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quinta-feira, 1 de junho de 2023

ELE NÃO SABE LIBERAR A LIBERDADE

 

Imagem: Honório de Medeiros

Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Um dia, não poderemos mais ir e vir sem assinar algum documento, ou fazer vênia ao burocrata responsável pelas estradas que percorremos. O maldito Estado constrictor, qual uma jiboia colossal e sem limites, segue aumentando o aperto esmagador sobre os indivíduos, enquanto cresce desmesuradamente, até que não sobreviva sequer uma migalha de liberdade para quem quer que seja. Tudo hoje é regulado em detalhes ínfimos. E, em qualquer lugar, sempre existe um burocrata à nossa espreita, sequioso para exercer seu poder medíocre. Ele, o burocrata, não sabe, mas trabalha contra si, ao longo de uma vida vazia e incolor: não sabe proibir proibições, tampouco liberar a liberdade.

quarta-feira, 31 de maio de 2023

QUE TAL BUSCAR UM ATALHO?

 

Imagem: Honório de Medeiros

Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Eu ficava vezes sem conta vendo a água da chuva cair da goteira, alcançar o chão e começar a escorrer, descendo, em busca do seu destino. Quando algo se interpunha em seu caminho e não podia ser levado pela correnteza, tal qual uma touceira de capim, a água o contornava e seguia, lépida e faceira, em frente: descobrira um atalho. Assim também faz o luar... Tiro meu chapéu imaginário para o atalho que nos ensina, sempre que pode, uma lição de como viver. Está tudo escrito no livro da vida. Ao invés de enfrentar os osbstáculos diários arremetendo contra eles, que tal buscar um atalho?

segunda-feira, 29 de maio de 2023

NO OUTONO DA VIDA

 

Imagem: Honório de Medeiros

Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


No outono da vida, véspera do inverno, o cansaço se avoluma. As sementes, se houve, espalharam-se: estamos sozinhos. Uma certa lassidão, entre outras sensações, vai tomando conta dos nossos dias. O tempo parece fluir lentamente. Tudo parece repetir-se. Há lampejos, quais relâmpagos, que tão logo aparecem, iluminam a noite e repentinamente somem. É o ciclo da vida: "Pois és pó, e ao pó retornarás" (Gen 3:19), bem como "O que foi, isso é o que há de ser, e o que se fez, isto se fará, de modo que nada há de novo sob o sol" (Eclesiastes, 1:9).

segunda-feira, 16 de maio de 2022

A NOITE, OS MOSQUITOS E A LUA

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)

(honoriodemedeiros.blogspot.com)



Imagem: Honório de Medeiros
        

Fui visitar Seu Antônio de Luzia, lá no Feijão, Sítio “Canto”, Serra da Conceição, rumo quebrado para a Serra do Camará.

João, seu filho, João de Antônio de Luzia, a quem eu encontrei, antes, na Pedra do Mercado, me preveniu: "tá falando muito pouco e escutando demais."

"Por que?"

"Sei não. Eu pergunto o que é e ele, sentado naquela cadeira de balanço, estira a mão para cima e sacode os dedos como se estivesse espantando mosca."

Seu Antônio estava lá no mesmo lugarzinho de sempre, cadeira de balanço, na calçadinha de sua casa de tijolos crus, olhando o tempo, cumprimentando os passantes com um balançar de cabeça para cima e para baixo.

"Boa tarde, Seu Antônio, como vão as cousas?".

"Boa tarde!". Mandou, com um gesto, que eu tomasse assento na outra cadeira de balanço.

Então eu me danei a falar e ele só olhando, escutando e calando.

Lá para as tantas, me fiz de atrevido e perguntei: "o Senhor perdeu o gosto de falar?"

Ele ficou calado um tempão, pigarreou e disse: "tem muita gente sabendo de tudo, falando muito; eu, quanto mais vivo, menos sei das coisas."

Parou, pigarreou de novo, tomou um gole de café, cuspiu no chão de barro, e rematou: "O pouco que sei é o que eu faço com as mãos: cortar um capim, debulhar um feijão, pegar um balde d'água no poço...".

Mais não disse. Mais não perguntei.

Ficamos os dois, cismarentos, enquanto a tarde ia e a noite chegava.

A noite e os mosquitos.

A noite, os mosquitos e a lua, que já se atrevia.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

SEU ANTÔNIO DE LUZIA E OS TEMPOS DE ONTEM E DE HOJE

 

Caminhando no Sítio Canto, Serra da Conceição

* Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


Seu Antônio de Luzia continua firme e forte no Sítio Canto, Serra da Conceição, como teima chamar sua Martins, onde nasceu, lá pelos idos de trinta para quarenta, ninguém sabe ao certo, e ele muda de assunto quando se toca no tema.

Fui vê-lo, era essa a intenção, quando resolvi passar uma semana no Sertão profundo, em busca do café coado na hora adoçado com alfenim, o cheiro do orvalho nas caminhadas pelas madrugadas afora, ouvindo o canto dos sabiás, e a conversa boa de pé de calçada nos finais da tarde, onde todos os problemas são resolvidos, muito embora não saibam disso os homens que mandam neste mundo velho de Deus, Nosso Senhor, e meu Padrinho Padre Cícero do Juazeiro, primeiro e único.

Encontrei, para começo de assunto, uma cizânia danada quando tomei assento após cumprimentar o patriarca e engolir o primeiro gole de café depois de uma mordida em um pedaço de alfenim. Pediram logo minha opinião, esperando meu comprometimento com um lado ou com o outro.

Eu pulei fora quando disse que para onde seu Antônio encaminhasse a bengala, eu seguiria seus passos. O velho patriarca deu um sorriso de esguelha, mais rápido que imediatamente.
A discussão era acerca dos tempos de hoje e os de outrora. Uns diziam que antes tudo era melhor, outros negavam e defendiam a "modernidade".

Como sempre, Seu Antônio escutava tudo calado, enquanto os contendores esbravejavam, mas eu sabia que, no final, ele daria sua opinião. Fiquei aguardando, enquanto o sol descambava lentamente no rumo da ribeira do Encanto, deixando a Lagoa dos Ingás saudosa, e na escuridão.

Lá para as tantas, quando os mosquitos começaram a aperrear, ele pigarreou e disse: "vivemos uma era em que o pouco que vale muito, vale pouco na frente do muito que não vale nada". Depois, se levantou e tomou rumo.

O silêncio caiu na calçada tal qual jaca madura encontrando o chão. Seu Antônio foi para a cozinha, onde nos aguardava uma coalhada adoçada com raspa de rapadura, enquanto a roda de conversa de desfazia, e a cambada de conversadores caía no mundo, matutando acerca do dito.

Pelo meu lado, não tive dúvida, segui a bengala de Seu Antônio, pensando mesmo na coalhada e dizendo para João, seu filho, que resmungava ao meu lado reclamando que cada dia que passava ficava mais difícil entender o "velho”.

“Ora, ora, João, vamos à coalhada: estamos aqui para isso, para isso, estamos aqui". E puxei o tamborete e acomodei as costelas, água na boca.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

DE LONGE CHEGAVA A VOZ DE ALTEMAR DUTRA CANTANDO...

 * Honório de Medeiros

(honoriodemedeiros@gmail.com)


De longe chegava a voz de Altemar Dutra cantando “Tudo de Mim”, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim. Quem estaria escutando essa música, no último dia do ano, quando já era noite fechada e faltava pouco para os fogos subirem aos céus?

Enquanto desfrutávamos da nossa solidão a dois, preparávamos, a quatro mãos, nossa ceia. Eu e ela. Os meninos, ainda os chamamos assim, já tinham partido, para muito longe. Ficamos nós, aqueles cujas raízes são fundas demais para serem arrancadas.

Eles se foram, são o futuro, e, nós, cada dia mais, o passado.

Ela nota minha melancolia. Disfarço. Brinco. Não resolve. Não consigo mais engana-la. São muito anos de cumplicidade. Falo-lhe de Altemar Dutra, de quando o conheci ainda praticamente adolescente, uma noite, no “Casarão”, e emendo com uma confissão, dizendo-lhe que minha tristeza não vem da batida do passado na porta do meu coração.

Não é isso, digo-lhe. É a tristeza de quem sente que algo precioso está se perdendo, e não voltará. Estou, agora, falando acerca da maravilhosa letra da música que Altemar Dutra canta e que ouvimos vinda de longe, de alguma das casas que cercam nosso prédio, elas mesmas, as casas, antigas, desaparecendo para cederem seus lugares a prédios modernos, repletos de vidros e ausentes de história.

Essas músicas sobrevivem como espasmos e me quedo surpreso quando as escuto em algum lugar, por insistirem em abrir espaço, vindas do passado, em um futuro tão diferente. Como quando escutei uma melodia de Chiquinha Gonzaga, em um celular portado por uma adolescente no shopping onde almoçávamos.

Altemar Dutra segue desaparecendo lentamente da nossa memória, e fatos como esse sempre me lembram amigos que se foram, ao longo do tempo, de nossas vidas. Amigos que se afastam, aqueles velhos amigos, com eles desaparecem "a testemunha e o comentarista de milhares de lembranças compartilhadas, fiapos de reminiscências comuns que se desvaneceriam"(*). "All those moments will be lost in time, like tears in rain"(**).

Assim, concluo, enquanto ela põe a mesa, morre aquilo que o homem constrói, apaga-se, desaparece na neblina do tempo, pois o futuro e seu filho dileto, o esquecimento, algoz de todas essas lembranças, não se compadece do quanto já foi construído em todos os lugares e tempos. É preciso que chegue o novo, que se vá o passado.

Eu me calo. Muito antes, já se calara Altemar Dutra. Decerto, quem o escutava, já se aproximando do inverno da vida, resolveu dormir. Mal sabe ele que lhe fiz um brinde, com um copo de água, quando vinha a madrugada.

Para ele, Altemar Dutra, Evaldo Gouveia e Jair Amorim.


* Hereges, Leonardo Padura.

** O replicante Roy Batty, em "Blade Runner".

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

DE UMA QUIETA TENDÊNCIA A NEGAR O BARULHENTO MUNDO

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


        Enrique Vila-Matas, em seu inigualável Bartleby e Companhia, chama-nos a atenção para os "seres que imitam a aparência do homem discreto e comum" no qual "habita, no entanto, uma inquieta tendência à negação do mundo." Estranha, mas compreensível pulsão!

Isso me conduz à lembrança de meu pai e seus silêncios, sua deliberada omissão em falar acerca do seu passado, seu instintivo jogo retórico no qual se escudava para evitar qualquer manifestação que implicasse em juízos de valor, sua disponibilidade convidativa para escutar quem lhe procurava, ao mesmo tempo em que levava o interlocutor a expor a própria alma, enquanto a dele permanecia resguardada. 

Profundamente quieta era sua negação do barulhento mundo, sob o manto da discrição e das palavras comuns, triviais, incolores de tão banais, tudo sabiamente usado. Uma sábia estratégia. 

Hoje percebo, enquanto cuido de ir fechando o balanço de minha vida: em certos e raros instantes, uma sóbria colocação de sua parte estabelecia um silêncio que era um golpe profundo na ordem circunstancial das coisas. Feito isso, se recolhia, e voltava à aparente reserva plácida de sempre. 

E eu, e nós, que sempre o achamos tão comum! Quanto engano. Como poderia ser assim, ele que sempre foi um sobrevivente, que viveu tantas guerras inglórias e só aparentemente insignificantes? 

Quanta arrogância, a nossa, em pensar que podemos conhecer algo ou alguém em profundidade! 

Meu pai, aparentemente, sabia muito e percebia que não valia a pena que o ninguém soubesse disso. Ou, então, pensava que saber era um caminho único, áspero, mas intensamente solitário. 

E assim viveu seus anos, principalmente os últimos, envolto nesse manto de humildade intelectual que era uma consequência de seus questionamentos mais íntimos, nunca uma predisposição, um intuito hipócrita de galgar atenção. 

Quando faleceu, como que despertando de um sonho iniciei a longa caminhada em busca de compreendê-lo, analisando suas palavras e posturas mas, principalmente, seus silêncios tão plenos de uma anônima rica vida interior.

sexta-feira, 16 de julho de 2021

VOA, MINHA PASSARINHA, VOA...

 

By @diogomizael

* Honório de Medeiros    

Quando nossa filha finalmente chegou em Montreal com o esposo e seus poucos vinte e três anos, depois de uma longa e cansativa viagem, lá a esperava seu irmão, hoje praticamente cidadão canadense.

Mas não foi possível abraça-lo, até mesmo vê-lo. Cumprindo as regras impostas para o combate contra a pandemia, primeiro foi confinada, por três dias, em um hotel determinado pelo Governo.

Exame de saúde feito, resultado favorável, mudou-se para o apartamento do irmão, que o desocupara, para novo período de confinamento, dessa vez por doze dias.

Impossibilitados de se abraçarem, conversarem, o irmão não hesitou: combinaram postarem-se defronte à janela do apartamento, um dentro e o outro fora, ela afastou a cortina, sorriu, acenaram um para o outro, beijos foram enviados, e o instante foi registrado.

Muito foi dito ali naquele momento, sem uma palavra sequer, e a escrita não consegue expressar!

Se isso não é amor, eu não sei o que isso é.

Voa, minha passarinha, voa...

* O irmão escreveu, abaixo da imagem:
They say:
There is always behind a window
You just need to open it
And I can't wait for that
Love u sis.

domingo, 11 de julho de 2021

DIÁRIO DE VIAGEM: CABACEIRAS, PARAÍBA.

* Honório de Medeiros   

Um templo no meio do nada que é um tudo       

Seu Neco é um herói.

Em 2007, quando tinha quarenta e dois anos, durante mais de cinco horas, madrugada de um sábado para o domingo, precisamente das três às oito e meia da manhã, em Puxinanã, na Paraíba, sozinho, de joelhos, travou uma luta desesperada para não morrer.

Enquanto lutava, ia rezando incontáveis terços, fumando um cigarro após o outro, lembrando-se da família e tapando o buraco do braço arrancado por uma esteira de distribuir ração para galinhas, de onde o sangue vertia feito água de chuva forte, aguardando a chegada de alguém para lhe socorrer.

Manhã alta, chegou o homem que apanhava os ovos postos pelas galinhas, e acionou o corpo de bombeiros.

A máquina levou parte do seu braço. A gangrena, fruto perverso da ração que impedira a saída do sangue, e também lhe envenenou, depois comeu o resto no hospital, mas não dobrou seu espírito. Nem quando saiu do lugar do acidente, entregou os pontos: os bombeiros quiseram leva-lo em uma maca e ele se recusou; foi a pé, segurando o coto.

Depois, começou uma luta medonha que lhe feriu o espírito, tanto quanto o corpo fatigado: obter seus direitos, receber uma indenização, aposentar-se. Foi uma saga inenarrável, misto de desprezo e injustiça.

Quando a narrativa chegou ao fim, ambos estamos soturnos. Pousei o caderno de notas e a caneta. Lá fora, a tarde caia. Ouvi o canto da Seriema longe, bem longe. Eu, por querer assimilar a história em todos seus desdobramentos; ele, por perder-se em recordações ainda bastante dolorosas.

Nosso silêncio foi rompido com uma frase dita muito mais para si, do que para mim, de cabeça baixa, lentamente: “era as galinhas comendo a ração, e a máquina comendo meu braço...”

Estamos em Cabaceiras, no meio do nada, como diziam os antigos das bandas do litoral, onde ficavam as cidades grandes, quando se referiam à Região, ou do tudo, esse infinito delimitado que é o Sertão nordestino profundo, ainda arcaico, no coração dos Cariris Velhos, Paraíba, terra de gente que, em sua maioria, descende de antigos e heroicos homens e mulheres que a desbravaram na época do ciclo do couro.

Aqui, preponderam os carrascais, matacões, algarobas, facheiros, juremas, uma ou outra quixabeira, canafístulas, mussambês, angicos, pinhões, muito xique-xique, palmatória, mandacaru, e ainda reinam, no chão pedregoso, a seriema, o mocó, a jararaca, e, quem sabe, uma ou outra rara onça perdida. Um bioma único, inigualável.

No céu, quase sempre limpo de nuvens, de dia voam os urubus, e os gaviões-de-pé-de-serra, secundados pela passarinhada canora; de noite, voam as rasga-mortalhas amedrontadoras anunciando que, em algum lugar, alguém foi prestar contas de sua vida terrena a São Pedro.

Quando escurece, um mar de estrelas agasalha a terra ressequida e seu povo bom, simpático e educado, pleno daquela gentileza sertaneja nordestina que os tempos atuais parece considerar insultuosa ou mesmo um sinal de fraqueza, quando na verdade é resquício de uma educação fidalga muito antiga, que veio de além-mar.

Até onde a vista alcança, mato e serrotes se estendem à nossa frente pontilhados por uma única ilha destoante, o pequeno e solitário templo religioso que faz contraponto à capela consagrada a São Bento, localizada no extremo oposto do nosso campo visual e construída para esconjurar uma peste de cobras peçonhentas que assolou a região em tempos passados.

A capela consagrada à São Bento

Quando perguntei à zeladora da capela se surtira efeito o ato de devoção, ela respondeu que sim, “as cobras que rastejam foram embora, entretanto ficaram as que tinham pernas, muito mais perigosas...”

Antônio Silvino, cronologicamente o segundo dos grandes cangaceiros – o primeiro foi Jesuíno Brilhante - andou por aqui, mais de uma vez, no começo do século passado, fazendo danação.

Cercado pela polícia, escondeu seu ouro em um buraco, para ser desenterrado quando saísse do aperreio. Preso, cumpriu longa pena, até que foi indultado por Getúlio Vargas. Correu até onde tinha deixado dinheiro, mas o bolso dos homens em quem confiara estavam vazios, e as botijas tinham sido arrancadas e feito a felicidade de quem com elas sonhara.

De outra vez, arrombou as portas da prisão de Cabaceiras e libertou todos, principalmente os dois rapazes que tinham mandado propor a ele um acordo singular: uma vez livres, iriam fazer parte do seu bando. E lá se foram os dois rapazes, Sertão adentro e afora, livres da cadeia de Cabaceiras, mas presos pela palavra dada a um homem temível!

A Região é cheia de lendas, mistérios, segredos, guardados pelo povo e apresentados somente no geral, sem que se consiga descobrir maiores detalhes acerca dos fatos e personagens que os viveram. No máximo vislumbramos alguns indícios, cuidadosamente espalhados ao léu. Todo cuidado é pouco para eles quando conversam, e a sabedoria sertaneja abre as portas da cozinha, mas fecha as portas dos quartos.

Discos Voadores, por exemplo, de vez em quando dão o ar de sua graça, nas noites estreladas, bailando no céu do Sertão profundo e amedrontando os raros passantes, nas horas tardias, transeuntes das veredas que ligam um sítio ao outro.

Houve casos de abdução, mas Noberto Castro, nosso guia, homem lido, misterioso, versado em plantas medicinais, orações fortes e história da Região, além de escritor, avaro em palavras e carnes, nega de pés juntos que isso jamais tenha acontecido.

Norberto Castro, um homem sábio

Daniel, rapaz simpático e atencioso que nos atendeu em um restaurante de comida honesta, farta e legitimamente sertaneja de uma prima de Norberto – todos são parentes entre si, basta cavar um pouquinho - enquanto almoçamos confirma a história, em seguida a nega, mas volta a confirmar, piscando um olho para os ouvintes, por certo para não contraria Noberto.

O que Noberto não esperava era que o Prefeito da cidade, também seu primo, a quem abordamos de supetão, em sua pequena casa na interessante Ribeira, distrito de Cabaceiras, e que nos recebeu com imensa simpatia, confirmasse tudo, nos dando detalhes e nomes, enquanto ria...

O Prefeito, Tiago Castro, por si somente, é um fenômeno: candidato à reeleição em Cabaceiras, teve 93 por cento dos votos possíveis. Seu adversário amargou míseros 7 por cento. Um verdadeiro massacre.

Do Distrito da Ribeira, nos separava, para que nela entrássemos, no fim de uma estrada carroçável, dois cruéis mata-burros, um atrás do outro, uma plantação de palma do lado direito de quem entra, e o leito seco do Rio Taperoá que nos remeteu à lembrança de Ariano Suassuna. Nada mais bucólico.

Na Ribeira, primeiro vimos a arte no couro de Timotinho, que nos recebeu no português cantado dos Ribeirenses, enquanto seus primos, descendentes, como ele, de algum holandês que se aventurou pelos sertões paraibanos, trabalhavam o couro curtido. Todos brancos leitosos, de cabelo liso e olhos azuis, além de longilíneos. Depois, veio a simpatia do “Mano”, tão agradável quanto deliciosa é sua comida puramente nativa, a começar pelo pirão de mocotó de boi.

O melhor pirão de mocotó do mundo!

Depois de gastar muita conversa com Mano, voltamos à “Matuto Sonhador”, um encanto. Deus a conserve assim. Lá, à beira da fogueira, um conjunto formado por sanfoneiro, zabumbeiro e triangulista, este último afinadíssimo e perspicaz, além de gozador, voz de barítono, prometeu ao dono da pousada casar com a bela mulher estátua que pastorava, com olhos arregalados e fixos, suas performances musicais no jardim, enquanto o forró nos embalava a dança. Ficamos de voltar para o casório.

Tempo de ir, começo do tempo de voltar.

Cabaceiras, PB, 25 a 29 de junho de 2021.

sábado, 9 de janeiro de 2021

CRÔNICA: O FIM DO MUNDO ESTÁ PRÓXIMO

 

Crédito: Getty Images/iStockphoto - Direitos autorais: Steven Wynn

*Honório de Medeiros (honoriodemedeiro@gmail.com)

Seu Geraldo, ontem, me vaticinou que o fim do mundo está próximo. 

Bebíamos uma água de coco, eu e a comadre, depois da caminhada, quando puxei assunto. Eu queria uma informação, mas achei melhor não ir direto ao ponto. 

Perguntei-lhe como estavam as vendas, e ele me garantiu que estavam boas. 

"É melhor coco do que pipoca?". 

"Aqui". "Lá no colégio, não". "Vender pipoca é muito melhor". "Botei meu menino lá". 

Baixo, cabelos finos ralos e desgrenhados, rosto marcado por queimaduras de pele, nem gordo, nem magro, um certo olhar de fanático, intenso, mas às vezes ausente, como se estivesse falando para si mesmo, me garantiu que tinha criado seus cinco filhos vendendo pipoca. 

"Comprei até um sítiozinho." 

"Tem gado?" 

"Não, só uma garrota, mas lá tem água de um olheiro, tem água salgada, e água da Caern." 

"Muito bom." "E casa, tem?" 

"É, eu fiz uma casinha lá, às vezes vou dormir depois do almoço e tenho que vestir uma camisa. Faz frio." "Terra boa, dá macaxeira, mandioca, fruta muita!" 

Enquanto ele falava, observei que fizera o transporte de seus apetrechos de venda, que incluíam dois caixotes grandes de isopor postados em cima de tamboretes, duas cadeiras de plástico para os fregueses, e uma espécie de caixa alta, de compensado, vazada para o lado, no qual ficavam, em tabiques divisórios internos, moedas, panos, facas para descascar ou rachar os cocos, e outras trapizongas, de um lado da calçada para o outro. 

Por que fizera isso? Não quis lhe perguntar, mas creio que estacionando seu velho jipe, que ficava parado bem para dentro da rua mesmo em frente ao ponto onde antes comerciava, enquanto ocupava o outro lado com sua venda, impedia que surgisse algum concorrente. Com essa manobra, tornara-se dono único dos espaços disponíveis. 

Inteligente, Seu Geraldo. 

"Mas você não tem medo da insegurança?" 

O olhar de fanático se acentuou. E se desviou de mim, fixando-se em algum ponto invisível além do meu lado direito. 

"Deus é por mim". "É só não mostrar que você tem as coisas." "Tá vendo esse carro velho? Já andei com bastante dinheiro nele, para cima e para baixo, em tudo que é canto, e nunca ninguém nem olhou". 

"Lá no sítio, é do mesmo jeito". "Daqui a uns seis meses eu vou de vez pra lá." "Aproveitar o que me resta da vida". 

"Você ainda está novo, vai viver muito". 

"O senhor não entendeu. Tudo isso está muito perto de acabar." 

"O mundo?" 

"É". "Só não vê, quem não quer." 

Não ousei lhe perguntar como isso ia acontecer. E ele se calou, o olhar fixo no nada... 

Eu até me esqueci de colher a informação que me interessava: tinha olhado para cima e para baixo e não conseguia atinar onde ele fazia xixi, quando a vontade apertava. Os hotéis ficavam longe, a praia também, não havia mato por perto, o posto policial estava permanentemente fechado, e, ainda por cima, ele não tinha com quem deixar seus apetrechos enquanto satisfazia suas necessidades. 

A não ser que.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

ELEGÂNCIA: A VELHA SENHORA

 

"Portrait Maman”, de Edith Blin. 1943, desenho a carvão, em http://artenarede.com.br/blog/index.php/retratos-de-uma-velha-senhora/

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Formavam um belo casal. 

Ambos já acima dos setenta, beirando os oitenta, cabelos totalmente brancos, andar pausado, vinham todos os dias, até nos finais de semana, tomar, por volta da hora do “ângelus”, uma sopa de legumes especialmente preparada para eles. 

Quando os vi pela primeira vez, despontando na esquina da rua onde estávamos, no restaurante, chamei a atenção: “vejam”. Vinham lentamente, de mãos dadas, parecendo um casal de namorados a apreciar a companhia um do outro, enquanto flanavam. 

Embora ela aparentasse ser mais idosa, estava em melhor estado de conservação. E notava-se claramente seu cuidado para com ele. Sua mão que enlaçava era também a que conduzia, guiando-o e o afastando de possíveis obstáculos, tais como irregularidades no calçamento ou cadeiras postas no meio do caminho. 

Mas não era só. Depois de sentados, era ela quem puxava conversa e lhe fazia breves relatos - querendo entretê-lo - aos quais ele pontuava com monossílabos, ou chamava sua atenção para algo diferente, tal como o olhar cândido e curioso da criança sentada na mesa próxima a sua. 

Mesmo após vezes seguidas observando-os, ao longo dos dias, quase nunca os vi sorrir. Eram muito sérios e somente em uma ou outra oportunidade pude surpreender um carinho eventual de um para com o outro. 

Não que isso demonstrasse distanciamento, ao contrário. Havia, entre eles, uma transcendência – era perceptível – quanto ao trivial de gestos desnecessários, típica de um relacionamento antigo, onde o entendimento era perfeito e o silêncio comum pleno de compreensão. 

Eu e os outros conversamos vezes sem conta acerca do casal, com quem os atendia. Tinham nascido em outro lugar, disse-nos o garçom, uma cidade grande, eram aposentados e tinham optado por não terem filhos. 

Agora, no final da vida, desejando mais tranquilidade, vieram para uma cidade menor onde não possuíam parentes próximos nem conhecidos. 

“Quem cuida deles?”, perguntei. “Ninguém; há uma moça que faz a limpeza do apartamento e do restante eles mesmos cuidam”. “Quando querem sair”, prosseguiu, “já têm um motorista de táxi de confiança que os leva para onde desejam ir”. “Saem?”, continuei. “Vão à missa, aos médicos...” 

Após algum tempo trocávamos cumprimentos, mas jamais passou disso. Havia certa reserva em cada um deles que desestimulava a aproximação para a conversa coloquial. 

Talvez já não tivessem interesse em construir novas relações e absolutamente não se sentissem solitários; quem sabe gostassem da solidão e do tipo de paz que ela lhes proporcionava? Se não fosse assim, por qual motivo teriam saído de sua cidade e vindo para cá, um lugar desconhecido? 

No fim, tudo acabou como esperado, como sempre acaba tudo. Ele teve um infarto fulminante e ela ficou só. No início, pelos relatos, pensou em continuar no apartamento que dividiam e tocar a vida. Mas um dia, quando cheguei e percebi sua ausência na hora de costume, fui informado que decidira partir e ir morar em um local especializado em idosos. 

Antes, aparecera para se despedir. Deixara, até mesmo, uma pequena lembrança, um “souvenir”, para cada um dos que trabalhavam no restaurante. Agradecera muito, delicadamente, toda a atenção recebida. Não tocara no assunto de sua viuvez, nem dissera para onde ia. 

Depois, apertara a mão dos proprietários, desejara felicidade, e se fora, com seu passinho miúdo, o vestido elegante, de talhe antigo, deixando, pela última vez, o cálido registro do esvoaçar dos seus finos cabelos brancos e um leve vestígio de “Fleur de Rocaille” no ar. 

Em mim, como vieram, foram-se. Deixaram por muito tempo uma lembrança vaga, um toque de melancolia de um matiz suave, crepuscular, como uma fotografia em sépia, algo a ficar em um nicho adormecido do meu museu de lembranças. 

Resolvi resistir proustianamente. Na medida dos meus limites, eis esse registro, enquanto homenagem à elegância, discrição, e à arte de cultivar a reserva pessoal, tão desprezada nos dias de hoje. 

domingo, 13 de dezembro de 2020

SOLIDÃO: UMA SOLIDÃO CERCADA DE AMIGOS

 

Imagem: Honório de Medeiros ("Pássaro solitário sobre o Tejo")

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Ariclê suicidou-se, tempos atrás. Mas quem foi Ariclê? 

Uma atriz global. Suave, delicada, simpática. E solitária. 

Antes de morrer estava fazendo o papel de mãe de JK, no seriado homônimo. Terminou sua participação e saltou do décimo andar do prédio onde morava, mergulhando para a morte. 

Não é somente por ter sido atriz que sua morte chamou a minha atenção. Nada disso. 

O que chamou a atenção é que todos quantos foram a seu sepultamento eram seus amigos, muito embora ela fosse uma pessoa solitária. Morava sozinha, e segundo o relato do porteiro do prédio – ah, os porteiros de nossos prédios, testemunhas silenciosas e onipresentes das nossas vidas – quase não recebia visitas. 

Todos os amigos cobriram Ariclê de elogios. Não podia ser diferente. É da nossa tradição elogiar os mortos. E todos realçavam os laços de amizade existentes entre eles e até contavam, aqui e ali, algum fato vivido juntos. 

Nada diferente de velórios em outros mundos afora. Mas não frequentavam o seu apartamento, esses amigos. Não invadiam sua cozinha, bisbilhotavam sua biblioteca, usavam seu banheiro, deitavam-se em seu sofá. 

Ali estava um ambiente íntimo cheio de ausências. 

Ariclê era uma pessoa solitária... Quase posso imaginar sua solidão tão comum em cidade grande. Conhece ela muitas pessoas, é conhecida e respeitada por muitas outras, trata-as por amigo, ou amiga, recebe o mesmo tratamento, mas com certeza não telefona para qualquer um deles para convidá-los a partilhar uma taça de vinho e um pouco de dor nas madrugadas melancólicas. 

Não é possível fazer isso porque o incômodo causado é muito grande. Transtorna a vida das pessoas. Atrapalha suas rotinas. E elas também têm lá seus problemas, não estão dispostas a emprestarem seus ouvidos para ouvirem o que não conseguem resolver em si mesmas. 

Antigamente as pessoas colocavam as cadeiras nas calçadas e contavam estórias, relatavam histórias, riam, faziam rir, e se solidarizavam umas com as outras. Mas isso faz muito tempo. Hoje não é mais possível, há a violência urbana, a televisão manieta, o celular aprisiona, as portas e janelas estão todas fechadas. 

Enclausurando-nos, estamos nos fechando para o mundo e para os outros. Nossa convivência passa a ser virtual. Podemos até almoçar juntos com um grande amigo, vez ou outra, mas quando a noite chega, no cotidiano, é cada um por si e Deus por todos. 

Não por outra razão estamos cada vez mais sozinhos. Embora possamos até mesmo estar acompanhados. Porque não nos dispomos a ser solidários, a estabelecermos pontes sólidas em direção ao outro. Pontes construídas com o cimento do sacrifício, da empatia, da história comum. 

Não por outra razão, quem sabe, Ariclê morreu. Para quem ela ligaria, no final de uma noite qualquer, de um dia qualquer, para dizer “venha, estou triste, preciso de você?”

Ariclê Perez


quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

AINDA HÁ BURACOS DE BALAS EM BARCELONA

 

Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Nas madrugadas de Barcelona, as largas calçadas acomodam, em dezembro, o frio, os jovens cheios de vinho que passam cantando e de braços dados, bicicletas e motocicletas em lugares apropriados, que não impedem a passagem dos pedestres. 

Conto para Carlos Santos das calçadas tomadas por esses meios de transporte quando chega a noite, deixados ao léu. Ele ri e me fala de uma cadeira em ruínas, acorrentada em plena Praça do Codó, em Mossoró, nossa terra natal, condenada à prisão para não ser furtada tão logo o dono lhe dê as costas.

"Cadê a polícia?", pergunto ao Georgiano taxista, setentão, que me conduz. Ele responde que não precisa, basta chamar, e todo mundo chama se alguma coisa está errada, e a polícia chega imediatamente, e, de fato, mal vi a polícia em Barcelona.

O Georgiano, por sua vez, me pergunta de onde sou. Eu lhe digo que sou brasileiro, e ele sorri, e me fala em Pelé e Garrincha. "Garrincha?", "sim, Garrincha, Garrincha", diz ele, "o grande Garrincha, hoje a sua seleção, me desculpe, eu não assisto, não quero assistir".

"E o senhor largou a Geórgia por quê?" "Putin", me diz ele, "um homem muito ruim, como Stálin, que era da Geórgia, mas nunca fez nada por ela. Stálin era muito ruim, repete, very bad, very very bad, um homem sem pai, sem mãe, criado em orfanato, depois foi para a polícia, cruel, e meus pais perderam tudo e vieram embora, e eu vim também, mas a casa de meus pais ainda existe, fechada, na bela Geórgia, e eu vou lá, e tomo vinho, a Geórgia tem um vinho muito bom, e a casa fica fechada, mas quando eu vou, abro a casa e tomo muito vinho, falo muito minha língua, e durmo bastante". 

Continuamos seguindo, eu vejo as bandeiras catalãs postadas nas janelas dos apartamentos, e me lembro do livreiro que tem um sebo em frente ao "Palau de la Musica Catalana", onde tantos famosos se apresentaram, e de seu olhar ressabiado quando lhe pedi um livro com a história da Catalunha em espanhol, e ele me respondeu, ríspido, "em espanhol eu não tenho, tenho em Catalão", e eu lhe disse que infelizmente não lia Catalão, mas acidentalmente tinha aberto meu casaco que ocultava uma camiseta na qual estava escrito “The Catalan Way of Life”, e ele sorriu e lamentou não ter esse livro de história da Catalunha escrito em espanhol, acrescentando, mordaz, que não sabia se havia algum que não fosse ruim.

É, Barcelona é algo muito especial, muito especial mesmo, fiquei pensando enquanto caminhava, dias antes, no rumo da "Cidade Gótica", pela qual me apaixonei sem resistência. Foi uma verdadeira entrega, eu queria parar em cada obra de arte encontrada por seus caminhos tortuosos, escuros e estreitos, em cada igreja, ouvir os músicos que tocavam em todos os lugares, tal qual aquele que executava uma sonata barroca de Scarlatti em violino e parecia ausente de todos que o escutavam e depositavam moedas em seu chapéu, pois tocava de olhos fechados, como se estivesse longe daquela realidade barulhenta, multicolorida e de muitos idiomas que lhe cercava, até chegar à minha pracinha predileta, tão pequena, tão impossível de descrever, em cujas madrugadas eram executados os republicanos contra as paredes do colégio e da igreja que lhe estabelecem os limites, nos anos terríveis da guerra civil. Que diria François se estivesse ali? 

"Olhe aqui", me dissera uma mineira dias antes, está vendo as marcas das balas nas paredes, "claro", digo eu, "pois perceba, alguns buracos são muito altos, não atingiriam ninguém, sabe por quê?", "claro que não", "é porque", continua ela, "naquele tempo, todo mundo se conhecia em Barcelona, e alguns dos carrascos eram amigos ou parentes das vítimas". "Meu Deus", penso eu. 

Barcelona. A gaúcha que nos acompanhou a Montserrat pareceu interessada quando lhe contei acerca da cruzada que a igreja empreendeu contra os cátaros no século XIII. "São Luiz?", pergunta, "sim, São Luiz, tudo era uma questão de poder e terras disputada entre os nobres do norte, liderados por ele, contra os do sul, liderados pelo poderoso Conde de Toulouse, guerra apadrinhada pela igreja que temia o surgimento de uma nova religião a partir daquela doutrina perigosíssima, o catarismo, e, veja, o Santo Graal está aqui, em Montserrat", "é, eu sei", diz ela, "Hitler mandou seus soldados liderados por Himmler, mas eles não encontraram nada".

"Sei onde está", eu disse. "Sabe?", pergunta ela, "claro", respondo, "olhe aquelas rochas, você vê um perfil?", "sim, eu vejo", "então", continuo, "o nariz aponta para uma fissura na rocha, é lá", ela olha e depois olha para mim e fica sem saber se eu brinco ou sou louco, e muda de assunto: "você não fala em Gaudí quando fala em Barcelona", "ah, Gaudí", eu digo, "o delírio de Gaudí, como posso gostar de Gaudí, tão distante do homem comum, não bebia, não fumava, não jogava, não dançava, não tinha mulher, era carola, morava nas obras da Igreja da Sagrada Família, é tudo muito bonito, mas irreal, eu gosto de Gaudí, mas ele era pouco humano e somente o humano me interessa, e viva Terêncio, que disse isso muito tempo atrás". 

"Do que você gostou?", ela me perguntou, com aquele sotaque do interior do Rio Grande do Sul, "das obras de arte escondidas em cada recanto", eu digo, "dos músicos de rua, da fé que os Catalães têm na Catalunha, de tantos imigrantes, tal qual o coreano que trabalha dezoito horas por dia no seu mercadinho próximo do apartamento no qual eu estou, do cuidado com os idosos, pois as ruas são pensadas a partir deles e para eles, das espanholas tão sensíveis a elogios a sua beleza, desde que feitos como se fosse uma rendição, nunca uma tentativa de conquista, da simpatia para com os brasileiros, do bairro gótico, da elegância dos caminhantes, das crianças que brincam felizes e despreocupadas em todos os cantos da cidade, da ausência da polícia e do respeito à lei, da história da nação catalã, da relação da Catalunha com a Provença francesa..." 

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

LIVROS: OS LIVROS NOS ESCOLHEM

 

Jean Jacques Rousseau

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Muito poucas foram as vezes em que entrei em uma livraria sabendo o que buscava. 

Ao contrário. A grande maioria delas entrei somente pelo prazer de entrar, de ver, de sentir o cheiro dos livros, de ouvir o murmúrio de outros apaixonados como eu, para quem eles foram, desde sempre, um grande amor. 

Difícil sair sem nada nas mãos. Invariavelmente – e isso é o que importa neste relato – fui buscado por algum ou alguns livros. 

Sim, porque são eles que nos escolhem. Eles amam quem os ama. Como poderia ser diferente se outra explicação não há para esse amor que surgiu quando minha mãe me colocava para dormir lendo estórias em quadrinhos do Pato Donald, enquanto nos balançava na rede, e, um dia, para sua surpresa, me pegou soletrando as sílabas? 

Os livros dos meus vizinhos, abandonados, valeram-se de mim para saírem de sua solidão – em minha casa sequer Bíblia existia. 

Os livros, eles nos escolhem, e da minha infância para a meninice, lá estavam: “O Mundo da Criança”; “O Tesouro da Juventude”; e, depois, logo depois, Julio Verne, Alexandre Dumas, Victor Hugo, Edgar Rice Burroughs, Karl May... 

Pois bem, é como digo, os livros nos escolhem. Chegam a nós das mais estranhas maneiras, desde o presente de um amigo que pensa ter acertado na escolha por um motivo qualquer, muito embora tenha acertado por outro totalmente diferente, a aquele decorrente do inexplicável oferecimento visual ocorrido quando, cansados de perambular pela livraria, nos sentamos em uma poltrona, a única vaga, e – como se fosse algo inesperado – aquele livro que nos escolheu aparece imediatamente no nosso campo visual. 

Não há como resistir. Ele estava nos esperando. Agradecidos pela escolha pegamo-lo carinhosamente, e o folheamos, sentimos seu cheiro inigualável, sua textura, passamos uma vista d’olhos por suas páginas e o levamos conosco, ambos muito felizes. 

Assim aconteceu certa noite quando, em um aeroporto qualquer, aguardando a hora de embarcar e vagando pela livraria, já imaginando que daquela vez eu teria que me contentar com as revistas, meus olhos foram atraídos por “Os Devaneios do Caminhante Solitário”, de Rousseau. 

Quantas e quantas vezes não falara acerca do “Contrato Social” para meus alunos de Filosofia do Direito, ao lhes explicar em que crença se fundava nossa fé no Ordenamento Jurídico enquanto expressão da Vontade Geral da Sociedade. Antes Rousseau, que dera um lavor inigualável à genial intuição de Protágoras de Abdera... 

Agora, ali, outra vertente desse mal-amado e original filósofo francês, me convidava a travar conhecimento mútuo. Abri o livro ao acaso. Li o que se me ofereceu aos olhos: “É dessa época que posso datar minha total renúncia ao mundo e esse gosto vivo pela solidão que não me abandonou desde então.” 

“Como?”, me indaguei, “Vila-Matas escreve toda uma obra, Doutor Pasavento”, em homenagem à arte de desaparecer, que é a face mais exposta da renúncia, usando como pano-de-fundo a história de Robert Walser, e não cita Rousseau?” 

Segurando firmemente o livro de Rousseau tomei o caminho que me conduzia ao caixa para comprá-lo e, em seguida, feliz por ter sido escolhido, entrar no avião onde me esperavam algumas horas de voo e de leitura. 

sábado, 5 de dezembro de 2020

TEMPO: UMA CERTA FOTOGRAFIA NA PAREDE

 

American Girl in Italy (Ruth Orkin, 1951)

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)


Eu e a garçonete de olheiras profundas concordamos quanto à fotografia na parede. A noite apenas começava, mas ela já parecia estar muito cansada. 

Fiquei tentado a lhe perguntar se dormira nas últimas vinte e quatro horas. Melhor não, disse aos meus botões. 

A fotografia - melhor dizendo, a reprodução em preto e branco dividia, com outras, a atenção dos frequentadores. 

“É a que chama mais atenção”, disse-me ela, enquanto me servia uma taça de vinho. “Por que será?”, perguntei-lhe. “Sei lá; porque é bonita”. Furtei-me à tentação de lhe indagar em que ela se baseava para achar uma reprodução mais bonita que a outra. 

Olhei novamente a fotografia. Nela, uma americana de mais ou menos vinte anos, na década de cinquenta, atravessa um grupo de rapazes italianos postados aleatoriamente em uma esquina de Roma. 

Malgrado o nariz empinado e as passadas rápidas, há algo de aflitivo no seu olhar, causado talvez pela vergonha de tão exacerbada atenção. 

Bela obra de arte. Ruth Orkin, que a fez, nos contou que não foi difícil convencer a americana que conhecera em uma pensão para turistas a servir de modelo. Não houvera produção: exceto a ideia apresentada à moça, todo o restante foi espontâneo. 

Contei tudo isso à garçonete de olheiras e seios fartos. Ela me pareceu interessada. Comentei como não deveria estar, hoje, a modelo, se fosse viva. “Velha, enrugada, feia...”, me respondeu, “como eu vou ficar, você vai ficar, todos nós ficaremos com o passar dos anos”. 

A noite começava a ficar febril. Casais entravam, mulheres e homens desacompanhados, a maioria turista. 

Quando ela me trouxe a massa, já éramos quase amigos. Tínhamos ficado cúmplices observando tudo o que se passava ao nosso redor: a solidão do rapaz da mesa vizinha, a dialogar constantemente com seu celular; o casal de “gringos” que nunca trocava uma palavra um com o outro; as amigas que se namoravam às escondidas; o louro quase albino - talvez escandinavo - e sua acompanhante morena quase negra. 

Cada vez que ela ia, eu perscrutava ao meu redor o próximo capítulo da novela que extraíamos da noite; e ela me chegava com novidades da periferia do restaurante, que meu olhar não alcançava. 

“Você não se preocupa com sua beleza?”, lhe perguntei. “Como assim?”, indagou. “Essa história de você trabalhar a noite toda”. “Olhe, eu não me considero feia, embora não seja nenhuma “miss”; o problema é que não adianta ficar pensando em levar uma vida de dondoca quando se nasceu pobre. Lógico que eu gostaria de ter tempo para me cuidar. Mas até acho que beleza hoje é algo muito comum. Todo mundo é bonito. O difícil é ter charme”. “Mulher bonita os homens estão comprando aí fora a preço de banana”. 

“Quanto você ganha aqui, por mês?” “Uns mil, fora as gorjetas”. 

As meninas, aquelas adolescentes das quais os jornais e as teses de mestrado em sociologia e a rede social e o congresso falam, continuam passando em frente ao restaurante. São alegres, palradoras, pelo que se vê e ouve. Ganham em torno de cem por programa. E fazem dois ou três por dia. Dá uns quatro mil por mês. 

A conta chega. 

“Posso lhe perguntar outra coisa?” “Claro”, ela me diz. 

“Quando você olha para a reprodução da fotografia, qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça?” “Uma sensação de que tudo passa, mas permanece. Ontem, era aquela americana e os rapazes italianos; hoje é qualquer outra... A vida continua, mas é como se fosse sempre a mesma”. 

Ela não esperou qualquer comentário meu à resposta. Talvez já lhe tivessem perguntado isso. Ou, quem sabe, sequer teve tempo para se perguntar por que eu lhe fizera tal pergunta. Apenas respondeu. Mecanicamente. 

Desci a escada e ganhei a rua. Procurei o carro lembrando um romance que fez furor quando eu era adolescente, Sidarta, de Herman Hesse. 

Em um certo momento da estória, o protagonista observa para um seu amigo e discípulo mais ou menos aquilo que a garçonete havia me dito, enquanto contemplavam as águas de um rio. 

Para ele, Sidarta, assim como para a garçonete, embora as águas estejam sempre indo a procura do oceano, o rio continua no mesmo lugar. 

A vida passa, mas está. O homem vai, mas a humanidade permanece. 

Fim de noite. 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

FÉ: DE UM AMIGO QUE ENCONTROU A FÉ

 

Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Certo amigo meu, até recentemente ateu, me contou acerca de sua conversão. 

Disse-me ele que na meia-idade do conhecimento, na qual chegou por caminhos tortuosos, após perambulações de toda a ordem no universo dos livros, deu-se conta que era o momento de fazer um balanço em regra de sua vida passada e fazer um planejamento, mesmo que capenga, para o resto dos seus dias. 

Um assunto, em especial, assim pensava ele, clamava por atenção: sua relação com a Fé. 

Após esse primeiro ponto firmado, pôs-se a examinar o tema por um viés, digamos assim, oblíquo: entendeu que o importante era pensar acerca do mundo tal qual o estava encontrando, naquele momento. Colocou as mãos à obra. 

Em sua procura, olhando para os lados, para trás e em frente, por todos os ângulos, de todas as formas, somente encontrou o horror, a escuridão mais negra, uma história de sangue e dor, excetuando-se um ou outro ponto de luz a sobreviver sabe-se lá como, nem por quê. 

Explicou-me fazendo um paralelo: imagine, disse ele, o milagre da sobrevivência da Igreja no auge da Alta Idade Média, após a queda de Roma, quando iniciou o período que os historiadores antigos chamavam de "Idade das Trevas". 

O mundo se transformara, então, em um caos. Mas a Igreja sobreviveu graças aos monges irlandeses, que no silêncio e na solidão de seus monastérios, copistas que eram, crentes integrais, legaram ao futuro a doutrina de Cristo. 

É como se hoje em dia vivêssemos um período semelhante. Horror e escuridão, novamente, ou sempre, e o mal lutando com unhas-e-dentes para dominar, para ser hegemônico. Guerras, genocídios, estupros, roubos, torturas, infanticídios... A lista é infindável. 

Se há o mal, disse-me ele, à guisa de conclusão, então há o Bem. Se há o Bem, então há Deus. 

E, assim, por intermédio dessa estranha conclusão, de forma alguma absurda, ele chegou à Fé. 

Deus o tenha.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

ESCRITORES: À MEMÓRIA DOS ESCRITORES ESQUECIDOS

 

Reflexo, na água, do Templo Expiatório da Sagrada Família, obra de Antoni Gaudi, Barcelona. Por Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Na Rue de Lutèce, entre o Boulevard du Palais e a Rue de La Cité, em algum lugar conhecido por muitos poucos, o “La Mémoire de L'homme” cumpre sua missão de preservar histórias abandonadas pela humanidade. 

Da mesma forma, por outro ângulo, na Barcelona gótica (Barri Gòtic), o “Cemitério dos Livros Esquecidos”, do qual nos deu conta Carlos Ruiz Zafón na bela tetralogia A Sombra do Vento, arquiva, em seus infinitos desvãos, tudo quanto a loucura e a sanidade dos homens ousou escrever ao longo do tempo e terminou encaminhado às traças. 

Também alberga essa missão a Biblioteca de Babel, descrita por Jorge Luis Borges em Ficções, de 1944, que nos fala do mundo constituído por uma biblioteca sem fim, que abriga uma infinidade de livros possíveis e impossíveis, e que somente o gênio do argentino foi capaz de nos persuadir de que sua existência é fictícia. 

São histórias abandonadas tais quais aquelas vividas pelo velho militar a quem deu tempo e voz Alain de Botton em Nos Mínimos Detalhes

“Ele não tinha nenhum biógrafo para recolher suas palavras, para mapear seus movimentos, para organizar suas lembranças; ele estava vazando sua biografia para o interior de inúmeros receptores, que o ouviam por um momento, e então lhe davam uma pancadinha no ombro, e partiam para suas próprias vidas. A empatia dos outros era limitada às exigências do dia de trabalho, e assim ele morreu deixando fragmentos de si dispersos casualmente em meio a uma caixa de cartas esmaecidas, fotografias sem legenda reunidas em álbuns de família e histórias contadas a seus dois filhos e a um punhado de amigos que marcaram presença no funeral em cadeiras de rodas”. 

É a vida, tal como é.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

MORTE: A negação da morte

 


Igreja de São Jesus do Monte, Braga, Portugal

2013

Imagem do autor

* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Adolescente, recém-chegado a Natal, apaixonado por livros, não sabia por onde começar na biblioteca de minha tia, que me acolhera em seu apartamento lá pelo início da década de 70. 

Li muito, ali. Alguns livros, várias vezes. Naquele tempo não havia celular, e a televisão ainda engatinhava. 

Dia desses me perguntei quais daqueles livros, alguns ainda em minha posse, me marcaram. Não precisei procurar tanto nos desvãos já meio empoeirados da memória. Foram três, não tenho dúvida. 

Um deles é um clássico: O Meio é a Mensagem, de Marshall McLuhan. Na época, quando o li, não compreendi quase nada, mas o conceito de "Aldeia Global", um meme de McLuhan, fixou residência definitiva em meu cérebro. 

Outro foi um romance de Rabindranath Tagore, A Casa e o Mundo. Uma estória de amor vivida na Índia, escrito com uma sutileza incomum, e uma prosa densamente poética. 

Mas o fundamental, aquele que me marcou para sempre, foi A Negação da Morte, de Ernest Becker, que ao autor valeu o Prêmio Pulitzer de Não-Ficção Geral de 1974. 

É traumatizante a leitura de A Negação da Morte para um adolescente, quase rapaz. Pelo menos para mim, foi. 

Muito do que li, na primeira vez, também foi incompreensível. A custo, entretanto, de relê-lo, e ir em busca, na obra de Freud, que jazia completa nas estantes de minha tia à minha disposição, dos conceitos-chaves utilizados por Becker, terminei entendendo o núcleo de sua argumentação. 

Platão põe na boca de Codro, no Banquete: "Supondo acaso que Alcestes... ou Aquiles... ou o próprio Codro teriam buscado a morte - afim de salvar o reino para seus filhos - se não tivessem esperado conquistar a memória imortal de sua virtude, pelo qual, em verdade os recordamos?" 

Para Becker, é isso que há de fundamental no ser humano: o medo da morte. Esse receio, temor, medo, que está em cada um de nós desde o início, é o motor que nos impulsiona e a fonte de nossa permanente angústia. 

Agimos, em consequência, para reprimir esse medo, construindo "mentiras vitais" que nos permitam enfrentá-lo sob a ilusão de imortalidade histórica, e explicam, assim, a conduta do homem. 

Uma dessas condutas, a mais importante, é a ânsia por heroísmo, que em acontecendo, nos permita sobreviver na memória dos outros. 

Creio, mas posso estar enganado, que Becker bebeu na fonte instigante de Sir Bertrand Russel que mina do seu Power: A New Social Analysis, onde ele expõe a teoria de que os acontecimentos sociais somente são plenamente explicáveis a partir da ideia de Poder. 

Não algum Poder específico, como o Econômico, ou o Militar, ou mesmo o Político, mas o Poder com “P” maiúsculo, do qual todos os tipos são decorrentes, irredutíveis entre si, mas de igual importância para compreender a Sociedade. 

A causa da existência da busca pelo Poder, para Russel, é a ânsia infinita de glória, inerente a todos os seres humanos. A glória de quem a alcança, essa “mentira vital”, que supostamente iludiria a morte, por sobreviver na memória dos homens. 

Se o homem não ansiasse pela glória, não buscaria o Poder. Infinita é essa busca, posto que o desejo humano não conhece limites. 

Essa ânsia de glória dificulta a cooperação social, já que cada um de nós anseia por impor, aos outros, como ela deveria ocorrer, e nos torna relutantes em admitir limitações ao nosso poder individual. 

Como isso não é possível, surge a instabilidade e a violência. 

Em tempos mais modernos, nos quais a ideia de heroísmo e glória pessoal parece ultrapassada, foi substituída pela incessante busca por notoriedade. 

Talvez haja uma forte distinção entre uma e outra, calcada no caráter moral. No primeiro caso parece haver o anseio de passar para a história pelos feitos realizados a partir de uma concepção do Bem, em oposição ao Mal. No segundo, as ações parecem determinadas puramente pelo narcisismo. 

O certo é que Becker criou raízes fundas em mim, seja pelo impacto de uma teoria que tudo explicava no que diz respeito à conduta dos homens, seja pela angústia e prazer intensos que a tentativa de voar alto, nas coisas do espírito, originou. 

Nunca mais fui o mesmo. 

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

INFÂNCIA: Adeus, infância




Bárbara de Medeiros por Bárbara Lima
* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com             


Quando minha filha tinha sete anos, me comunicou gravemente que não acreditava mais em Papai Noel, coelhinho da Páscoa e na turma da Mônica.

- Acreditar como? perguntei. 

- Que existem, papai. 

- Por quê? insisti. 

- Papai, é que já sou adulta! 

Fora-se o tempo em que ela, aos quatro anos, virara para mãe e lhe dissera, enquanto apontava para a lua em quarto minguante: 

- Mamãe, olhe a lua seca! 

Ou então, com a mesma idade: 

- Mamãe, Papai Noel não desce pela chaminé?

- É. 

- E como ele vai entrar no apartamento para deixar meu presente, se aqui não tem chaminé? 

Ponderei que Papai Noel, por exemplo, existiria enquanto alguém nele acreditasse. Não adiantou. 

- Papai, se eu acreditar então ele existe só p’ra mim? 

Fiquei olhando. E agora, me perguntei, como explicar que Papai Noel é mais ou menos igual ao amor, ou seja, existe enquanto nós acreditarmos? 

Quando pela primeira vez ela nos disse que “talvez Papai Noel não existisse”, senti algo parecido com um desconforto um pouco dolorido. Sua infância estaria indo embora tão cedo? Essas crianças de hoje se tornavam, de fato, adultas antes do tempo? 

E imaginei, na época, que logo, logo, não estaria mais vendo seus braços gordos segurando o guidão da bicicleta, o cabelo espalhado pelo vento, a gargalhada espontânea, enquanto passava, ligeiro, por mim, balançando a mãozinha, no “Bosque dos Namorados”, e logo seu vulto se perdia ao longe. 

Aquela conversa franca e contínua, na qual todos os fatos do dia eram narrados ao mesmo tempo em que passavam por um processo de avaliação muito pessoal, como quando me comunicou que “eu fui atrás de Pedro Jorge, papai, e disse a ele que não estava mais paquerando com ele, e acho que está certo assim, papai, por que eu sou muito nova p’ra pensar nisso, não é”, seria substituída pelo recolhimento natural da adolescência. 

Aí a história passaria a ser outra: nós, adultos, ficaríamos procurando palavras para nos comunicarmos, e encontraríamos impaciência e silêncio. 

Depois, o mundo a levaria. E assim como com todos os outros pais, a nossa esperança viria a ser a internet, o telefone, as visitas esporádicas. 

Apareceriam marido e filhos e a dimensão do sentimento que eu sentia por ela talvez não pudesse nunca mais ser expressa da forma como o fazia naqueles tempos, quando a tinha ao meu lado, na rede, me contando minuciosamente tudo quanto acontecera na escola, e eu aproveitava para fazer cócegas no seu pescoço e assanhar seu cabelo, sob um protesto silenciado com promessas de me comportar que nunca eram cumpridas.