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sábado, 26 de janeiro de 2019

DISTORCER PARA MANIPULAR

* Honório de Medeiros

Em "On Liberty", de 1859, Sir John Stuart Mill sugere que "A única liberdade que merece esse nome é a de perseguir nosso próprio bem, à nossa própria maneira, desde que não tentemos privar os outros de seus bens, ou impedir seus esforços para alcançá-los... O único propósito pelo qual o poder pode ser exercido de forma correta sobre qualquer membro de uma sociedade civilizada contra sua vontade é impedir o mal aos outros. Seu próprio bem, físico ou moral, não é justificativa suficiente." 

Não é preciso salientar a importância dessa obra para a construção do pensamento liberal. Mas é preciso ressaltar que esse ideário é um dos mitos fundantes do Estado contemporâneo fulcrado em uma Democracia tal qual encontrada nos países ocidentais. 

Tampouco há necessidade de enumerar as críticas existentes a essa Democracia nos moldes ocidentais. São muitas. Algumas corretas. Entretanto vale a pena lembrar Sir Winston Churchill, e sua famosa "boutade": "A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas."Também vale a pena lembrar os países ocidentais como aqueles que detêm os melhores índices de desenvolvimento humano. 

As elites políticas sequiosas de obtenção e manutenção do Poder já compreenderam, de há muito, o ponto fraco na argumentação de Sir John Stuart Mill, e o distorceram para manipularem e manterem seu "status quo" de dominação. A chave é "impedir o mal aos outros"

Hoje em dia esse argumento retórico foi substituído por outro mais sofisticado e condizente com os tempos atuais: "a predominância do público sobre o privado".

Ou seja, tudo quanto for oriundo do Estado (daqueles que detêm os aparelhos do Estado em suas mãos) deve ser respeitado e obedecido, já que implica, necessariamente, no interesse do predomínio do público sobre o privado. E a prevalência do público sobre o privado existe única e exclusivamente no intuito de impedir (que se faça) o mal aos outros. 

O que está por trás dessa concepção, quando não se trata única e exclusivamente de BANDITISMO, é a crença que as elites dirigente têm em sua capacidade de saber o que é o certo e o melhor para todos.

As elites dirigentes creem ser, para isso, ungidas pelos deuses, ou pelo conhecimento, ou pelo destino, para imporem, aos comuns dos mortais, as regras que estes devem seguir em Sociedade. 

Nada mais autoritário. Nada mais arcaico. Nada mais atual.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

VONTADE, LIBERDADE, VERDADE


* Honório de Medeiros

Hannah Arendt nos encaminha, em “Responsabilidade e Julgamento”, à noção de que devemos a Paulo a ideia de “vontade”.

Paulo, crucial para a construção da doutrina da Igreja Católica, o verdadeiro fundador da filosofia cristã, com sua “Carta aos Romanos”. 

Lê-se, em Romanos, um momento antológico do processo civilizatório: “Assim, o que realizo, não o entendo; pois não é o que quero que pratico, mas o que eu odeio é (o) que faço” (7,19-21). 

Terá sido para cumprir esse desígnio que Jesus o interpelou na estrada de Damasco? “Saulo, Saulo, por que me persegues? “Quem és, Senhor?”. “Jesus, a quem tu persegues. Levanta-te, entra na cidade e te dirão o que deves fazer” (Atos 9:5,6). 

Sabemos que se deve à “Carta aos Romanos”, a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação (DCDJ), assinada entre a Federação Luterana Mundial e a Igreja Católica Romana em 31 de outubro de 1999, em Augsburgo, na Alemanha.

Também foi o ponto de partida da Reforma Protestante: Lutero escreveu seu “Comentário aos Romanos”, em 1515, e nele já se encontra seu pensamento acerca da Justificação. 

Arendt nos mostra o percurso intelectual desse conceito no pensamento de Agostinho, tão importante para a filosofia cristã: “Sempre que alguém delibera, há uma alma flutuando entre verdades conflitantes” (“Confissões”).

A Vontade decidirá.

Bem como em Nietsche e Kant, além de nos por a par de que o fenômeno da Vontade era desconhecido na Antiguidade, e que sua descoberta deve ter coincidido com a da liberdade enquanto questão filosófica, distinta de um fato político. 

Vontade, Liberdade, Verdade. 

Fundamental.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

CONCENTRAÇÃO: VOCÊ CONSEGUE?



* Honório de Medeiros

A ciência começa a comprovar algo que o senso comum já constatara: estamos ficando cada dia mais limitados na nossa capacidade de concentração, principalmente em tarefas de natureza abstrata, tal qual ler um livro.

Em "A Civilização do Espetáculo" Mário Vargas Llosa especula, a esse respeito, por vias transversas, enquanto descreve a banalização da cultura contemporânea na medida da nossa opção pelo entretenimento ligeiro, de conteúdo pobre e forma atraente, em detrimento da complexidade da anterior herança cultural comum.

Não aponta causa específica para o fenômeno, mas alude, obliquamente, à onipresença imperiosa, por trás dos panos, da incessante busca pelo lucro.

Em outra face da questão o filósofo americano Michael J. Sandel, autor do aplaudido "Justiça" menciona, em "O que o Dinheiro não Compra", corroborando Llosa, o poder avassalador do mercado a dominar tudo e todos, corações e mentes, e suas consequências no universo moral. 

Quem diz mercado, diz lucro.

Daniel Coleman, famoso psicólogo americano professor em Harvard, criador do conceito de "Inteligência Emocional", pondera acerca do déficit de atenção cada vez mais profundo em nossa civilização, decorrente da escravidão às redes sociais, a originar uma demanda, no futuro, instaurada pelo próprio mercado, de em relação a todos quanto sejam capazes de se concentrar em tarefas de médio e longo prazo.

E se quando o mercado reagir a catatonia (alienação) já estiver plenamente estabelecida?

Acerca do fenômeno da volatilidade das percepções, causa e consequência desta atual fase do capitalismo, discorre Baumant com excepcional clareza em suas obras, de caráter mais filosófico que sociológico. Somos uma sociedade evanescente, diz ele, na qual a transitoriedade de tudo, cada vez mais acentuada e veloz, será o único fator permanente.

Ou seja, mercado, lucro, redes sociais potencializadoras, volatilidade, déficit de atenção, tudo está interconectado.

Ainda em outra face - são mesmo muitas, para a mesma realidade - Moisés Naím especula acerca da fragmentação do Poder, como o conhecemos, em consequência dessa realidade volátil, evanescente, permanentemente transitória, efeito, entre outras coisas, dos meios por intermédios dos quais ela é alimentada e cresce, ou seja, por exemplo, a rede social e a interconectividade.

O que estaria por trás de tudo isso? Como chegamos a esse patamar? Que teoria explicaria esse fenômeno em sua inteireza?

A menção, feita por Llosa, Sandel, tanto quanto Michel Henry e Debord, estes aqui ainda não citados, mas que também especulam acerca de faces dessa mesma questão social, e a onipresença do mercado poderia dar razão ao Marx sociólogo, embora não a aquele do materialismo dialético. Ou à teoria da seleção natural de Darwin, do qual o capitalismo seria uma consequência, digamos assim.

Nesses casos bem vale o dito atribuído a Proust: "o tempo é senhor da razão."

Ressalve-se, apenas, que as tentativas para conter a alienação, quando e se acontecerem, promovidas seja pelo próprio mercado, seja pelo Estado, poderão encontrar um status quo irreversível. Isso acontecendo, tendo como causa um brutal nivelamento por baixo em termos de capacidade de apreensão, de cognição, de capacidade de pensar em termos complexos, perdemos todos.

Concretamente viveremos a realidade das escolas no Brasil, hoje: cada dia mais alunos, cada dia menos conhecimento.

* Arte em www.daladierlima.com

terça-feira, 11 de setembro de 2018

PLATÃO E SUA ONIPRESENÇA


Honório de Medeiros

* Emails para honoriodemedeiros@gmail.com
* Respeitemos o direito autoral. Em conformidade com o artigo 22 dLEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências, pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.


Platão põe na boca de Codro, no Banquete: "Supondo acaso que Alcestes... ou Aquiles... ou o próprio Codro teriam buscado a morte - afim de salvar o reino para seus filhos - se não tivessem esperado conquistar a memória imortal de sua virtude, pelo qual, em verdade os recordamos?"

Recordo, então, de Ernst Becker, e seu A Negação da Morte.

Para Becker  o que há de fundamental no ser humano é o medo da morte.

Esse medo, que está em cada um de nós desde que construímos nossas primeiras noções acerca de nós mesmos e do que nos cerca, é o motor que nos impulsiona e a fonte de nossa permanente angústia.

Agimos, em consequência, para reprimi-lo, construindo "mentiras vitais" que nos permitam a ilusão de permanência histórica e explicam, assim, a conduta do homem.

Delas a mais importante é a ânsia por heroísmo, que em acontecendo, nos permitiria sobreviver na memória dos outros.

Creio, mas posso estar enganado, que Becker bebeu na fonte instigante que mina de Power: A New Social Analysis, de Sir Bertrand Russel, onde ele expõe a teoria de que os acontecimentos sociais somente são plenamente explicáveis a partir da ideia de Poder.

Não algum Poder específico, como o Econômico, ou o Militar, ou mesmo o Político, mas o Poder com “P” maiúsculo, do qual todas os tipos são decorrentes, irredutíveis entre si, mas de igual importância para compreender a Sociedade.

A causa da existência do Poder, para Russel, seria a ânsia infinita de glória, inerente a todos os seres humanos.

Se o homem não ansiasse por glória, não buscaria o Poder. Infinita posto que o desejo humano não conhece limites. Essa ânsia de glória dificulta a cooperação social, já que cada um de nós anseia por impor, aos outros, como ela deveria ocorrer e nos torna relutantes em admitir limitações ao nosso poder individual.

Como isso não é possível, surgem a instabilidade e a violência.

Mas não somente.

No Estadista Platão alude, em tradução direta do grego arcaico por Sir Karl Popper para A Sociedade Aberta e Seus Inimigos a uma "Idade de Ouro, a era de Cronos, uma era em que o próprio Cronos rege o mundo e em que os homens nascem da terra, (...) seguida pela nossa própria era, a de Zeus, um período em que o mundo é abandonado pelos deuses e só conta com seus próprios recursos, sendo, consequentemente, um tempo de acrescida corrupção."

É de se recordar toda a obra de Talkien, principalmente o Silmallirion e sua cronologia do surgimento das raças que povoaram a Terra Média até que os homens a assumissem em definitivo, na Quarta Era.

Teria a leitura de Platão influenciado a obra do erudito autor de O Senhor dos Anéis?

 Arte: filosofia.com.br

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

A CRÍTICA É O PRESSUPOSTO DO CONHECIMENTO



* Honório de Medeiros

Um dos maiores, senão o maior, mal do qual padece a Educação, é a crença – o termo correto é esse – no aprendizado por informação.

Por essa crença nosso cérebro seria como um recipiente vazio que deve ser preenchido com informações que nos forem fornecidas.

Popper denominou essa crença de “Teoria do Balde Vazio”, e ela depende, fundamentalmente, da suposição de que conhecemos por que observamos, o que nos conduz a um empirismo ingênuo, no qual a observação do que somos e do que nos cerca é possível graças ao raciocínio indutivo.

Este não é o espaço apropriado para analises acerca dessas teorias. Convém lembrar, de forma parafraseada, entretanto, um “blague” que Popper, em tom irônico, apresentou em uma de suas obras dedicadas à Teoria do Conhecimento: se solicitarmos a algumas pessoas que durante certo tempo cronometrado apenas observem, e, em seguida, nos digam o que aprenderam com essa observação, provavelmente todas elas indagarão: “em relação ao quê?”

Pois parece óbvio que somente é possível o conhecimento de algo a partir de um conhecimento pré-existente, o que situa a observação no seu devido lugar, qual seja o de comprovar, ou negar, nossas hipóteses teóricas.

Não por outra razão a informação (conhecimento) que não é precedida de um conhecimento criticado, que nos permita compreender aquilo acerca do qual que se está sendo informado, resulta em nada.

E, também, não por outra razão, lê-se sem que se compreenda, participa-se dos fatos enquanto manipulados, fala-se e escreve-se o que não tem sentido, concretizando a imagem fiel da alienação intelectual que descreve tão bem o mundo em que vivemos.

Para que se estabeleça o processo de aquisição do conhecimento é preciso que algo deflagre, em nós, a angústia criativa de sobreviver a uma realidade que não mais é apreendida como o era até então. Ocorre em situações críticas, deliberadamente, como ocorre independentes de nossa vontade. O senso comum diz isso de forma brilhante: “a necessidade é a mãe da invenção”.

Podemos, claro, gerar esse processo de conhecimento. Se formos estimulados a criticar (no sentido de buscar falhas, contradições, desarmonias) na informação que nos é fornecida, com certeza avançaremos. A crítica, portanto, é o pressuposto do conhecimento consciente. Não por outra razão Bachelard, o poeta/filósofo, afirmou: “O conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão”.

E não por outra razão o pensador dinamarquês Soren Kiekergaard nos impelia a “duvidar de tudo”.

Muito mais recentemente Karl Popper propôs que o conhecimento novo – não apenas a filosofia – começasse sempre por problemas. Esses problemas surgiriam do contraste entre o conhecimento antigo, a expectativa de que regularidades, padrões, se mantivessem, inclusive em relação a nós mesmos, e a fragmentação dessas expectativas.

Ao nos depararmos com algo que esse conhecimento antigo não explicasse, haveria uma fragmentação nas nossas expectativas e surgiria, então, o problema a ser solucionado.

Observe-se que tal teoria pressupõe a existência do conhecimento inato adquirido geneticamente, no que é referendada pela teoria da seleção natural de Darwin.

A técnica mais banal para o exercício da crítica é o uso do contra-argumento (contraexemplo). Uma vez tendo recebido alguma informação, submetamo-la à crítica argumentando contra, na medida de nossas possibilidades. Ou seja, "dialetizemos" (no sentido de Bachelard e sua "Filosofia do Não") a informação.

Se a informação sobreviver à crítica, teremos avançado.

Nada teremos a perder, muito teremos a ganhar em utilizando tal técnica. Outra técnica simples é indagar, dialogar com a informação. Para tanto cabe usar o que nos ensina a técnica jornalística, indagando a nós mesmos e também respondendo: Quem? Quando? Como? Onde? O quê? Por quê?

Uma vez que o espírito da crítica pedagógica, a vigilância epistemológica que pode conduzir à ruptura epistemológica, à “reforma das ilusões”, se estabeleça como “Paidéia”, padrão cultural, ideal civilizatório, o avanço será inexorável.

Para que se tenha ideia de como não evoluímos ao longo desses anos, em discurso na solenidade de formatura de todas as turmas concluintes do ano de 1982, representando os alunos, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, tive a oportunidade de dizer:

“Como entender, por exemplo, que no âmbito da Universidade, onde o sonho e a crítica deveriam caminhar de mãos dadas, permeando a efígie do futuro de esperança e conhecimento, nada mais se encontre do que o imediatismo, o pragmatismo solerte e a mera repetição anacrônica de informações? Como aceitar a inacreditável relação professor-aluno, completamente abstraída da consciência do saber, que conjuntamente com a preocupação de suscitar dialéticas, referendar críticas e debates livres, numa ontologia da ideia ensinada e na aplicação do racionalismo docente, constitui a preocupação básica de Gaston Bachelard, exposta em sua obra “Racionalismo Aplicado”, onde nos lembra: “De fato, numa educação de racionalismo aplicado, de racionalismo em ação de cultura, o mestre apresenta-se como negador de aparências, como freio a convicções rápidas. Ele deve tornar mediato o que a percepção proporciona imediatamente. De modo geral, ele deve entrosar o aluno na luta das ideias e dos fatos, fazendo-o observar bem a inadequação primitiva de ideia com o fato”.

Se na observação do problema limitamo-nos ao componente psicológico da relação professor-aluno, necessário se faz observar os próprios problemas estruturais em torno dos quais gravitam os específicos. Precisamos ir ao encontro do espírito mais geral que preside os fatos e as idéias no âmbito da Universidade. Fundamental é retornar à consciência crítica e política no sentido socrático-aristotélico, que é seu pressuposto maior. Fundamental é acreditar que quimera e contestação, a discussão, a livre manifestação de idéias - alicerce do conhecimento - caminham ou caminharão nos corredores da Universidade.”

Portanto precisamos ensinar a criticar, para que seja possível conhecer, afastando, de vez, essa perspectiva ideologicamente equivocada e intelectualmente ultrapassada de informar para formar.

* Arte em blog.ori.net.com

sábado, 18 de agosto de 2018

A ÁRVORE DO CONHECIMENTO



* Honório de Medeiros

O conhecimento pode ser imaginado como uma árvore cujo tronco repouse no chão ancestral onde o homem pré-histórico caçava, coletava e, graças à primitiva linguagem, bem como à incipiente capacidade cooperativa, se tornou uma espécie apta a sobreviver. Não é uma imagem precisa, tampouco absolutamente correta, mas cumpre seu propósito de ser assimilada.

Os problemas com os quais aqueles nossos antepassados se depararam e as soluções engendradas para ultrapassá-los formaram galhos, ramos, folhas, em ritmo cada vez maior e mais denso, em uma escala inimaginável. Cada folha, como se há de perceber, avança rumo ao infinito desconhecido por um rumo que sugere uma proporcionalidade inversa: quanto mais específico o conhecimento por ela simbolizada, mais ampla e profunda a vastidão a lhe servir de contraponto.

Se focarmos essa imagem em busca de nitidez podemos acompanhar, como parâmetro, o desenvolvimento da Matemática, desde os primitivos números naturais até o cálculo, hoje, de tensores hiperespaciais, essas projeções hipotético/geométricas interdimensionais. Podemos acompanhar, também, a evolução da linguagem como lembrada acima até a Babel dos tempos modernos, constituída de signos bem diferenciados – desde os sinais utilizados pelos surdos-mudos, passando pelo informatiquês e o idioma dos guetos, presídios, e subúrbios, até a lógica apofântica do sub-universo computacional.

Aliás, o mundo da informática é muito exemplificativo dessa teoria da árvore do conhecimento. No início, meados do século XX, um computador ocupava salas; hoje, os “chips” guardam quantidades colossais de informações. Que revolução não há de ser o surgimento do “chip” quântico!

A imagem da árvore do conhecimento é possível graças à Teoria da Evolução de Darwin. É, digamos, um corolário. Podemos perceber que o Conhecimento diferencia-se e se especializa na medida em que avança. Sabemos, hoje, quase tudo acerca de quase nada em cada “nicho” do conhecimento, embora tudo quanto descartado por não ter sobrevivido ao choque entre ideias forme uma contrapartida em negativo da realidade. Contrapartida que agrega: aquilo que descartamos não precisa ser outra vez cogitado.

Essa árvore é finita e limitada (conceitos distintos) no espaço e tempo conhecidos, mas infinita e ilimitada quanto as suas possibilidades de crescimento. O futuro, para onde ela avança, é construção do passado, e como cada estrada amplia a quantidade de lugares onde se há de chegar, cada problema resolvido no processo de aquisição do conhecimento implica na ampliação de universos de saber.

Ou seja, o tempo, cada vez mais, dá razão a Darwin. E não há limite para o Conhecimento.

Funciona dessa forma em termos macros, mas também funciona dessa forma em termos pessoais. Cada avanço nosso implica em ampliar o universo daquilo que não conhecemos. É um paradoxo: quanto mais sabemos, mais há a saber.

É, por fim, o voo do solitário para o infinito: “É como se cada um de nós, estando dentro de um ambiente fechado, uma clausura, criasse uma saída e a utilizasse. Lá, do outro lado da saída, lhe espera um outro ambiente, também fechado, só que maior, bem maior. Sua tarefa, assim, é sempre criar outra saída, sair, entrar em outro ambiente ainda maior, criar outra saída, sempre, em uma escala exponencial...”

Em termos pedagógicos, diria Bachelard: "todo conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão."

terça-feira, 14 de agosto de 2018

DE SER OU NÃO SER ALIENADO

* Honório de Medeiros


"A verdade é filha da discussão, e não da simpatia" (Gaston Bachelard, "A Filosofia do Não").


Ausentar-se de si mesmo e viver a realidade do(s) outro(s), não a realidade das coisas ou dos fatos, posto que as coisas e os fatos são extensões nossas ou dos outros, são projeções de como os percebemos, na justa medida em que no limite último de cada coisa ou fato observado está uma ideia ordenadora, organizadora da realidade, e as ideias governam toda a realidade.

"No princípio era o Verbo" (João, 1). Tal ausência de si denominamos alienação.

Se de mim me ausento não percebo o Outro, apenas nossas sombras a se moverem na parede de uma caverna onde estamos prisioneiros, como na célebre alegoria de Platão em "A República".

Tudo, então, é aparência.

Não por outra razão o "conhece-te a ti mesmo", de Sócrates. E conhecermo-nos a nós mesmo implica em dizer não à aparência, a duvidar daquela nossa sombra na caverna. Somente somos livres quando ousamos dizer não ao que nos aprisiona, nos acorrenta, nos impede de perceber a realidade como de fato ela é.

Ser ou não ser alienado, na verdade, é Conhecer ou não Conhecer, eis a questão, eis o caminho.

Tal qual nos acicata Bachelard: "o conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão".

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

DISTINGUIR PARA CONHECER

* Honório de Medeiros                                    


Nós distinguimos para conhecer, e o conseguimos na medida em que somos capazes de descobrir tudo quanto o “Objeto[1]” que queremos apreender possui diferenciado de todos os outros.

Somente conseguindo perceber essas distinções entre um “Objeto” e outro é possível avançar no conhecimento[2].

Às vezes não percebemos, mas a todo instante estamos distinguindo para conhecermos.

Quando, por exemplo, conhecemos alguém, e somos capazes de descrevê-lo para outrem, nada mais estamos fazendo que relacionar suas características intrínsecas e as utilizando para distingui-lo de qualquer outro.

Poderemos dizer: ali está João, branco, alto, magro, cabelos e olhos castanhos, usando óculos, vestido com calças jeans, camisa pólo amarela e tênis.

Essa descrição permite-nos distingui-lo de José. Quanto mais distinguirmos João, mais poderemos distingui-lo de todos os outros.

Não é errado afirmar que se não fôssemos capazes de distinguir e, em assim o sendo, conhecermos, não teríamos sobrevivido como espécie.

Na aurora da história do homem, distinguir entre os inimigos naturais e aqueles outros que não ofereciam perigo à sobrevivência talvez fosse a diferença entre voltar vivo ou ficar morto na caçada.

Esse processo demanda encontrar aquilo que os antigos chamavam a “essência” de cada coisa. Tal “essência” era única, inigualável, e tornava um Objeto diferente de qualquer outro.

No âmbito do Direito, por exemplo, podemos perceber que uma das suas características intrínsecas, essenciais (se é que existem outras), é a existência da norma jurídica – sem ela, apenas sem ela, não há Direito.

Usando uma imagem não muito sofisticada, mas reveladora, podemos dizer que a norma jurídica está para o Direito como a célula para o tecido, e o átomo para a matéria.

No universo do Direito, como em qualquer outro ramo do conhecimento humano, essa atividade ou atitude, de distinguir para conhecer, chamemo-la assim, é fundamental. 

É através da identificação das características essenciais do Direito que podemos estabelecer sua diferença da Moral, por exemplo. É através dessa identificação que podemos estabelecer diferença entre a norma de poder e a jurídica. Entre a norma religiosa e a jurídica.

Conhecer um Objeto é também dizê-lo. Se esse “diálogo” do Sujeito Cognoscente com o Objeto Cognoscível é puramente subjetivo, ou seja, existente apenas para aquele que tenta conhecer, a Filosofia ou a Ciência aqui não existem.

É como a poesia que somente o poeta que a fez conhece: nada dela podemos falar, por que nunca nos foi apresentada.

Quando, entretanto, no processo de conhecer, dizemos a alguém ou aos outros tudo quanto apreendemos, estamos expondo, de forma objetiva, seja falando, seja escrevendo, aquilo que, no nosso entendimento é o “Objeto”, e submetendo essa exposição à crítica.

Dizer o “Objeto” somente é possível através de juízos de fato, juízos de fato que não podem ser testados, ou juízos de valor. (Os juízos dizem nossas conjecturas, teorias acerca de nós mesmos; do outro (s); das coisas ou dos fenômenos).

Os fenômenos decorrem das coisas[3]: a luz diurna, do sol; o Direito, da sociedade, etc. No primeiro caso, nossos juízos ou proposições ou afirmações podem ser verdadeiras ou falsas, conforme sendo submetidas a testes, venham a sobreviver.

Se eu digo: “o consumo de bebida alcoólica nos finais-de-semana amplia o índice de acidente automobilístico”, este é um juízo de fato que poderá ser verdadeiro ou falso. Se verdadeiro ou falso, de qualquer forma o conhecimento avançou.

No primeiro caso, por que passamos, a saber, qual o efeito da bebida alcoólica no trânsito e, assim podemos prognosticar o futuro; no segundo, porque excluímos definitivamente uma afirmação das nossas tentativas de conhecer – já não será mais necessário testar essa afirmação, vez que isso já foi feito e já sabemos o resultado.

Enquanto os juízos de fato são do mundo da ciência, os juízos de fato que não podem ser testados e os juízos de valor não o são.

Com efeito, os juízos de valor são afirmações ou proposições às quais nós agregamos um valor que é nosso e que nos dizem não como a realidade é, mas, sim, como nós queremos que ela seja e fazem eles parte do “mundo” da persuasão ou convencimento; da retórica, enfim.

Quando eu digo: “Maria é bela”, esse juízo de valor não é falso ou verdadeiro em si mesmo e nada acrescenta quanto ao conhecimento real de Maria. Até por que muitos poderão achar que ela não seja bela. Trata-se de uma opinião pessoal, com a qual se pode ou não concordar.

Os juízos de fato que não podem ser testados fazem parte da filosofia. Se eu digo: no ano 3.000 não existirá Direito, aqui não há um juízo de valor, tampouco um juízo de fato, mas, sim, um juízo de fato que não pode ser testado.

Os juízos de fato, se verdadeiros ou não, agregam conhecimento para todos. Os juízos de valor podem agregar conhecimento acerca de quem os proferiu, mas, com certeza, não agrega acerca do “Objeto” analisado.

O conjunto sistematizado dos juízos forma uma teoria/conjectura acerca do “Objeto”. Essa teoria somente será verdadeira se testada e, portanto, comprovada suas afirmações. 

Se houver o teste, e as afirmações revelarem-se verdadeiras, a teoria é provisoriamente perfeita, embora possa ser limitada quanto ao alcance de sua abrangência. É por exemplo o caso da teoria de Newton que continuou sendo verdadeira, mesmo após a teoria da relatividade de Einstein, embora limitada à velocidade inferior à luz.

Assim, tanto na ciência como no dia-a-dia, estamos permanentemente elaborando teorias acerca de algo ou alguém.

Essas teorias podem ser formadas por juízos de fato, juízos de fato que não podem ser testados, ou juízos de valor. No primeiro caso, podem ser verdadeiras ou falsas e, no segundo e terceiro, aceitas ou não, de acordo com a persuasão de quem as elaborou.

[1] É indiferente, para esta discussão, se o Objeto é algo real ou um processo.

[2] Em “A Arte de Pensar”, o notável Pascal Ide nomina o processo de “distinguir” como “dividir”, e considera que é um dos instrumentos fundamentais para aprender a pensar.

[3] Kant.

sábado, 16 de dezembro de 2017

A VERDADE CONVENIENTE

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

A Verdade Conveniente é aquela contaminada pela cômoda aceitação, intuída ou inferida por quem a diz, daquele ou daqueles a quem é dita. 

Há, nela, o que se poderia chamar de covardia da conveniência. 

Pressupõe a omissão calculada de outras verdades, aquelas que desconstroem as ilusões. 

Pressupõe a comodidade de deslizar pela vida sem construir arestas que tolham o bem-estar, construindo uma falsa aceitabilidade social. 

A covardia da omissão é a afirmação da covardia.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

JUSTIÇA? QUE JUSTIÇA?

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros.@gmail.com

Aos meus alunos do curso de Filosofia do Direito, vez por outra eu propunha o seguinte problema:


“Façam de conta que vocês são chefes de uma estação de trens, responsáveis, entre outras coisas, pela direção que as locomotivas devem tomar em seus percursos diários.

Um dia, durante o expediente, vocês recebem um comunicado urgente lhes informando que uma das locomotivas que passam em sua estação está completamente desgovernada e em alta velocidade.

Em sua estação vocês têm a possibilidade de conduzir a locomotiva, apertando os botões A ou B, por duas diferentes opções.

Seu tempo para decidirem é extremamente curto. Algo como segundos.

Vocês sabem que na linha A trinta homens estão trabalhando na manutenção. E sabem que na linha B cinco homens lá trabalham fazendo o mesmo.

Qual a decisão de vocês?"

Em todos os anos de ensino, a resposta foi sempre a mesma: todos optaram por apertar o botão B. Ao lhes indagar por que faziam assim, respondiam-me que lhes parecia certo escolher a linha na qual estavam menos homens.

Então eu lhes perguntava: “e se, na linha B, estava um engenheiro de manutenção, que por coincidência, era pai de vocês e um irmão, seu auxiliar”?

Seguia-se um silêncio embaraçoso. A grande maioria se recusava a responder a questão. Um ou outro, muito pouco, tendia para um lado ou para o outro.

Questões como essa começam a ser esmiuçadas pela psicologia social, um ramo que em muito deve seus avanços à combinação de duas vertentes poderosas: a teoria da seleção natural de Darwin, e o afã em larga escala, tipicamente americano, de realizar pesquisas de campo.

É nesse nicho que transita Leonard Mlodinow, festejado autor de “O Andar do Bêbado”, em seu novo livro denominado “Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas”.

Mlodinow é doutor em física e ensina no famoso Instituto de Física da Califórnia. Mais que isso, ele é coautor, junto com Stephen Hawking – sim, isso mesmo – de alguns livros de inegável sucesso tanto de público quanto de crítica.

Em “Subliminar” Mlodinow, fundamentado em vasta pesquisa, apresenta hipóteses instigantes, como essa que eu transcrevo abaixo:

“Como enuncia o psicólogo Johathan Haidt, há duas maneiras de chegar à verdade: a maneira do cientista e a do advogado. Os cientistas reúnem evidências, buscam regularidades, formam teorias que expliquem suas observações e as verificam. Os advogados partem de uma conclusão a qual querem convencer os outros, e depois buscam evidências que a apoiem, ao mesmo tempo em que tentam desacreditar as evidências em desacordo.

Acreditar no que você quer que seja verdade e depois procurar provas para justifica-la não parece ser a melhor abordagem para as decisões do dia a dia.

(...)

Podemos dizer que o cérebro é um bom cientista, mas é um advogado absolutamente brilhante. O resultado é que, na batalha para moldar uma visão coerente e convincente de nós mesmos e do resto do mundo, é o advogado apaixonado que costuma vencer o verdadeiro buscador da verdade.”

Muito embora o autor se refira a advogados, claro que ele alude a todos quanto lidam com a tarefa de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica.

Em assim sendo faz sentido acreditar, como muitos acreditam, que os juízes, por exemplo, primeiro constroem um ponto de partida extrajurídico (sua visão do mundo, seus valores, seus interesses pessoais, etc.) e, somente depois, buscam evidências que apoiem suas futuras decisões.

A Retórica é exatamente isso, enquanto técnica.

A pergunta seguinte: a partir de que os operadores do Direito constroem esse ponto de partida pode ser lida em um dos mais instigantes capítulos da obra de Mlodinow: “In-groups and out-groups”. Nesse capítulo o autor chama a atenção para um epifenômeno que, hoje, é fato científico: a tendência que temos de favorecer “os nossos”:

“Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de um ‘in-group’, e qualquer grupo que as exclui de ‘out-group’. (...) É uma diferença importante, porque pensamos de forma diversa sobre membros de grupos de que somos parte e de grupos dos quais não participamos; como veremos, também veremos comportamentos diferentes em relação a eles.

Quando pensamos em nós mesmos como pertencentes a um clube de campo exclusivo, ocupando um cargo executivo, ou inseridos numa classe de usuários de computadores, os pontos de vista de outros no grupo infiltram-se nos nossos pensamentos e dão cores à maneira como percebemos o mundo.

Podemos não gostar muito das pessoas de uma maneira geral, mas nosso ser subliminar tende a gostar mais dos nossos companheiros do nosso ‘in-group’.

Essa constatação – de que gostamos mais de pessoas apenas por estarmos associados a elas de alguma forma – tem um corolário natural: também tendemos a favorecer membros do nosso grupo nos relacionamentos sociais e nos negócios (...)”

Ou seja, como diz o senso comum: para os amigos tudo; para os indiferentes, a lei; para os inimigos, nada...

Se assim o é, e a ciência vem mostrando que sim, um dos corolários da obra de Mlodinow é pelo menos intrigante, e dá razão ao que dizem, desde há muito, os anarquistas e marxistas: a "visão de classe" contamina as decisões do aparelho judiciário.

Não somente do aparelho judiciário. Contamina a produção, interpretação e aplicação da norma jurídica.

Isso quanto aos marxistas e anarquistas. Quanto aos darwinistas, nem se discute mais o assunto. Para quem não é anarquista ou marxista, basta Gaetano Mosca, que também aborda, brilhantemente, essa perspectiva, quando trata da "classe política dirigente".

E quanto ao mundo jurídico? Neste caso, ainda está muito atrasada a discussão.

Ainda há "juristas" que dizem ser o Direito uma ciência...

domingo, 3 de dezembro de 2017

DEUS NÃO JOGA DADOS?

* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

Como emerge um sistema?


Se considerarmos que Einstein estava correto, e “Deus não joga dados”, ou seja, se está correto o princípio que propõe existir uma causa para tudo quanto existe, é possível supor um retorno causal a um último ponto-de-partida.

As questões metafísicas, claro, surgem, então, aos borbotões: propondo sempre a perspectiva de uma explicação científica, portanto deixando de lado a hipótese Deus, é de se perguntar o que havia antes desse ponto-de-partida.

Ou o que deflagou esse ponto-de-partida. 

Não pode ser o “nada”, posto que do “nada”, nada se origina.

Entretanto, se o ponto-de-partida surgiu a partir de algo, voltamos ao início: e o que originou esse ponto-de-partida?

Independente dessas dificuldades próprias de uma concepção determinista do “tudo”, contra ela podemos elencar várias críticas: a concepção indeterminista oriunda da física quântica, ou mesmo o postulado de Göedel, que demonstra a impossibilidade de construir uma linguagem matemática definitivamente consistente que expresse uma realidade, o que nos impossibilita descrever completamente o “tudo”.

Entretanto, a se aceitar nossa condição humana de sermos programados evolutivamente para raciocinarmos causalmente (indução e dedução), podemos conceber a realidade (o “todo”) enquanto um incomensurável sistema, cujo ponto-de-partida perceptível, nas atuais condições, é o “big bang”, da realidade conhecida.

Mesmo assim, provavelmente um grande lapso em termos de tempo terá que ser percorrido até sermos capazes de compreender como as lacunas entre o “ponto-de-partida” e a realidade atual são preenchidas. Uma tarefa tanto mais complexa quanto parece existir uma persistente impossibilidade de conciliação entre a física newtoniana e einsteiniana com a física quântica.

Ou seja, a questão de como emerge um subsistema dentro de outro subsistema, ou seja, como surge um subsistema de normas dentro de um subsistema de poder dentro de um subsistema social dentro de um subsistema orgânico dentro de um subsistema realidade física, nesse diapasão, é realmente uma tarefa descomunal.

Entretanto, deterministas, causalistas, sistêmicos, como aparentemente somos geneticamente instados a ser para sobrevivermos, mesmo que não tenhamos sequer uma pálida noção de todas as relações existentes entre os subsistemas, e, muito menos, daquilo que se origina quando subsistemas se conectam com outros subsistemas engendrando ocupações de “espaços” vazios, não paramos de teorizar, e construir explicações acerca das lacunas no conhecimento, ou mesmo construir teorias que avançam no desconhecido.

A imagem possível que expressa essa concepção é a mesma, embora infinitamente menor, que a teoria do “big bang” possibilita: o nada sendo ocupado pela matéria, ou seja, a ignorância sendo ocupada pelo conhecimento.

Uma realidade finita, mas ilimitada, como pensava Einstein, lentamente ocupada pelo conhecimento, até que a equação final explique tudo.

E tudo desapareça.

sábado, 18 de novembro de 2017

O JUSTO NÃO ESTÁ FORA DE MIM


* Honório de Medeiros
Emails para honoriodemedeiros@gmail.com

O nominalismo de Guilherme de Ockham questionou a possibilidade de as Coisas (“a Coisa-Em-Si”, “ o Objeto”, “o Ser”, “a Realidade”) dizerem, ao Sujeito Cognoscente, aquilo que elas são (suas essências).

Ou seja, nós é que, enquanto demiurgos, ordenamos, organizamos aquilo que nossos sentidos apreendem de forma caótica, a partir do nosso conhecimento pré-adquirido (Kant, Bachelard, Popper...).

Podemos rastrear tal concepção, de certa maneira, até o relativismo sofista (Protágoras de Abdera, Antístenes versus Platão), mesmo até Parmênides.

O nominalismo também impede a fenomenologia de Bergson e Husserl e a pretensão de uma ciência cujo objetivo seja “compreender”: não é o termo “salinas” (lugar onde se cultiva sal) que me diz algo; eu é que digo algo dele, a partir do conhecimento que já possuo.

Não por outra razão a beleza desse trecho de "Romeu e Julieta", Ato II, Cena II:

"JULIETA - Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome. Que há em um simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservava a tão preciosa perfeição que dele é sem esse título.

Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo inteira."

Não há, pois, essência a ser apreendida, Platão estava errado, os sofistas estavam certos.

Thomas Nagel (“Visão a Partir de Lugar Nenhum”; Martins Fontes; SP; 2004; 1ª edição; p. 137; nota) observa que “Chomsky e Popper rechaçaram as intransigentes teorias empiristas do conhecimento”.

Nominamos relações, processos, evanescências; não há coisas a serem nominadas.

O Justo não está fora de mim, está em mim...

* Arte: www.ebah.com.br

domingo, 1 de outubro de 2017

INATO OU ADQUIRIDO?



Honório de Medeiros

Quem leu "A Tempestade", de Shakespeare, ou a assistiu, conhece o célebre jogo de palavras:

"É um demônio, um demônio de nascença, / em cuja natureza jamais pôde atuar a educação."

O solilóquio completo de Próspero é o seguinte:

"É um demônio, um demônio de nascença, em cuja natureza jamais pôde atuar a educação. Foram perdidos todos os meus esforços; sim, perdido completamente, sempre, quanto hei feito a ele por amor à humanidade. Seu corpo com a idade fica hediondo e cada vez mais ulcerado o espírito. Atormentá-los vou até que rujam."

Eis como a arte antecede a ciência. 

A essência desse solilóquio é aquela da filosofia: "inato ou adquirido?"

Richard Dawkins a descreve assim, em "Fome de Saber", o volume 1 de suas memórias: "Os filósofos vêm pelos séculos afora refletindo sobre essa questão. Quando do que sabemos é embutido de forma inata, e até que ponto a mente é uma tábula rasa, à espera de que algo seja escrito nela, como acreditava John Locke?"

Karl Popper encaminhou seu gênio para resolver essa questão. É a medula de sua epistemologia. Aliás, até onde sei, o termo "tábula rasa" foi criação dele.

Muito interessante esse jogo de conectar idéias oriundas de diversas fontes. Shakespeare, Locke, Popper, Dawkins...

* Arte: www.mallarmargens.com

sábado, 22 de abril de 2017

O PAN-SISTEMA; O SISTEMA; A TEIA

* Honório de Medeiros


O Pan-sistema; O Sistema; A Teia; conjunto de todas as relações entre todos os seres vivos.

Uma teia que não tem um centro e ocupa todos os espaços. Dinâmico, complexo e adaptativo. Aberto quanto ao que lhe cerca e fechado internamente.

O Pan-sistema; O Sistema, A Teia, é finito, porém ilimitado.

Finito, posto que há um número finito de seres humanos; ilimitado, posto que ilimitadas são as relações internas a serem estabelecidas DENTRO do Sistema. 

O Sistema tende a ocupar espaços vazios externamente a Si; internamente os elementos que o compõem tendem a ocupar os espaços vazios em Si, reforçar os elos, expandi-los, retraírem-se.

Um Meme é um novo elo. Elos se desfazem e são construídos em uma perspectiva potencialmente finita, porém ilimitada.

Dada a quantidade de variáveis que compõem o Sistema, é praticamente impossível, conforme a ciência de hoje, prever o futuro, principalmente porque ele está em construção.

É possível imaginar o Efeito Borboleta, da Teoria do Caos, mas não é concebível descrever matematicamente as consequências totais de qualquer fato, por menor que seja, no âmbito do Sistema.

O Sistema é maior e mais complexo que a soma de todos os elementos que o compõem.

quinta-feira, 30 de março de 2017

QUANDO TUDO VALE, NADA VALE; QUANDO NADA VALE, TUDO VALE

* Honório de Medeiros

O combate à meritocracia é a ponta-de-lança da defesa do relativismo moral.

O relativismo moral apregoa que os valores são relativos, ou seja, o que é certo para mim, pode não ser certo para você, o que justo para você, pode não o ser para mim, e não há nada, absolutamente nada, nesse sentido, que a ciência possa dizer quanto a essa questão, e que possa erradicar nossas dúvidas.

Tirando a ciência, que descreve o que algo é, e quando o faz, revela algo que você somente não aceita se não tiver juízo, tal como a lei da gravidade, ou a lei da entropia, sobra a religião, o senso comum, e por aí vai, mas quanto a isso cada um tem a sua, e acredita no que lhe der na telha, portanto a conclusão possível, segundo esses parâmetros, é que a moral seria relativa, e se assim o é, não existiriam valores absolutos aos quais devêssemos reverências definitivas.

Se não há valores absolutos então não podemos falar em mérito, pois este pressupõe que sejamos capazes de avaliar os outros e reconhecer, neles, qualidades que mereçam respeito, elogio, e, claro, confiança para lhes entregar responsabilidades que não estão ao alcance dos que não foram avaliados com o mesmo reconhecimento.

Se não é possível estabelecer critérios para reconhecer o mérito, então todos estamos no mesmo barco, ninguém pode avaliar quem quer que seja, e, dessa forma, a conclusão óbvia é que desapareceria a civilização como a conhecemos, e é bem possível que então somente sobrassem escombros, ruínas, o caos, enfim.

Voltemos ao ponto-de-partida. É válida a hipótese do relativismo moral, de que todos os valores são relativos?

Se acreditarmos  que os valores estão por aí, no espaço e no tempo, se acreditarmos que o certo, o errado, o bem, o mal, o justo, e o injusto existem por si mesmos, como entidades fora-de-nós, bastando que os encontremos onde estiverem e as colhamos, qual frutas maduras, e os utilizemos, então, sinto dizer, isso não tem o menor fundamento. 

É essa vertente filosófica, derivada de Platão, melhor dizendo, de sua Teoria das Formas e das Ideias, que os relativistas morais criticam e com razão, embora de forma oblíqua e a grande maioria da  vezes sem conhecerem seu fundamento, seus pressupostos teóricos. 

Mas os valores não são entidades, fenômenos físicos aguardando algum iluminado que as descreva e os coloque a serviço da humanidade. Não são objetos da matemática, física, química ou biologia. Não são, em si mesmos, objetos da ciência.

É por isso, e não por outra razão, que Jesus calou quando Pilatos lhe perguntou: "o que é a verdade?". Pilatos lhe fez uma pergunta de natureza ontológica. Provavelmente era um cético, quanto à moral, e somente acreditava no Poder pelo Poder. Se sua pergunta dissesse respeito à fé, Jesus teria lhe respondido: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida", e o seu silêncio não perturbaria tanto os filósofos através do tempo.

Entretanto se compreendermos que os valores são construções do homem ao longo do seu processo civilizatório, são estratagemas adaptativos, estratégias de sobrevivência, então a questão muda completamente de perspectiva. 

E a ciência nos dá razão porque, aqui, vamos estudar não o valor em si mesmo, mas os comportamentos que os criaram, sua finalidade, sua natureza. É o mundo da Sociologia.

É científico conceber que em algum momento da história o Homem, a nossa espécie, teve um "insight" que lhe permitiu dar um passo à frente no processo evolutivo: descobriu a cooperação. Percebeu, ele, que podia até mesmo enfrentar seus predadores naturais, e os vencer, caso cooperassem entre si. Percebeu, ele, trocando em miúdos, que a união faz a força. Naquele momento nasceu o que hoje chamamos de pacto social.

O pacto social, para existir, constrói e impõe direitos e deveres, e, em decorrência, valores, para que o grupo social, a Sociedade, possa avançar. Ele foi um "meme", uma invenção do processo evolutivo. Ou seja, foi uma construção humana, uma elaboração social, claro que sempre dependente de sua circunstância histórica.

Muito embora possamos rastrear a ideia de pacto social até Protágoras de Abdera bastando, para tanto, ler o diálogo platônico homônimo, é de se considerar que sua melhor descrição, de forma alegórica, está em "Leviatã", de Hobbes.

Homo homini lupus, escreveu Thomas Hobbes, o primeiro dos grandes contratualistas, o homem é o lobo do homem, Frase de Plauto, em “Asinaria”, textualmente Lupus est homo homini non homo, que expõe a causa-síntese, a constatação que impele o Homem a optar pelo pacto social: em o assegurando, a sociedade regula o indivíduo, o coletivo se impõe sobre o particular, e fica, assim, assegurada a sobrevivência da espécie.



Caso não aconteça o pacto social, bellum omnium contra omnes, guerra de todos contra todos até a auto-aniquilação no Estado de Natureza, é o que ocorreria se imperasse a liberdade absoluta com a qual nasciam os homens, diz-nos, ainda, Hobbes, no final do Século XVI, início do Século XVII - recuperando a noção de contrato social exposta claramente por Protágoras de Abdera, a se crer em Platão.


Essa noção, de pacto ou contrato social, até onde sabemos, foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias, como podemos ler na “Política”, de Aristóteles (cap. III): De outro modo, a sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização, e na extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições a Lei se torna um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, “uma garantia mútua de direitos”, incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que o Estado deve fazer.

E muito embora um estudioso outsider do legado grego tal qual I. F. Stone defenda que a primeira aparição da teoria do contrato social está na conversa imaginária de Sócrates com as Leis de Atenas relatada no “Críton”, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à hipótese Licofronte estar correta. É o que se depreende da leitura de “Os Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker.

Tudo isso significa que o  conteúdo dos direitos e deveres pode variar no tempo e espaço, mas a noção da "fôrma", do "ambiente" que os contém, não. Ou seja, a ideia de pacto social é onipresente, mas seu conteúdo muda ao sabor das circunstâncias históricas.

É por essa razão que certas condutas anteriores ao tempo atual eram consideradas erradas, e hoje já  não o são, mas a regulação, as normas morais, o ambiente que as contém, não. Sempre existiram normas que regulassem a conduta humana. Repetindo: mudou o conteúdo, mas não mudou a forma.

Ainda: o que é certo e errado pode mudar no tempo e no espaço, mas a compreensão de que deve existir um conjunto de regras que mesmo de forma difusa diga o que é certo e errado, em cada época, isso aí não, por uma razão muito simples, tão bem apontada por Hobbes, qual seja a de que sem ele (o conjunto de regras) a civilização deixa de existir. 

Quando não temos um "norte" moral, tudo vale, e se tudo vale, nada vale.

Então, embora seja relativo o conteúdo da norma moral, a necessidade da existência de normas morais é absoluta,  um fenômeno sociológico, pelo menos no que diz respeito à realidade social conforme conhecemos, e não há como conceber outra.

É preciso que entendamos que a construção do conteúdo da norma moral é sempre resultante do entrechoque de ideias, interesses, crenças, etc., daqueles que integram a Sociedade. Mas ao contrário do que se supõe, o conflito social, a interação social é fundamental para a elaboração da "Constituição" moral á qual nos apegamos para sobrevivermos em Sociedade.

Por fim, o discurso do relativismo moral é sabidamente ilógico. Argumentar contra os valores também é uma postura moral. Não há alternativa à existência dos valores morais. O que há é a possibilidade de aperfeiçoamento desse instrumento social, das normas morais. 

É isso que estamos tentando fazer desde aquele remoto momento no qual o Homem se deu conta de que a cooperação permite sua sobrevivência.

No final das contas, ninguém foge da moral, seja contra ou a seu favor. Quem a critica, duvidando de seu papel social, questionando sua eficácia, quer apenas mudar as regras do jogo para se beneficiar, ou favorecer aquilo que defende.

Nada mais.