOSSOROENSE”; Tomo II; Coleção Mossoroense; Série “C”; nº 1.104; 1999; Mossoró).
 
[16] Autor de “LAMPIÃO”.
 
[17] “POLÍGONO – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ESTUDOS DO CANGAÇO – TOMO I – ANO I - Coleção Mossoroense; Série “C”; Volume 963; Co-edição ETFRN/UNED; Mossoró; 1997.
 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

NÃO É MARTINS UMA ILHA?


Serra do Martins
muitasoutras.blogspot.com
 
Honório de Medeiros 

                            Os olhos claros da garçonete não olhavam ou faziam de conta que não olhavam os olhos de seus admiradores espalhados pelas mesas do restaurante onde trabalhava.
Também não olhavam para os passantes na calçada da praça em frente. Tampouco para nós outros que estávamos em restaurantes vizinhos e separados por um espaço puramente imaginário. Mas nós sabíamos que ela sabia dos nossos olhares. Havia uma sabedoria ancestral, herdada de Eva, naquela sua reserva à nossa admiração. Sabedoria que a Serra burilara com seu pendor para o isolamento ilhéu. Não é a Serra uma ilha no vale? Não é Martins com seu frio invernal de Julho, a névoa como véu ocultando as formas das árvores centenárias nos sobrenaturais caminhos de barro que conduzem para os sítios, uma ilha no coração do Sertão? Não é Martins uma ilha? Não o sabia disso Francisco Martins Roriz quando fincou seus pés portugueses à margem da Lagoa dos Ingás e nela construiu uma Capela exatamente onde sua companheira foi encontrada morta? Não o sabia que ali estava um lugar como não havia igual em todo aquele mar de terra, sol, cinza, pó, pedra e solidão?
                            Ela, a garçonete, vai e vem. O que pensará enquanto desliza e atende, alheada de si e da presença de sua beleza, a beleza das mulheres de Martins, a todos nós que subimos a Serra e nos entregamos ao prazer ancestral de comer, beber, amar e conversar, receber a dádiva do frio e das árvores, do céu estrelado e do vale distante onde a escuridão somente se rende às luzes trêmulas das pequeninas casas isoladas?
Talvez não pense. Talvez aja mecanicamente. Mas, ali, em Martins, não é possível que a realidade seja menor que a arte. Ao contrário. Ali, a arte imita a vida. E seu pensamento, com certeza, não desmerece todo o clima que envolve a cidade. Há luzes, há cores, há música, há risos, então há romances, amores, paixões que surgem, outras que desmoronam, no interminável ciclo da vida em plena efervescência. Em sua cabecinha loura com certeza há a espera ansiosa pelo fim da noite ou começo da madrugada, como queiram. Há alguém que a espera. Há palavras, carinhos, compromissos, há tudo quanto é humano e os deuses abençoam. Não pode ser de outra forma.
                            Talvez ela seja de um sítio vizinho ou mesmo distante. Não quero perguntar. Pode ser que conheça algum dos seus moradores. Alguém sábio, que conseguiu sair de Martins e voltar depois de muitos anos sem que a saída afetasse seu coração e sua alma. Alguém que não foi corrompido pelo mundo exterior – por que Martins é uma ilha! -, não esqueçamos.
Esse sábio já mal vê o mundo, seus olhos estão ficando velados pelo tempo. Não importa. Com sua idade e sabedoria, o mundo está em sua mente e a sua mente é o mundo. Ele, quando foi embora, interpretou o mundo a partir de Martins; hoje, apenas confirma, com sua experiência, que em quase todas às vezes estava certo. “O mundo lá fora”, diz quando ao seu redor sentam os que o visitam, “não é nada diferente de nossa Serra. É como uma mulher coberta de joias e vestidos e pintura. E quando se tira tudo isso, o que fica?” Todos balançam a cabeça concordando.
Todos estão juntos ali impulsionados por um código imemorial: escutam atenciosamente quem pode lhes explicar o mundo que o bom Deus lhes legou e que às vezes parece tão incompreensível. Ainda bem que o bom Deus lhes mandou também algumas pessoas que tinham o dom de perceber suas mensagens deixadas nas linhas da natureza e explica-las aos outros. Por isso tais reuniões. Para escutar e reforçar os laços de solidariedade que os mantinham unidos e protegidos em sua ilha, Martins.
                            Agora a garçonete se fora. Quem a terá recebido em seus braços?  Faz frio. A praça está repleta de silêncio. Os restos da festa jazem espalhados. Alguns retardatários encaminham-se para suas cobertas. O ar puro e suavemente perfumado da Serra envolve Martins. Às margens da Lagoa dos Ingás a escuridão mal deixa perceber suas águas. Mas elas estão ali, muito mais antigas que os passos dos que viviam, no seu entorno, desde a ocupação portuguesa. Águas misteriosas que vêm não se sabe de onde. Águas que ouviram o grito de dor de Francisco Martins Roriz quando se deparou com o cadáver de sua esposa morta por afogamento. Águas testemunhas, dizem os antigos, dos passos inquietos dos seus antigos proprietários, os índios, que nas noites enluaradas caminham incansavelmente da Lagoa dos Ingás para a Casa de Pedra, da Casa de Pedra para a Lagoa dos Ingás, e assim será até o final dos tempos.