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Honório de Medeiros
Numa roda em que se discutia o pouco respeito que nós, contemporâneos, tínhamos pelos mais velhos, alguém contou uma história acontecida alguns anos atrás, para ressaltar a importância que eles têm como memória viva de uma comunidade.
A história aconteceu em uma cidade do Sertão aqui próxima, aquela mesma que você, caro leitor, está pensando.
“Disseram-me”, disse ele, “que o homicida se aproximara por trás da vítima, na esquina das “Quatro-Bocas” com o Açougue Público, no pino do meio-dia e lhe chamara pelo nome. Ao engatar seus olhos nos olhos do outro deixou cair o pano grosseiro que encobria a lambedeira de doze polegadas e lhe dera um golpe rápido e certeiro na boca do estômago, logo seguido de outro que foi meio que aparado com as mãos, e um último – esse fatal – no pescoço, mesmo na jugular, de onde o sangue jorrou aos borbotões. Tudo isso aconteceu quando o movimento era o maior possível por causa da feira do Sábado.
Quem me contou, por exemplo, estava a poucos passos do acontecido e viu tudo, tim-tim por tim-tim. Percebeu, inclusive, que todo mundo ficou meio como que congelado no tempo e no espaço enquanto o agressor, calmamente, pegou o pano que escondera a faca-peixeira, limpou o sangue do braço, e deixou ambos largados por sobre o corpo do já defunto e se esgueirou multidão a dentro.
Mesmo assim, me disseram, não demorou a ser pego. Aliás, até parece que quando saiu do local do crime apenas estava querendo tomar distância. Não era uma fuga. Tanto que seus passos, ao sair, não eram rápidos, eram enérgicos. E não houve resistência à voz de prisão. Ao contrário. Parecia até que, com a polícia, tinha um encontro marcado para o qual compareceu, como esperado, embora silencioso, e assim se manteve mesmo quando lhe perguntavam com ares ameaçadores seu nome, de onde era, e o motivo daquilo tudo.
Não houve como fazê-lo falar. Bem que o Delegado pensou em lhe dar umas bolachas destravadoras de língua, mas esbarrou na sua aversão a esses métodos e no medo ao juiz novo, que tinha fama de exigente. Sendo assim, apenas o trancafiou e determinou que começassem os procedimentos de praxe.
Na cidade, o zum-zum era grande. Quem seria aquele homem que surgira do nada e matara a vítima? As especulações eram de todo o tipo e as mais fantasiosas, começando com intrigas amorosas e terminando em questiúnculas políticas. A polícia não informava nada. Limitava-se a dizer que o homem tinha uns quarenta anos, vestia-se como qualquer um, sem nada que chamasse a atenção para si.
Era, o tal, enfim, alguém inexpressivo, que passaria totalmente despercebido no local onde cometera o crime.
Quando o falatório, qual o vento Nordeste, começou a açoitar as casas do arrebalde, trazido pelos que voltavam da feira, encontraram Mestre Zé Vidal sentado em sua cadeira de balanço, na sombra da oiticica que praticamente escondia a frente de sua casa. A cadeira ficava em um lugar estratégico: quem passava tirava dois dedos de prosa e abastecia a reserva de Mestre Zé Vidal contra o tédio de uma aposentadoria compulsória que o afastara da escrivania do Cartório Criminal da cidade.
Ele ficava ali, gordo, uma perna sobre o braço da cadeira, sandália de rabicho, calça de mescla, camisa de manga curta de algodão fechada até o pescoço, respondendo pilhérias, tirando outras, puxando assunto com quem passava. Alguém lhe levou a notícia. Aliás, vários.
Formou-se uma roda no seu entorno. Ele escutou, escutou, até que se levantou e olhando para todos e nenhum em particular lembrou que há uns tantos anos atrás, quase quarenta, mais ou menos, a vítima tinha uma tenda na feira para vender frutas. Em um Sábado, um menino pelos seus dez anos se aproximou trazendo uma lata mais ou menos do tamanho da metade de uma de querosene e mandou encher de cajarana.
Ato feito olhou para a vítima e lhe disse, apontando para trás dele, que tinha alguém o chamando. A vítima se voltou para trás. O menino desandou a correr. Mas não teve sorte. Tropeçou e caiu. A vítima lhe agarrou pelo cabelo e pegando uma corda lhe deu uma surra tremenda. O menino não chorou nada. Cada vez que tentava se levantar, levava um empurrão. Apanhou calado. Quando a vítima cansou o menino se levantou, arrumou os farrapos de sua dignidade, olhou fixamente para a vítima e lhe disse que quando crescesse iria matá-lo. E foi embora.
Podem ir atrás. O homicida é o menino.”