sexta-feira, 29 de março de 2019

A PEQUENINA FLOR LILÁS

* Honório de Medeiros

Havia uma única e pequenina flor lilás no nicho de cimento no qual algumas poucas plantas ressecadas resistiam bravamente à secura daquele começo de dezembro.

Bárbara desceu da cadeira onde a tínhamos colocado e enquanto se preparava para explorar os seus arredores, pediu nossa aprovação nos olhando com o silêncio próprio dos seus dois anos e pouco.

Em passos trôpegos se dirigiu para o canteiro. Parou. Fixou sua atenção na pequenina flor solitária e, em seguida, estendeu sua mãozinha gorducha. Não a pegou com a mão inteira como seria próprio em sua idade. Com o polegar e o indicador, cuidadosamente, segurou no talo que sustentava a flor e o puxou decidida.

Arrancou a flor na primeira tentativa. Manteve-a na mão e a contemplou durante algum tempo, provavelmente pensando no que fazer. Virou-se para nossa mesa. Olhou para mim, e, atenta ao meu olhar, veio em minha direção bamboleando e estendendo a flor numa oferta silenciosa, enquanto meu coração se apertava lentamente. 

Essa flor, a pequenina flor lilás, eu, quanto a ela não tive dúvida: em frente ao local onde então trabalhava havia um mercado aberto de camelôs e, dentre eles, um operador de máquina de plastificação de documentos.

Procurei-o e lhe expus minha história e meu projeto: aprisioná-la entre duas páginas de plástico. Ele entendeu – eu poderia jurar que um ligeiro brilho clandestino formado por um misto de lembrança e saudade surgiu no canto dos seus olhos.
A flor foi depositada em cima de uma folha de plástico, recebeu outra por cobertura e a máquina, previamente aquecida, as comprimiu unindo-as para sempre.

Depois, foi só recortar e depositá-la, para que ficasse guardada, qual talismã, na minha carteira de documentos onde jaz, a primeira flor, lilás, que minha filha me deu de presente quando tinha dois anos e pouco de idade.

De lá para hoje, várias vezes me pego pensando acerca daquele momento mágico, o da oferta da flor. Tento reproduzir em detalhes toda a cena, desde o início até o final, quando então suspendi minha filha e a cobri de beijos. 

Os detalhes vão ficando esmaecidos ao longo do tempo e os contornos dos objetos – a mesa, as cadeiras, o terraço, a face de minha esposa, a imagem de Bárbara – vão desaparecendo lentamente, e todo o processo de recordar vai sendo substituído, aos poucos, pelo desejo de compreender algo impossível: o quê se passava na cabecinha dela quando olhou para a flor, resolveu colhê-la e, em seguida, entregá-la a mim? Em que momento decidiu dar esse último passo? Por quê? Como uma criança de dois anos e pouco pode ter em seu ainda pouco povoado universo simbólico, a noção de que a oferta de uma flor é um gesto através do qual se externa um afeto? 

Claro que dirão que estou imaginando coisas. Nada teria havido ali de especial. Seria tudo muito simples e fácil de explicar: trata-se de um gesto surgido de uma associação de ideias. Ela viu alguém fazendo isso e se lembrou de fazer o mesmo. Ora, meu Deus! Essas pessoas não creem. Veem tudo cinza. Acham que um arco-íris é tão-só gotículas de água atravessadas por um raio de sol. Percebem o mundo apenas através da lógica do senso comum.

São os homens-ocos, dos quais falou o poeta T. S. Elliot em Os Homens Ocos

"Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou os pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada".

Por causa dessas mesmas pessoas eu mesmo poderia não acreditar, hoje, em anjos, mas sei que eles existem, existem sim, sou capaz de jurar, basta, para isso, contemplar minha pequenina flor lilás.

segunda-feira, 25 de março de 2019

A SAGA DOS FERNANDES DE QUEIRÓZ DO ALTO OESTE POTIGUAR (II)

* Honório de Medeiros
* Emails para honoriodemedeiros@gmail.com
* Respeitemos o direito autoral. Em conformidade com o artigo 22 dLEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências,pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.



JOSÉ PINTO DE QUEIRÓZ, A OUTRA RAIZ


Vimos no artigo anterior que MATHIAS FERNANDES RIBEIRO pode e deve ser considerado uma das raízes dos Fernandes de Queiróz do Alto Oeste potiguar. A outra raiz foi o Marinheiro[1] JOSÉ PINTO DE QUEIRÓZ, o patriarca da Serrinha dos Pintos, hoje Município, mas que pertenceu a Martins. 

Dele pouco se sabe exceto o que se pode colher, conforme João Bosco Fernandes[2], em seu inventário, datado de 1781 e existente no Cartório do Registro Civil de Portalegre, RN, assinado por sua viúva ANNA MARTINS DE LACERDA, no qual consta seu falecimento em 25 de novembro de 1780. 

ANNA MARTINS DE LACERDA, filha de FRANCISCA DA COSTA PASSOS e VIOLANTE MARTINS DE LACERDA, era irmã de JOANNA MARTINS DE LACERDA, MARIANNA MARTINS DE LACERDA, LUIZA MARTINS DE LACERDA, ANTÔNIO MARTINS DE LACERDA e MATHIAS FERNANDES RIBEIRO. 

MATHIAS FERNANDES RIBEIRO, como sabemos, foi casado com MARIA GOMES DE OLIVEIRA MARTINS (filha primogênita do Capitão Francisco Martins Roriz e Micaela), de quem teve vários filhos, dentre eles, MARIA JOSÉ DO SACRAMENTO, nascida em 1778. JOSÉ PINTO DE QUEIRÓZ e ANNA também tiveram muitos filhos, dentre eles DOMINGOS JORGE DE QUEIRÓZ E SÁ, nascido em 1772. 

Do casamento de DOMINGOS JORGE DE QUEIRÓZ E SÁ com MARIA JOSÉ DO SACRAMENTO surgiram os FERNANDES DE QUEIRÓZ do Alto Oeste do Rio Grande do Norte. 

Antes de continuar, entretanto, é importante traçar o perfil de um irmão de DOMINGOS JORGE DE QUEIRÓZ E SÁ, O Tenente-Coronel AGOSTINHO PINTO DE QUEIRÓZ, depois AGOSTINHO FERNANDES DE QUEIRÓZ. 

AGOSTINHO PINTO DE QUEIRÓZ, depois AGOSTINHO FERNANDES DE QUEIRÓZ nasceu em Martins, no Rio Grande do Norte, em 21 de abril de 1870, e faleceu em 6 de março de 1866 na mesma cidade. Casou-se com FRANCISCA ROMANA DO SACRAMENTO, filha de MATHIAS FERNANDES RIBEIRO. Foi um homem notável, em sua época. Revolucionário em 1817, e encarcerado na Bahia de 1817 a 1822, quando foi anistiado[3]

Em 1832 combateu Pinto Madeira na fronteira com o Ceará. Manoel Onofre Jr[4] nos conta, citando Nestor Lima, que por terem fugido do batalhão por ele comandado “dois soldados, Patrício e Felizardo (...), o comandante mandou prendê-los e sumariamente fuzilá-los por deserção. Foi, por isso, julgado e condenado, mas a condenação prescreveu, porque nunca foi executada, e ele sempre residiu na serra”. 

Logo após o combate, escreveu ao Governador da Província do Rio Grande do Norte pedindo para trocar o sobrenome “Pinto” por “Fernandes”, da família de sua esposa. Em 27 de fevereiro de 1842 passou a ser o primeiro Presidente da Câmara Municipal (Intendente) da Vila de Maioridade (atual Martins). 

Tavares de Lira[5] lembrou que “Quando o saudoso desembargador Vicente de Lemos fazia a remodelação do Arquivo da Secretaria do Governo, encontrou a prova documental desse fato e a entregou a um bisneto daquele revolucionário: 

“Quartel de Portalegre, 7 de maio de 1832. 

Ilmo. e Exmo. Snr. Presid. da Prov. do Rio Grde. do Norte, 

JOAQUIM VIEIRA DA SILVA E SOUZA 

Tenho em mta. consideração o Respeitável ofício de V. Excia., de 7 de maio p.p., e de toudo conteúdo estou certo a dar sua devida execução. 

Deus guarde V. Excia. mO amO. 

L.S. Sempre foi o meu Velaxo de PINTOS, como tenho excomungado o PINTO MADRa., mudei o meu Velaxo deora indeante pa. FERNANDES. 

Tente. Coronel 

AGOSTINHO FERNANDES DE QUEIRÓZ[6].” 

Em 1838, o regente do Império nomeou-o um dos Vice-Presidentes da Província do Rio Grande do Norte. 

Câmara Cascudo[7] relatou que de Agostinho vem uma tradição comovente: “Prisioneiro na cadeia da Baía, Agostinho teve um grande amigo na pessoa de um oficial chamado Childerico. Dispensa de serviços, melhoria na alimentação, livros para ler, notícias de Martins, tudo Childerico arranjava. Indultado, Agostinho Pinto de Queiróz fez a singular promessa de manter na família o nome daquele a quem devia tantos obséquios. Até hoje, há mais de cem anos, a família Fernandes cumpre a imposição emocional de seu antigo chefe. Há sempre vários Childericos, nomes de reis merovíngios, entre os sertanejos norte rio grandenses”.

No próximo artigo começaremos o estudo da descendência de DOMINGOS JORGE DE QUEIRÓZ E SÁ.

[1] Como eram conhecidos os portugueses homens naquele tempo. 

[2] FERNANDES, João Bosco; Memorial de Família: Pesquisa Genealógica; 1ª edição: 1.994; Halley S/A: Gráfica e Editora, Teresina, Piauí. 

[3] Em Natal a revolução se mantivera de 29 de março a 25 de abril de 1817, encerrando-se com o assassinato do comandante André de Albuquerque. 

[4] MARTINS A Cidade e a Serra; 3ª edição; Sebo Vermelho; Natal, Rn. 

[5] História do Rio Grande do Norte.

[6] Conforme “A República”, Natal, Rn, 30 de abril de 1926. 

[7] Citado em O Guerreiro do Yaco, de Calazans Fernandes.

sábado, 23 de março de 2019

DE UMA LONGA E ÁSPERA CAMINHADA

* Honório de Medeiros



Nos anos 90 dediquei-me a estudar Hegel.

Peguei meu exemplar do Princípios da Filosofia do Direito, cuja primeira edição é de 1918, e me lancei na empreitada, mesmo a contragosto, ante a dificuldade de compreender o pensamento do autor, que se expressava em uma linguagem abstrusa, própria de sua época.

Fichte, a quem se atribui ter sido a ponte entre Kant e Hegel, era ainda pior, mas eu acreditava que era uma espécie de dever moral um estudante de Direito e do marxismo conhecer sua obra.

A duros custos cheguei lá. Não pelas dificuldades que o texto, em si, e que são grandes, propunham, e do qual o parágrafo abaixo é um bom exemplo:

"O domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade constitui a sua substância e o seu destino e que o sistema do direito é o império da liberdade realizada, o mundo do espírito produzido como uma segunda natureza a partir de si mesmo".

É que eu não conseguia esquecer, em cada momento da leitura, a opinião que de Hegel tinha Schopenhauer, por quem nutro grande admiração.

Para se ter uma ideia Schopenhauer disse, citando Shakespeare (Cimbelina, ato V, cena 4), em sua Vontade da Natureza, que a filosofia de Hegel era "uma conversa de loucos, vinda da língua e não do cérebro". E em O Mundo Como Vontade e Representação, não deixou por menos:

"Hegel, imposto de cima pelos poderes vigentes, como o Grande Filósofo oficializado, era um charlatão de cérebro estreito, insípido, nauseante, ignorante, que alcançou o pináculo da audácia por garatujar e fornicar as mais malucas e mistificantes tolices. Essas tolices foram barulhentamente proclamadas como uma sabedoria imortal, por seguidores mercenários, e prontamente aceitas como tal por todos os tolos, que assim se juntaram num coro perfeito de admiração, como nunca antes se ouvira."

Tem muito mais de Schopenhauer em relação a Hegel, mas é o suficiente. Além dele, na mesma época há, por exemplo, Kiekergaard, autor de O livro do Juiz e crítico severo de seu historicismo, e citado por Sir Karl Raymund Popper em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos:

"Houve - escreve Kierkegaard - filósofos que tentaram, antes de Hegel ... explicar a história. E a Providência só podia sorrir ao ver tais tentativas. Mas a Providência não se ria às escâncaras, pois havia neles sinceridade e honestidade humanas. Mas Hegel!... Aqui preciso da linguagem de Homero. Como os deuses gargalharam trovejantemente! Esse pequenino e horrendo professor compreendeu simplesmente a necessidade de cada uma e de todas as coisas que existem, e agora executa em seu harmoniozinho toda a peça: 'Escutai, deuses do Olimpo!'"

Karl Popper comenta a citação dizendo que as expressões de Kierkegaard são quase tão fortes quanto as de Schopenhauer, quando afirma, um pouco depois, que o hegelianismo, "esse brilhante espírito de podridão, é a mais repugnante das formas de licenciosidade", "mofo de pompa", e possui um "infame esplendor de corrupção".

Em A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, Popper, lá para as tantas, se pergunta a razão pela qual ainda precisamos nos incomodar com Hegel:

"A resposta é que a influência de Hegel permaneceu como força poderosíssima, apesar do fato de que os cientistas nunca o levaram a sério (...) A influência de Hegel e especialmente a do seu jargão, é ainda muito forte em sua filosofia moral, e social, como nas ciências sociais e políticas (com a única exceção da economia). Especialmente os filósofos da história, da política e da educação, ainda estão sob seu império, em ampla extensão. Em política isso é mais amplamente mostrado de que tanto a ala extrema marxista, assim como o centro conservador e a extrema direita fascista baseiam suas filosofias políticas em Hegel; a ala esquerda substitui a guerra de nações que aparece no esquema historicista de Hegel pela guerra de classes; a extrema direita substitui-a pela guerra de raças; mas ambos o seguem mais ou menos conscientemente (o centro conservador é, em regra, menos consciente do que deve a Hegel)".

Mesmo assim li Hegel. Conclui minha tarefa auto-imposta. Ter continuado a estuda-lo me permitiu, algum tempo depois, procurar entender a ligação entre a dialética de Heráclito de Éfeso, a de Hegel e sua Filosofia da Identidade, e a de Marx.

Fez-me capaz de, certo ou errado, conectar esse entendimento com a Teoria da Evolução, por intermédio da Teoria do Meme, exposta por Sir Richard Dawkins em O Gene Egoísta.

Permitiu-me, por fim, compreender que sem a ciência qualquer teoria acerca de fatos históricos é mera especulação.

Quanto à Filosofia, pura metafísica, delírio da Razão.

quarta-feira, 20 de março de 2019

NÃO É MARTINS UMA ILHA?


Serra do Martins

muitasoutras.blogspot.com 


* Honório de Medeiros                           

Os olhos claros da garçonete não olhavam, ou faziam de conta que não olhavam, os seus admiradores espalhados pelas mesas do restaurante onde trabalhava. 

Também não olhavam para os passantes na calçada da praça em frente, tampouco para nós outros que estávamos em restaurantes vizinhos e separados por um espaço puramente imaginário.

Mas nós sabíamos que ela sabia dos nossos olhares. Havia uma sabedoria ancestral, herdada de Eva, naquela sua reserva dissimulada à nossa admiração. Sabedoria que a Serra burilara com seu isolamento ilhéu. 

Pois não é a Serra uma ilha no vale? Não é Martins com seu frio invernal de Julho, a névoa como um véu ocultando as formas das árvores centenárias nos sobrenaturais caminhos de barro que conduzem para os sítios, uma ilha no coração do Sertão?

Não sabia disso Francisco Martins Roriz quando fincou, no século XVIII, seus pés portugueses à margem da Lagoa dos Ingás e construiu uma Capela exatamente onde sua companheira, Micaela, foi encontrada morta?

Não sabia que ali estava um lugar como não havia igual em todo aquele mar de terra, sol, cinza, pó, pedra e solidão que lhe cercava? 

A garçonete, vai e vem. O que pensará enquanto desliza e atende, alheada de si e da presença de sua beleza, a beleza das mulheres de Martins, a todos nós que subimos a Serra e nos entregamos ao prazer ancestral de comer, beber, amar e conversar, receber a dádiva do frio e das árvores, do céu estrelado onde a escuridão, no Vale, somente se rende às luzes trêmulas de pequeninas casas isoladas? 

Talvez não pense. Talvez aja mecanicamente. Mas, ali, em Martins, não é possível que a realidade seja menor que a arte. Ao contrário. Ali, a arte imita a vida. E seu pensamento, com certeza, não desmerece todo o clima que envolve a cidade.

Há luzes, cores, música, risos, então há romances, amores, paixões que surgem, outras que desmoronam, no interminável e efervescente ciclo da vida.

Em sua cabecinha loura com certeza há a espera ansiosa pelo fim da noite ou começo da madrugada, como queiram. Decerto há alguém que a espera com palavras, carinhos, compromissos; há tudo quanto é humano e os deuses abençoam. Não pode ser de outra forma. 

Talvez ela seja de um sítio vizinho ou mesmo distante. Não quis perguntar. Pode ser que eu conheça algum dos seus moradores. Alguém vivido, que conseguiu sair de Martins e voltou depois de muitos anos sem que a saída afetasse seu coração e sua alma. Alguém que não foi corrompido pelo mundo exterior – por que Martins é uma ilha! -, não esqueçamos. 

Esse homem ou mulher já mal vê o mundo, seus olhos estão ficando velados pelo tempo. Não importa. Com sua idade e sabedoria, o mundo está em sua mente e a sua mente é o mundo.

Ele ou ela, quando foram embora, interpretaram o mundo a partir de Martins; hoje, apenas confirmam, com sua experiência, que em quase tudo estavam certo. “O mundo lá fora”, dizem, quando ao seu redor sentam os que o visitam, “não é nada diferente de nossa Serra. É como uma mulher coberta de joias e vestidos e pintura. E quando se tira tudo isso, o que fica? Mas a nossa Serra não precisa de nada disso para ser bonita"  

Todos estão juntos ali impulsionados por um código imemorial: escutam atenciosamente quem pode lhes explicar o mundo que Deus lhes legou e que às vezes parece tão incompreensível.

Ainda bem que Deus lhes mandou também algumas pessoas que têm o dom de perceber suas mensagens deixadas nas linhas da natureza e explica-las aos outros. Por isso tais reuniões. Para escutar e reforçar os laços de solidariedade que os mantém unidos e protegidos em sua ilha, Martins. 

A garçonete se fora. Quem a terá recebido em seus braços? Faz frio. A praça está repleta de silêncio. Os restos da festa jazem espalhados. Alguns retardatários encaminham-se para suas cobertas. O ar puro e suavemente perfumado da Serra envolve Martins. Às margens da Lagoa dos Ingás a escuridão mal deixa perceber suas águas, mas elas estão ali, muito mais antigas que os passos dos que viviam, no seu entorno, desde a ocupação portuguesa.

Águas misteriosas que vêm não se sabe de onde. Águas que ouviram o grito de dor de Francisco Martins Roriz quando se deparou com o cadáver de Micaela, morta por afogamento, às margens do Ingá.

Águas testemunhas, dizem os antigos, dos passos inquietos dos seus antigos proprietários, os índios, que nas noites enluaradas caminham incansavelmente da Lagoa dos Ingás para a Casa de Pedra, da Casa de Pedra para a Lagoa dos Ingás, e assim será até o final dos tempos.

segunda-feira, 18 de março de 2019

A SAGA DOS FERNANDES DE QUEIRÓZ DO ALTO OESTE POTIGUAR (I)

* Honório de Medeiros
* Emails para honoriodemedeiros@gmail.com
* Respeitemos o direito autoral. Em conformidade com o artigo 22 dLEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências,pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.

MATHIAS FERNANDES RIBEIRO, A RAIZ

Consta[1] que em 7 de janeiro de 1742, sob a justificativa de que era descobridor das terras e morador da Capitania do Rio Grande do Norte, solicitou Francisco Martins Rodrigues, nascido na Ribeira do Jaguaribe, Ceará, em 1702, e morto em Martins, Rio Grande do Norte, em 1786 ou 1796, uma concessão no Sítio Telha, Ribeira do Apodi.

Alegou que possuía e pretendia criar gado cavalar e vacum, além de lavrar. Requereu as terras para si e seus herdeiros, isenção de pagamento de foro e pagamento de pensão, oferecendo-se para pagar somente o dízimo.

A terra pretendida localizava-se na Ribeira do Apodi, e seguia em direção a Serra que se encontrava no Sitio Telha. Tinha como ponto central a Lagoa do Ingá[2] e o olho d’água Tabocas, esse nas confrontações da Lagoa de São João. Na carta não há referência à direção em que a Lagoa São João confrontava com tais terras, dessa forma foi atribuído como ponto cardeal Norte a dita Lagoa. 

A solicitação foi deferida como Data de Sesmaria. É o que se lê no Instituto Histórico Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN - Fundo Sesmarias), Livro IV, n. 303, fls. 87-88. A data da concessão é 1º de março de 1742 e a autoridade que a concedeu o Capitão Mor Francisco Xavier de Miranda Henriques. 

Nos registros da Plataforma observa-se que a Carta apresentou como exigência que o suplicante registrasse a sesmaria que lhe foi concedida. Acredita-se que isso não aconteceu conforme ordenou o Capitão-Mor, pois o documento não possui a indicação do local, nem da data, tampouco do escrivão responsável pelo registro. Sabe-se, entretanto, que a carta de sesmaria foi registrada de alguma forma, visto que a mesma existe no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.

Existe a possibilidade de que seu nome fosse Francisco Martins Rodrigues, não Roriz. Na cópia da Carta de Data e Sesmaria da Telha, pinçada do "Sesmarias do Rio Grande do Norte", publicada por Vingt-Un Rosado, lê-se, claramente, "Francisco Martins Roiz", não Roriz. Saliente-se que no século XVIII, era muito comum usar-se "Roiz" como abreviação de "Rodrigues". "Roiz é tanto quanto tenho verificado nos registos paroquiais, a abreviatura de Rodrigues", lê-se em "http://geneall.net/pt/forum/829/familia-roiz/".

 Ainda: "normalmente estes registos tinham lateralmente o nome próprio seguido de Roiz e quando se lê o registo, verifica-se ser Rodrigues o apelido. No entanto poderá haver famílias que adaptaram esta abreviatura como apelido." Roriz ou Rodrigues, a tradição já consolidou a primeira hipótese, mesmo sem amparo oficial. Temos, pois, que o nome do fundador de Martins é admitido como sendo Francisco Martins Roriz, que se fixou na Serra da Conceição[3] em 1742, como escreveu João Bosco Fernandes no seu Memorial de Família[4]. 

Acerca de Francisco Martins Roriz quase nada se sabe, exceto o que foi exposto acima. É da tradição que tenha se casado com Micaela, que teve morte trágica, por afogamento na Lagoa dos Ingás, decorrente de distúrbios mentais. 

Conta-se que tendo desaparecido de casa, duas semanas após buscas incessantes Francisco Martins Roriz prometeu que onde fosse ela encontrada, no local construiria uma capela consagrada à Virgem do Rosário. Encontraram-na às margens da Lagoa dos Ingás e a promessa foi cumprida originando-se, dessa construção, a futura cidade do Martins. É de se lembrar, também, a lenda que atribui a morte de Micaela aos índios tapuias-janduís que residiam nas cercanias.

Do casamento de Francisco Martins Roriz com Micaela é comprovado que teve uma filha denominada Maria Gomes de Oliveira Martins, que se casou com Mathias Fernandes Ribeiro, de cujo casamento surgiram todos os Fernandes do Alto Oeste Potiguar, bem como outras famílias. 

Maria Gomes de Oliveira Martins, primogênita de Francisco Martins Roriz com Micaela, casou-se com Mathias Fernandes Ribeiro (imagem colhida do livro O Guerreiro do Yaco, de Calazans Fernandes)

Mais precisamente: os Fernandes de Queiróz e Fernandes de Oliveira, radicados em Pau dos Ferros, Martins, Mossoró, Natal, Ceará, Paraíba e alguns estados do Sul; os Moreira Pinto, Moreira da Silveira e Gomes da Silveira, radicados em Tenente Ananias, Sousa, Cajazeiras, Uiraúna, São João do Rio do Peixe e Ceará; os Claudino Fernandes, Fernandes Moreira e Correia de Queiroga, radicados em Luiz Gomes, Tenente Ananias, Sousa, Uiraúna, Cajazeiras, João Pessoa (Paraíba) e Terezina (Piauí); os Vieira da Silva, Vieira Coelho e Fernandes Vieira, radicados em Tenente Ananias, Uiraúna e Sousa (ambas na Paraíba); os Maia, Fernandes Maia, Rosado Maia, Fernandes Lopes e Fernandes Pimenta, radicados em Catolé do Rocha (Paraíba), Mamanguape (Paraíba), João Pessoa (Paraíba), Marcelino Vieira, Pau dos Ferros, Martins, Mossoró, Natal e Ceará.

Mathias Fernandes Ribeiro[5], nascido pela década de 1750, era filho de Francisco da Costa Passos e Violante Martins de Lacerda. Podemos ler, em Memorial de Família, o seguinte: 

"Quem consultar o Livro de Registro de Batizados da Paróquia de Missão Velha, Estado do Ceará, no período de 1748-1764 encontrará, nas folhas 3v. a referência seguinte: "Francisco da Costa Passos - de Goiana, marido de Violante Martins, de idêntica procedência" (ver obra "Povoamento e Povoadores do Cariri Cearense" - de Joaryvar Macedo)". Residentes na antiga freguesia de São João Batista da Vila de Princesa, hoje cidade de Açu-RN, Francisco da Costa Passos e Violante Martins de Lacerda deixaram ali numerosa descendência. A sua importância, para a presente pesquisa, advém do fato de terem sido eles os pais de Anna Martins de Lacerda, Joanna Martins de Lacerda, e de Mathias Fernandes Ribeiro, cernes da árvore genealógica aqui estudada."

Anna Martins de Lacerda casou-se com o "marinheiro" (nome que, à época, se atribuía aos portugueses) José Pinto de Queiróz, da Serrinha, município de Martins-RN. Hoje é o município de Serrinha dos Pintos, no Rio Grande do Norte. No Cartório do Registro Civil de Portalegre-RN, encontra-se o inventário, datado de 1781, assinado pela viúva. O patriarca da Serrinha faleceu em 25 de novembro de 1780 e Anna Martins de Lacerda, em 1805. Do casamento de Anna com José Pinto de Queiróz nasceu Agostinho Fernandes de Queirós, personagem emblemático, cujo esboço biográfico será apresentado na próxima crônica.


Joanna Martins de Lacerda casou-se com o português Manoel Fernandes que, segundo a revista nº 102, volumes XVIII e XIX, dos anos 1920-1921, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), seria procedente da Vila de Faral, região do Douro, norte de Portugal, princípios do século XVIII. Um seu irmão, com ele vindo, Antônio Fernandes, alcunhado Pimenta, originou os Fernandes Pimenta de Caraúbas, Rn, e Mamanguape, Pb. Outro, possivelmente primo, Francisco Fernandes, tomou o rumo do Ceará e originou os Fernandes Távora. Calazans Fernandes, em obra citada, informa que Manuel Fernandes e um filho tornaram-se concessionários, no Governo Jerônymo José de Melo e Castro (Pb), em 1790, das sesmarias 375 e 972, de três léguas de comprimento por uma de largura cada, localizadas respectivamente na Várzea do Mulungu (Rn) e Serra do Coité, extremas da Fazenda Bom Jesus, Seridó paraibano. 

Mathias Fernandes Ribeiro foi um dos homens mais ricos do seu tempo, e pelo casamento foi herdeiro do fundador de Martins. Residia no Sítio Cruz D’Alma, naquela cidade, embora tivesse como sede dos seus negócios a fazenda “Curral Velho”, distante poucos quilômetros da cidade de Pau dos Ferros. Seu inventário concluiu-se em 1.830, ano no qual faleceu, e relaciona como sendo de sua propriedade, além de escravos, ouro, gado e prataria, as propriedades “Cruz D’Alma”, “Curral Velho”, “Saco”, “Santiago”, “Saco Grande”, “Passarinho”, “Passagem de Onça”, “Gurjão”, “Arapuá”, “Coito”, e “Estrela”. O inventário registrou um total de sessenta e um conto de réis como monte-mor. Uma fortuna imensa. 

Registre-se que seu inventário desapareceu misteriosamente. Calazans Fernandes[6] comenta que a última vez a ser visto o inventário de Mathias Fernandes Ribeiro ele estava nas mãos do Major Antônio Fernandes da Silveira Queiróz, o “Major do Exu”, um dos senhores da Serrinha dos Pintos, no ano da morte deste, em 1865. O Major era filho de Domingos Jorge de Queiróz e Sá e neto de José Pinto de Queiróz e Anna Martins de Lacerda.

Em A SAGA DOS FERNANDES DE QUEIRÓZ DO ALTO OESTE POTIGUAR (2), veremos um pouco acerca do emblemático personagem Agostinho Fernandes de Queiróz, filho de Anna e José Pinto de Queiróz. 

[1] Plataforma S.I.L.B. (Sesmarias do Império Luso-Brasileiro) - http://www.silb.cchla.ufrn.br/sesmaria/RN%200504

[2] No coração da Martins de hoje.

[3] Como era conhecida a Serra do Martins na época do pedido da Sesmaria.

[4] FERNANDES, João Bosco; Memorial de Família: Pesquisa Genealógica; 1ª ed.ição: 1.994; Halley S/A: Gráfica e Editora, Teresina, Piauí. 

[5]  FERNANDES, João Bosco; Memorial de Família: Pesquisa Genealógica; 2ª ed. 

[6] FERNANDES, Calazans; O Guerreiro do Yaco; Natal: Fundação José Augusto, 2002.

sexta-feira, 15 de março de 2019

A JUSTIÇA DOS DEUSES

* Honório de Medeiros

Os fenômenos físicos, sua repetição, o padrão idêntico de suas conseqüências uma vez presentes as mesmas causas, quando apreendidos, são expressos através de fórmulas – abstrações – em uma linguagem sofisticada, a matemática.

A certeza da inalterabilidade dos fenômenos físicos originou a consciência da causalidade, pelo mecanismo da associação de idéias: não pode haver chuvas sem nuvens; não pode haver vida, sem morte; ao sol, sucede a lua. E a expectativa de que todos os fenômenos ocorram da mesma forma, tanto na Grécia quanto no Egito, ontem como hoje, pertence ao mesmo gênero.

Esses fenômenos, para os antigos, ocorreriam em virtude da “Justiça” dos deuses, entendida esta como “ordem”, “desígnio”, “determinação”, em um mundo na aurora de sua história.

Surgiram, então, os intérpretes dos deuses, seus intermediários. Assim os mais espertos fizeram uso da confusão entre um fenômeno físico e um fenômeno que é conseqüência da vontade do homem, tal qual a proibição de matar, ou a condenação à morte, e se colocaram como representantes dos deuses na Terra. Ainda hoje há quem creia que os terremotos são punições divinas.

Foi essa a história, por exemplo, da Igreja Católica até dias mais atuais. Não somente a Igreja Católica, claro. Os japoneses, na Segunda Guerra Mundial, matavam-se tentando resistir ao poderio americano, em obediência ao seu imperador, que para eles era um deus.

Hoje esses “deuses” foram substituídos por abstrações, como a “vontade do povo”, “a moral média da Sociedade”, "os ditames do Partido", "os desígnios divinos", "as lições da história", e assim por diante. Permanecem, entretanto, os intérpretes e intermediários, bem como os inocentes-úteis, aptos a serem manipulados. Ou seja, permanecem os lobos e as ovelhas, os predadores e suas vítimas.

Obviamente esse processo acontece ao sabor da vontade das elites dirigentes que o criam, mantém e acentuam.

Impressiona que ainda se creia, ainda hoje, em Direito Natural, ou "garantismo social" quando qualquer conhecedor da história do Homem pode constatar, ao ler as primeiras compilações de leis escritas pela humanidade, que suas existências se devem, única e exclusivamente, à necessidade de impor a ordem dos dirigentes, líderes, chefes.

Isso sem mencionar que, com certeza, na pré-história do Direito, apenas a necessidade de sobrevivência do clã originava a imposição de condutas, nunca algo abstrato quanto qualquer ideia de Justiça.

Se se acreditar – é possível que alguém pense assim – que esse ordenamento jurídico natural estaria à espera da maturidade da humanidade para ser colocado à sua disposição, bem, também se pode acreditar em Saci Pererê.

A conclusão é simples: as leis devem expressar a vontade da maioria, respeitados os direitos fundamentais da minoria, e as leis devem ser intransigentemente respeitadas por todos, principalmente por quem tem o dever de aplica-la, o juiz.

Um Tribunal cujos integrantes ousem dizer, publicamente, que a lei é aquilo que disserem que ela é, representa a mais odienta face do Estado em sua tentativa de subjugar a Sociedade que o antecede e da qual emana.

sexta-feira, 8 de março de 2019

A QUESTÃO É MORAL



* Honório de Medeiros


Imagine que você precisa da segunda via do documento do seu carro. Dirige-se ao Órgão apropriado. Em lá chegando recebe uma ficha que indica sua vez de ser atendido. Pelo número da ficha você percebe que não adiantou chegar cedo. Seu atendimento, se acontecer, ocorrerá no final da manhã, começo da tarde, e olhe lá.

No dia seguinte, comentando o episódio com um amigo, escuta dele: "mas por que você não pagou um despachante para fazer isso?" "Ele resolveria tudo na mesma hora e lhe entregaria a segunda via em casa." "Você não teria incômodo algum."

O despachante é aquela figura nebulosa que abre todas as portas, em qualquer momento, das repartições públicas, providenciando soluções para quem não quer se submeter a filas e tem dinheiro suficiente para contratá-lo.

A questão é a seguinte: e quanto aos que não têm dinheiro para contratar um despachante? E quanto aos que acordaram cedo, pegaram a fila, esperaram, mas são ultrapassados, às vezes sem saber, pelas artes e ofícios de quem abre, na hora que quer, todas as portas?

Como se percebe facilmente, trata-se de uma questão cujo cerne é constituído por moral e dinheiro.

É esse o tema do livro O Que O Dinheiro Não Compra, de Michel J. Sandel, professor em Harvard, professor-visitante na Sorbonne.

Sandel ficou midiático desde que ministrou um curso denominado "Justice", no qual interagia com seus alunos lhes propondo questões de natureza moral. Apareceu na internet e ganhou o mundo. Em 2010 a edição chinesa do "Newsweek" o considerou a personalidade estrangeira mais influente no País.

Sandel elenca, no livro, muitos exemplos de "coisas" que hoje estão à venda, graças à onipresença e influência do mercado. Trocando em miúdos: graças ao afã do lucro.

Alguns até mesmo cômicos, se não fossem trágicos: "upgrade" em cela do sistema carcerário; barriga de aluguel; direito de abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção; direito de consultar imediatamente um médico a qualquer hora do dia ou da noite...

Nos EUA, segundo Sandel, é florescente o negócio de comprar apólices de seguro de pessoas idosas ou doentes, pagar suas mensalidades enquanto está viva, e receber a indenização quando ela morrer. Ou seja: quanto mais cedo o segurado morre, mais rápido o comprador ganha.

O professor considera que "hoje, a lógica da compra e venda não se aplica mais apenas a bens materiais: governa crescentemente a vida como um todo." E não aceita a teoria dos que atribuem à ganância essa falha moral, pois, no seu entender, o que está por trás é algo maior, qual seja à "extensão do mercado, dos valores do mercado, à esferas da vida com as quais nada têm a ver."

Eu compreendo esse salto que o professor dá desde a ganância até o mercado. Mas não concordo. Para o professor, o mercado deixa o Homem ganancioso; eu, pelo meu lado, penso que foi a ganância que criou o mercado.

O Homem é esse misto de egoísmo e altruísmo.

Se lá na aurora da história do Homem o primeiro ganancioso tivesse morrido bebê, seu "gene" não teria sobrevivido. Ou será que era para ser assim mesmo, caso contrário não existiria a nossa espécie?

Antes que imputem a mim uma percepção simplista da questão, saliento logo que ela é mais profunda: diz respeito a uma discussão de natureza ontológica.

Em última instância, no que concerne ao surgimento da ganância, do egoísmo, está o Homem ou a Sociedade? Melhor dizendo: a Sociedade é egoísta porque o Homem o é, ou o Homem o é porque a Sociedade é egoísta?

Aceita a premissa de que a Sociedade é gananciosa porque o Homem o é, cabe então perguntar: por que o Homem é egoísta?

Essa questão, a verdadeira questão, não é enfrentada como deveria ser, hoje em dia, já que virou moda escamotear o óbvio atribuindo ao "sistema", ao "meio", a uma "realidade exterior a nós", "ao mercado", à "luta de classes", aquilo que somos individualmente.

Se a culpa é de algo externo a nós, fica mais fácil, em assim sendo, fugir da nossa responsabilidade individual, moral, e nos auto-excluir da culpa por nossas decisões e atitudes.

Exemplo patente dessa perspectiva vil e equivocada, mas compreensível e eficaz, são os escândalos do Mensalão e Lava-Jato, essas nódoas permanentes e intransferíveis da nossa elite política.

Ao invés do mea culpa, mea maxima por parte dos culpados, nós, os cidadãos inocentes deste País de bandalheiras que sustentamos passivamente ao longo dos anos, lemos e escutamos cretinices tais quais as que pretendem imputar a responsabilidade pelos malfeitos acontecidos ao sistema eleitoral e de financiamento de campanhas aqui existente.

Querem nos fazer crer que quando o irmão de Zé Genoíno foi flagrado escondendo dinheiro enlameado na cueca, em um dos mais grotescos episódios da crônica da corrupção tupiniquim, assim agia porque o sistema eleitoral não presta.

Faz parte da lógica do aparato intelectual que sustenta uma hipótese como essa, a teoria de que o "meio", "a luta de classes", "o sistema" cria o Homem (determinismo social). Juntemos esse aparato com a incapacidade da grande maioria em compreender o que está em jogo, em termos científicos, e a tragédia está anunciada.

Como contestar essas teorias? 

Darwin está aí, basta lê-lo. Aliás, como a imensa maioria dos nossos cientistas sociais é herdeira de uma tradição marxista que eles não compreendem em seus fundamentos, por lhes faltar preparo e leitura, ou então são devedores de uma ultrapassada tradição liberal fundamentalista norte-americana, estão atrasados gerações em relação ao que se discute, em termos científicos, nos centros de pesquisa das grandes universidades do mundo.

Nos centros de pesquisa avançados do mundo estuda-se Darwin, estuda-se ciência.

Não compreendem esses cientistas os fundamentos do marxismo ou da suposta hegemonia do mercado, mas usam seus bordões, suas frases feitas, os raciocínios simplistas,  tudo fora do contexto, em disputas pelo Poder. Usam e são usados. 

Como se não fosse responsabilidade nossa sermos como somos. Como se não fosse responsabilidade nossa os nossos atos. Com tal conduta trazendo para a vala comum  do rés-do-chão inclusive aqueles que, ao longo do processo civilizatório, tornaram-se referências, por ousarem ser pontos de luz no meio dessa escuridão.

Mas o que se há de fazer? Talvez contestar a Baronesa Thatcher: "você se enganou: a ganância, não, o altruísmo, sim, é um bem".

terça-feira, 5 de março de 2019

CHUANG TZU

Tzu (séc. IV a.c.)


* Honório de Medeiros


DIAS DE NEBLINA E SONHOS


"Chuang Tzu sonhou ser uma borboleta. Ao despertar não sabia se era Tzu que havia sonhado que era uma borboleta ou se era uma borboleta e estava sonhando que era Tzu".

sexta-feira, 1 de março de 2019

DIZER NÃO

* Honório de Medeiros


Seu Antônio de Luzia uma vez me disse que os homens são tangidos por aqueles que dizem não.
Ele não me disse assim, essa é uma “transcriação” minha, nem mesmo sei se ele a aprovaria.

Homem de muito poucas palavras, diz apenas o suficiente, quando fala é quase como um corte seco e definitivo de navalha.

Graciliano Ramos aplaudiria entusiasmado sua sisudez verbal.

O certo é que fiquei a pensar: ao longo do tempo parece que as coisas acontecem mesmo como Seu Antônio de Luzia me disse.

Uma longa lista de homens e mulheres notáveis, em certo momento histórico, nadou contra a correnteza do rio. E, de uma forma ou outra, fez a diferença.

Sócrates, Platão, Jesus, Buda, Freud, Marx, Einstein, Darwin... Eu os chamo de "outsiders".

Os outsiders são muito interessantes. De forma alegórica estão presentes em um romance famoso na segunda metade do século passado, "Demian", de Herman Hesse.

Em “Demian”, Hesse nos apresenta a um adolescente que fica fascinado por seu colega de escola principalmente graças a mãe dele, mulher bela e misteriosa, iniciada em uma seita religiosa denominada “Cainismo”.

O que seria esse “Cainismo”? Quando essa questão aparece na convivência entre “Demian”, e seu interlocutor, aquele lhe apresenta, como ponto-de-partida para o conhecimento do Cainismo, uma longa relação de personagens condenados pela história oficial: é o caso de Caim, o irmão de Abel, cujo nome batiza a seita; é o caso de Eva; é o caso de Judas Iscariotes.

Vale ressaltar que o “Cainismo” foi resgatado da total obscuridade, no século XIX, por Lord Byron, e é possível que somente exista, enquanto referência histórica, em obras emboloradas de historiadores praticamente desconhecidos, a grande maioria existente apenas no “Cemitério das Obras Esquecidas”, que fica em Barcelona, segundo Szafón.

A pergunta que “Demian” faz a seu interlocutor durante todo o transcorrer da trama é se haveria Abel sem Caim; o Homem, sem Eva; Jesus, sem Judas.

Evidentemente, a pergunta implícita e fundamental por trás de sua doutrinação, é se haveria Luz sem Trevas; se haveria o Ser, sem o Nada. O que nos remete, cada vez mais longe no tempo, até o Maniqueismo do qual foi seguidor, por um bom tempo, ninguém mais, ninguém menos, que Santo Agostinho.

E que não se livrou de sua doutrinação inicial: que é a "Civitas Dei" senão a contraposição à "Civitas Terrena", Deus versus Demônio? Luz versus Trevas?

Não seria essa percepção dualística da realidade o cerne do Catarismo, professado pelos Perfeitos, que a Inquisição, no Século XIII, varreu da face da França mandando mata-los todos naquela que seria a Primeira Cruzada e que foi liderada por ninguém menos que São Luis?

Voltando ao ponto de partida, e a Seu Antônio de Luzia: ele está certo, penso eu.
Todos esses homens disseram "não", em algum momento da história. E esse "não" fez a diferença.

E cá para nós, somente é livre quem pode dizer não.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

DE LEGALIDADE


* Honório de Medeiros

O povo deve bater-se em defesa da lei, como se bate em defesa das muralhas” Heráclito de Éfeso (sécs. VI-V a.c. – fragmento 44). 
Nestes dias o Supremo Tribunal Federal se debruça sobre a questão da criminalização da homofobia e transfobia.
O primeiro voto, a favor, foi do Decano da instituição, que em sua opinião, por não ter o Congresso legislado sobre o tema, por "evidente inércia e omissão", algo que a Câmara e o Senado negam, existe, portanto, uma lacuna legal e axiológica no ordenamento jurídico brasileiro, e caberia ao STF, por intermédio da analogia, suplementá-lo.
Mello propôs que não seja fixado um prazo para que o Congresso edite uma lei sobre o tema, como pedem as ações para isso intentadas, mas que, enquanto os parlamentares não se manifestam, a homofobia e a transfobia sejam enquadradas na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989).

Entretanto é de sabença geral que os meios de preenchimento de lacunas, no ordenamento jurídico, por ele mesmo devem ser indicados, para evitar a incerteza do Direito e o subjetivismo anárquico judicial.

Fique claro que a questão não é a criminalização ou não. É a forma como está sendo feita.

Ora, a analogia, em matéria penal, é algo estritamente proibido pela Constituição Federal em suas cláusulas pétreas, qual seja o artigo 5º, XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.”
E o que leva o Ministro a crer que mesmo assim o STF pode ir além da própria Constituição Federal?
A crença de que o STF tudo pode e pode tudo. Que compete a eles, ministros, dizer o que seja o melhor para a Sociedade, como se lê do que segue:

Sendo assim e considerando que a atividade de interpretar os enunciados normativos, produzidos pelo legislador, está cometida constitucionalmente ao Poder Judiciário, seu intérprete oficial, podemos afirmar, parafraseando a doutrina, que o conteúdo da norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou pelos juristas ou advogados, e nem mesmo o que foi imaginado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é. Mais especificamente, podemos dizer, como se diz dos enunciados constitucionais (= a Constituição é aquilo que o STF, seu intérprete e guardião, diz que é), que as leis federais são aquilo que o STJ, seu guardião e intérprete constitucional, diz que são.” (Ministro Teori Zavaski; AI nos EREsp 644.736/PE, Corte Especial, julgado em 06/06/2007, DJ 27/08/2007, p. 170).

Esse é o cerne da doutrina do realismo jurídico, sinteticamente expresso na afirmação de Oliver Wendell Holmes, Jr., antigo ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos: “o Direito é o que os tribunais dizem que ele é” (“the law is what the courts say it is”), visceralmente contrário à tradição jurídica nacional e ao que o povo brasileiro, por intermédio de seus constituintes, em 1988, na Assembleia Nacional Constituinte, escolheu para si, e o expressou no Princípio da Legalidade, inciso II, do artigo 5º, enquanto Cláusula Pétrea: "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

Cujo desdobramento, em matéria penal, está no artigo 5º, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Outra cláusula pétrea.

Mais claro é impossível.

O próprio Celso de Mello já se referiu ao princípio da legalidade como um dos princípios mais importantes no Direito Constitucional; o principio capital para a configuração do regime jurídico-administrativo, e que este é a essência do Estado de Direito, pois lhe dá identidade própria.”

Mas como se nada disso significasse coisa alguma, os ministros do STF enveredam pela doutrina do Realismo Jurídico, em sua versão tupiniquim, esgrimida enquanto arma de Poder, para conter o alvoroço investigatório do Senado e Receita Federal e manda um aviso claro ao Congresso e ao Poder Executivo: “mandamos nós; obedece quem tem juízo”.

O que existirá além para além aquelas paredes luxuosas que o Poder Legislativo e Executivo não possam investigar?

Pior: ao fazê-lo, ferem, mortalmente, o princípio da soberania da vontade popular, tão importante que se encontra no artigo no parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal:

"Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição."

É óbvio, posto assim, que se o Congresso, até hoje, não quis regulamentar a questão dos crimes de homofobia e transfobia, isso significa que sua vontade, a vontade do Povo é essa. No tempo certo, em seu tempo, , no tempo dos legisladores, isso será feito.

O STF não pode dizer nem quando, nem o quê, pode e deve ser tratado pelo Legislativo.

As leis, inclusive a do contrato social, que emanam do povo, assim as vê Rousseau: “são atos da vontade geral, exclusivamente”; “é unicamente à lei que todos os homens devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a elas”.

O ideário acima exposto, no qual a lei a todos submete por que decorrente da vontade geral do povo – este, frise-se, surgido graças ao contrato social e detentor da soberania - pode ser encontrado em obras muito recentes, como o “Curso de Direito Constitucional”, primeira edição de 2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes e outros. Às páginas 37, lê-se:

"Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade geral"; (...)

E ponto final.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

CANGAÇO E CORONELISMO NO RIO GRANDE DO NORTE: MEADOS DO SÉCULO XIX AO FIM DA REPÚBLICA VELHA (REVOLUÇÃO DE 30)


* Honório de Medeiros

José Augusto Bezerra de Medeiros

Quem critica o Cangaço hostiliza a História e não entende o que é o Poder. 


O Cangaço lança luz sobre a História e o Poder, em intrincada trama com o Coronelismo e o Fanatismo (Misticismo);

São os seguintes os principais cangaceiros que escreveram parte de sua história no Estado do Rio Grande do Norte: José Brilhante de Alencar Souza (o “Cabé”), nascido em Pombal, na Paraíba, em 1824, e morto em Pão de Açúcar, Alagoas, em 1873; Jesuíno Alves de Mello Calado (o “Jesuíno Brilhante”), nascido em Martins, RN, em 1844, e morto em Belém de Brejo do Cruz, novembro/dezembro de 1879; Macilon Leite de Oliveira (o “Massilon”), nascido em Timbaúba dos Mocós, 1897, e morto em Caxias, Maranhão, em 1928; e Virgolino Ferreira da Silva (o “Lampião”), nascido em 4 de junho de 1898, em Serra Talhada, Pernambuco, e morto em 28 de julho de 1938, em Poço Redondo, Sergipe.

O único norte-rio-grandense era Jesuíno Brilhante, o primeiro dos cinco grandes da história do cangaço: Jesuíno, Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião e Corisco, eis a ordem cronológica. 

Existe a suspeita de que Virgínio Fortunato da Silva (o “Moderno”), viúvo de uma irmã de Lampião, Angélica Ferreira da Silva, era dos Fortunado de Alexandria, no Rio Grande do Norte, mas isso nunca foi comprovado. 

E são os seguintes os fatos na História do Rio Grande do Norte nos quais Coronelismo e Cangaço estão fortemente entrelaçados: a invasão de Martins por Jesuíno em 1876; a invasão de Apodi por Massilon em 1927; a invasão de Mossoró por Lampião e Massilon em 1927. 

Todos essas atividades cangaceiras estão conectadas com o coronelismo. 

Não houve Coronelismo no Sertão nordestino sem entrelaçamento com o Cangaço; não houve Cangaço sem Coronelismo. Acrescente-se a esses ingredientes o Fanatismo (Messianismo) e teremos um ponto-de-partida para a real história da época dos coronéis e cangaceiros.

Sempre tratamos esses fatos pelo COMO aconteceu, de forma folclórica, no sentido negativo do termo, mas precisamos nos indagar o PORQUÊ factual que os originou.

Tanto o coronelismo quanto o cangaço são expressões particulares do momento histórico específico que caracteriza o fim da República Velha no Sertão nordestino, muito embora seu padrão, enquanto disputa pelo Poder, seja recorrente na história das civilizações, sob outras formas, haja vista, por exemplo, o feudalismo europeu e japonês, e sua semelhança com esse objeto de estudo. 

As invasões de Apodi e Mossoró são indissociáveis, e se constituem em epicentro de um processo político que durou aproximadamente dez anos e dizem respeito a disputas políticas entre famílias senhoriais do Sertão paraibano e potiguar, tendo como fio-condutor, protagonista, o cangaceiro Massilon. 



 Rafael Fernandes Gurjão

Em 1924 José Augusto Bezerra de Medeiros, legítimo representante da fina flor da aristocracia rural algodoeira do Rio Grande do Norte, chegou ao poder. Seu intento, segundo cronistas da época, era construir uma oligarquia semelhante a dos Maranhão.


Em 1927 o Rio Grande do Norte, cujas principais regiões eram Natal, o Oeste e o Seridó, pareciam sob seu controle político, excetuando-se o crescimento político e econômico dos Fernandes cujas raízes estavam fincadas na Região que começava em Mossoró, passava por Pau dos Ferros, e terminava em Luis Gomes, fronteira com a Paraíva. 

Em 1928 Zé Augusto elegeu seu sucessor, o sobrinho-afim Juvenal Lamartine.

Mas em 1930 veio a Revolução que culminou com o golpe político que elevou Getúlio Vargas ao Poder. 

E Getúlio entregou o poder, após uma série de interventores, a Mário Câmara, aliado de Café Filho e dos adversários de Zé Augusto no Estado. 

Zé Augusto reagiu. Driblou as pendengas com os Fernandes, afinal faziam parte da mesma base econômico-política, a aristocracia rural algodoeira que dominava o Seridó e o Oeste, e juntos criaram o Partido Popular para lutar contra a candidatura de Mário Câmara em 1934.

E assim, na mais cruenta eleição que jamais houve no Rio Grande do Norte, o Partido Popular saiu vitorioso, e Rafael Fernandes, o líder da família Fernandes, foi eleito Governador do Estado.

Zé Augusto elegeu-se Deputado Federal.

Durante a campanha foram assassinados o Coronel Chico Pinto, em Apodi, e Otávio Lamartine, filho de Juvenal Lamartine. Espancamentos, ameaças, humilhações, depredações, foram incontáveis.

O Coronel Chico Pinto era ligado aos Fernandes; Otávio Lamartine a Zé Augusto.

À sombra de ambos, tramando contra, outros coronéis; à sombra desses coronéis, os cangaceiros...