sábado, 18 de agosto de 2018

A ÁRVORE DO CONHECIMENTO



* Honório de Medeiros

O conhecimento pode ser imaginado como uma árvore cujo tronco repouse no chão ancestral onde o homem pré-histórico caçava, coletava e, graças à primitiva linguagem, bem como à incipiente capacidade cooperativa, se tornou uma espécie apta a sobreviver. Não é uma imagem precisa, tampouco absolutamente correta, mas cumpre seu propósito de ser assimilada.

Os problemas com os quais aqueles nossos antepassados se depararam e as soluções engendradas para ultrapassá-los formaram galhos, ramos, folhas, em ritmo cada vez maior e mais denso, em uma escala inimaginável. Cada folha, como se há de perceber, avança rumo ao infinito desconhecido por um rumo que sugere uma proporcionalidade inversa: quanto mais específico o conhecimento por ela simbolizada, mais ampla e profunda a vastidão a lhe servir de contraponto.

Se focarmos essa imagem em busca de nitidez podemos acompanhar, como parâmetro, o desenvolvimento da Matemática, desde os primitivos números naturais até o cálculo, hoje, de tensores hiperespaciais, essas projeções hipotético/geométricas interdimensionais. Podemos acompanhar, também, a evolução da linguagem como lembrada acima até a Babel dos tempos modernos, constituída de signos bem diferenciados – desde os sinais utilizados pelos surdos-mudos, passando pelo informatiquês e o idioma dos guetos, presídios, e subúrbios, até a lógica apofântica do sub-universo computacional.

Aliás, o mundo da informática é muito exemplificativo dessa teoria da árvore do conhecimento. No início, meados do século XX, um computador ocupava salas; hoje, os “chips” guardam quantidades colossais de informações. Que revolução não há de ser o surgimento do “chip” quântico!

A imagem da árvore do conhecimento é possível graças à Teoria da Evolução de Darwin. É, digamos, um corolário. Podemos perceber que o Conhecimento diferencia-se e se especializa na medida em que avança. Sabemos, hoje, quase tudo acerca de quase nada em cada “nicho” do conhecimento, embora tudo quanto descartado por não ter sobrevivido ao choque entre ideias forme uma contrapartida em negativo da realidade. Contrapartida que agrega: aquilo que descartamos não precisa ser outra vez cogitado.

Essa árvore é finita e limitada (conceitos distintos) no espaço e tempo conhecidos, mas infinita e ilimitada quanto as suas possibilidades de crescimento. O futuro, para onde ela avança, é construção do passado, e como cada estrada amplia a quantidade de lugares onde se há de chegar, cada problema resolvido no processo de aquisição do conhecimento implica na ampliação de universos de saber.

Ou seja, o tempo, cada vez mais, dá razão a Darwin. E não há limite para o Conhecimento.

Funciona dessa forma em termos macros, mas também funciona dessa forma em termos pessoais. Cada avanço nosso implica em ampliar o universo daquilo que não conhecemos. É um paradoxo: quanto mais sabemos, mais há a saber.

É, por fim, o voo do solitário para o infinito: “É como se cada um de nós, estando dentro de um ambiente fechado, uma clausura, criasse uma saída e a utilizasse. Lá, do outro lado da saída, lhe espera um outro ambiente, também fechado, só que maior, bem maior. Sua tarefa, assim, é sempre criar outra saída, sair, entrar em outro ambiente ainda maior, criar outra saída, sempre, em uma escala exponencial...”

Em termos pedagógicos, diria Bachelard: "todo conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão."

terça-feira, 14 de agosto de 2018

DE SER OU NÃO SER ALIENADO

* Honório de Medeiros


"A verdade é filha da discussão, e não da simpatia" (Gaston Bachelard, "A Filosofia do Não").


Ausentar-se de si mesmo e viver a realidade do(s) outro(s), não a realidade das coisas ou dos fatos, posto que as coisas e os fatos são extensões nossas ou dos outros, são projeções de como os percebemos, na justa medida em que no limite último de cada coisa ou fato observado está uma ideia ordenadora, organizadora da realidade, e as ideias governam toda a realidade.

"No princípio era o Verbo" (João, 1). Tal ausência de si denominamos alienação.

Se de mim me ausento não percebo o Outro, apenas nossas sombras a se moverem na parede de uma caverna onde estamos prisioneiros, como na célebre alegoria de Platão em "A República".

Tudo, então, é aparência.

Não por outra razão o "conhece-te a ti mesmo", de Sócrates. E conhecermo-nos a nós mesmo implica em dizer não à aparência, a duvidar daquela nossa sombra na caverna. Somente somos livres quando ousamos dizer não ao que nos aprisiona, nos acorrenta, nos impede de perceber a realidade como de fato ela é.

Ser ou não ser alienado, na verdade, é Conhecer ou não Conhecer, eis a questão, eis o caminho.

Tal qual nos acicata Bachelard: "o conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão".

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

O TEMPO PASSADO E O TEMPO PRESENTE (MISSÃO VELHA)


* Honório de Medeiros

A memória do Coronel Isaías Arruda insiste em vencer o tempo e a apatia geral do nordestino com sua história, e aos poucos o transforma em mito na cidade que tomou pelas armas e onde exerceu seu poder de senhor feudal até que a morte viesse buscá-lo da mesma forma como viveu: violentamente.

Continuei relatando para Antônio Gomes o resultado da viagem ao Cariri.

“Estamos em Missão Velha”, disse-lhe. “Enquanto vagávamos no entorno da pequena praça principal fomos abordados e depois apadrinhados por Esly Almeida Melo, da velha aristocracia rural caririense e sua tradicional atenção sertaneja".

"Seu Esly, aposentado, filhos criados e no mundo, descia ou subia em busca da Matriz – depende do referencial – a pé, limpo, perfumado, barba feita, cabelos bem penteados acomodados na brilhantina, bem vestido, ‘puxar um terço’."

"Simpático, conversador, piadista, tornou-se nosso cicerone, historiador informal e foi o maior responsável pela obtenção, quase milagrosa, através das mãos da professora e escritora Célia Magalhães, de uma fotografia dos anos 20 onde o Coronel Isaías Arruda, ao lado de vários outros, todos de paletó claro, diferencia-se pela altura, a trigueirice e o porte altivo."

"Ali estava aquele que foi, juntamente com Massilon Leite, o responsável pela invasão de Mossoró por Lampião".

"Célia Magalhães é bem jovem, foi Secretária de Educação de Missão Velha e escreveu acerca dos ex-prefeitos da cidade. Ela e seu Esly nos levam até a senhorial residência de Luís Jucá Arraes Maia, primo do ex-governador de Pernambuco, já falecido, Miguel Arraes."

"Luis Maia é considerado o “intelectual” de Missão Velha. Já quase não fala e anda, vítima de uma trombose."

"Mostra-nos sua coleção de selos e moedas antigas avaliada, por baixo, em mais de seiscentos mil reais. Já foi procurado por colecionadores do mundo inteiro". 

"Enquanto ele se comunica precariamente com o Professor Pereira, que nos acompanha desde Cajazeiras, tento invadir com meu olhar curioso os segredos daquela casa mais que centenária, cercada por construções muito antigas – sobrados geminados com janelas avarandadas que se abrem afastando-se cada banda para um lado, e separadas da rua por uma grade de proteção de ferro batido ornamentada com flores-de-lis estilizadas."

"Nada consigo. O sertanejo abre todas as portas de sua casa aos estranhos bem recomendados, mas conservam fechadas, a sete chaves, as portas de sua intimidade."

"Mesmo assim posso compreender até fisicamente a dor da castelã quando me fala que há mais de quarenta anos está desterrada ali, em Missão Velha, longe de Fortaleza, da família, dos filhos que se foram, do bulício da cidade grande, do mar, de tudo quanto ama, pois há o dever de ir, até o fim, no compromisso que assumiu ao pé do altar."

"‘A pior fase’, disse-me ela, ‘foram os três anos que passei enterrada no sítio.’"

"Como não compreender essa sensação que acomete aqueles condenados ao ritmo lento da cidade pequena – cinza vida cinza – que anseiam vivamente pela febril velocidade da cidade grande?"

"O verde do Cariri, um verde que se destaca pelo imenso contraste com o semi-árido dos carrascais, poeira, sol-a-pino, grotões que havíamos deixado um pouco antes..."

"A mansão feudal de Isaías Arruda, lá passamos, na qual há, inclusive, sala-de-armas e passagem subterrânea. A estação de trem, palco de tantos episódios históricos, similar a de Aurora, onde o Coronel Isaías tombou ferido de morte após levar, estranhamente sem reagir, embora estivesse armado, vários tiros desfechados por inimigos políticos seus."

"O prédio da Prefeitura por ele construída. A misteriosa história acontecida na casa onde hoje funciona a Secretaria de Educação. Os escombros de um passado já longínquo, mas presente, ainda recendendo a pólvora, sangue, baraço e cutelo da aristocracia rural sertaneja firmada em um ancestral código de honra. Os ‘cabras’, os jagunços, os cangaceiros. A Igreja legitimadora e terrena, também profana, com seus representantes abençoadores de bastardos e assassinos, semeadores de filhos e ilusões, testemunha engajada da vilania com a qual o povo, deserdado de clima, de poder, de bondade, carrega consigo, como última esperança, o paraíso que lhe foi prometido e do qual não se sabe se realmente lhe vai ser entregue.”

"O tempo passado e o tempo presente, confundidos na imagem que Missão Velha nos deixa na memória, quando lhe damos nosso adeus, e vamos em busca de outros fragmentos da história do Cariri, dos nordestinos sertanejos, dos homens, enfim".

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

LÓGICA INFANTIL

Bárbara

* Honório de Medeiros

Guardei várias histórias de Bárbara, minha filha, quando ela era criança. Uma delas, de quando tinha cinco anos, segue abaixo 

A mãe passa em frente à Escola Doméstica, em Natal, e Bárbara diz:

- Mamãe, me mostre a Escola Doméstica que eu quero ver um gatinho.

- Um gatinho?

- É mamãe, o gato não é um animal doméstico?

- Não é isso, minha filha. Esse doméstico aí não tem nada a ver com bicho. Animal doméstico quer dizer que pode ser criado dentro de casa, como o cachorro e o gato.

- Certo.

- Quando entraram no elevador, em casa, Bárbara se virou e comentou com a mãe:

- Mamãe, então eu sou um animal doméstico!

- Como assim, minha filha?

- É, mamãe. Eu não sou criada em casa? Então eu sou um animal doméstico. Tem gente que é criada na rua...

terça-feira, 31 de julho de 2018

O TEMPO, ESSE DESTRUIDOR DE LEMBRANÇAS

* Honório de Medeiros

Para Seu Chico Honório, onde ele estiver.


O tempo, esse destruidor de lembranças, nem sempre consegue êxito quando é confrontado com os vestígios físicos com os quais se confunde a imagem de alguém muito amado. É isso que concluo enquanto passo em frente à Igreja de São Vicente e dobro à direita, vindo pela Alberto Maranhão, do centro de Mossoró, cumprindo o percurso tantas vezes trilhado em minhas vindas de Natal para visitar Seu Chico Honório e Dona Aldeiza, como são conhecidos meus pais na cidade onde nasci. 

Assim o é porque nada me evoca com tanta firmeza a lembrança do meu pai quanto essa capela, destinada a ser um bastião fundamental na defesa da cidade ante o ataque de Lampião no longínquo ano de 1927, na qual ele, durante tantos anos, exerceu com a lhaneza no trato e a humildade no coração que o caracterizavam, o ofício de Ministro da Eucaristia.

Nossa história, a história de minha família com essa Capela é antiga e densa. Minhas lembranças de menino são permeadas de acontecimentos nos quais a Igreja, seu patamar onde nós, as crianças dos arredores, nos reuníamos, durante o dia ou à noite, para todos os tipos de brincadeiras possíveis e imagináveis em uma cidade cujos delinquentes eram todos conhecidos pessoais do Delegado e da população; seu interior, onde, à luz mortiça das velas, entoávamos as ladainhas cantadas na festa de Santo Antônio e aspergíamos os presentes com o incenso farto derramado dos turíbulos; as festas religiosas, as missas, tudo isso era o ponto central, o começo e o fim, o alfa e o ômega da nossa vida ainda fortemente delineada a partir dos laços invisíveis das relações familiares por ela albergados. 

Meu pai nos acordava cedo, a mim e a minha irmã, aos domingos, para nos aprontarmos e seguirmos para a missa na capela, que ele acolitava, juntamente com outros fiéis. Minha mãe, por sua vez, uma das responsáveis pelo coro, também compunha o grupo de moradores do entorno da Igreja que a faziam funcionar com a regularidade própria da face terrena dessa instituição milenar, a Igreja, sem a qual não é possível entendermos nossa civilização ocidental e cristã.

Durante a semana, noite após noite, reuníamos-nos sob sua inspiração para rezar quando o dia chegava ao fim e o sono nos aguardava, e, então, agradecíamos a Deus por tudo de bom que havíamos conseguido no tempo passado, desde a alimentação farta à saúde em ordem, seguido das intercessões para a obtenção de graças, mesmo que somente a manutenção da rotina feliz em que vivíamos.

Seja durante a semana, seja nos domingos, seja em que dia fosse, ainda hoje, a presença de meu pai, manso, discreto, polido, humilde, prestativo, com sua fé simples, inquebrantável, onipresente, foi e é uma referência moral da qual não me afastei, nem me afasto, e que norteia os exemplos e as conversas com os quais cuidei, e cuido, com as limitações próprias, da educação dos meus filhos. No meu casamento, um casamento feliz em todos os aspectos, o exemplo de sua relação com minha mãe, o respeito mútuo, o carinho permanente, a parceria sempre reiterada quando surgiam os obstáculos que a vida insistia em nos apresentar, estava sempre presente.

Conto para meus filhos, sempre que posso e a ocasião é oportuna, o pouco que sei de meu pai. Falo para eles de sua vida dura, no início; estranha, sob muitos aspectos; de renúncia, sempre, inclusive a uma parte de si, sua arte, o repente, a viola. Conto-lhes acerca de sua jornada espiritual, de sua crença ingênua no começo de sua vida adulta. Depois lhes recordo os anos de entrega à Igreja Católica, aos seus fundamentos, aos seus princípios, a tudo quanto, ao longo dos séculos, a manteve presente na história do Homem.

E quando, ao ir para Mossoró, entro na cidade, desço até o centro, pego a Alberto Maranhão, e passo em frente à Igreja de São Vicente, ao me lembrar dele, e de Dona Aldeiza, parece que os vejo: ele ao lado de Padre Sátiro Dantas, atento, enquanto este oficia; ela, nos primeiros bancos, defronte ao altar, no qual se postava o coro.

Então o passado se confunde com o presente e a Igreja de Deus, a Igreja de São Vicente, tão presente na nossa história pessoal, ajuda-me a vencer o tempo, pois resgata, com sua presença ante meus olhos, minha vida de menino e adolescente, e a imagem sempre tão cara de Seu Chico Honório e Dona Aldeiza em minha memória.

AS MULHERES SERRANAS


As serras

* Honório de Medeiros

Ah, as mulheres da Serra, frescas, em flor, sem nada que as enfeite exceto a simplicidade. Elas vestidas de simplicidade. “Uma carne sadia, abundante e rosada”, como descreve Proust, em “No Caminho de Swann”. Nada artificial, nelas. Não há um jogo sequer nas suas atitudes para com os homens. Ou com as mulheres. Beber, comer, amar, é tudo tão natural! Swann “prefiria infinitamente à beleza de Odette aquela de uma pequena operária fresca e rechonchuda como uma rosa, de quem se enamorara...” Em contraposição eis o universo urbano recheado de mulheres excessivamente enfeitadas, com a mente tomada por negaceios e dissimulações, no afã infindável de seduzir: o óculos de sol, a roupa de grife, o olhar tecnicamente distante, o celular através do qual são armados os lances do jogo. Por quem, no final, Vaumont se apaixona em “As Relações Perigosas”, de Chorderlos de Laclos, senão pela viúva Merteuil, por sua inteireza de sentimentos e ações, distante de qualquer dissimulação, a pureza da mulher que ele julgara tão fácil seduzir e descartar?

sábado, 28 de julho de 2018

CHILDERICO FERNANDES, O "GUERREIRO DO YACO"




 * Honório de Medeiros 

Em dias do ano de 1880 Childerico José Fernandes Queiróz Filho, nascido em Pau dos Ferros, Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o segundo do seu nome, quiçá alavancado pelas histórias e estórias que vinham da Amazônia longínqua, das quais eram protagonistas homens do Sertão da Serra das Almas e arredores, contadas nas feiras e na lide com o gado e a lavoura durante o dia, e à noite, nos alpendres das casas, à luz das lamparinas, de riquezas imensas construídas de um dia para o outro na colheita do látex, ou mesmo pelo desejo de tomar distância de um futuro sem perspectivas para um órfão de pai e mãe cuja herança tinha muitos donos, montou num cavalo e arribou no mundo, no rumo da distante Belém do Pará. 

E assim se passaram quase sessenta anos até que seus ossos cansados pousassem de vez na mítica Casa-Grande da fazenda “João Gomes”, que pertencera a seu pai e ascendentes, adquirida comprando as partes de seus irmãos e herdeiros, famosa por tantas e tantas histórias, dentre outras a dos nove ou onze filhos e filhas concebidos pelo Padre Bernardino José de Queiróz e Sá e criados em seus sótãos, porão, quintais e oitões, uma das quais viria a ser sua madrasta, posto que herdeira única de toda aquela imensidão rural, por ter sido adotada pelo renomado Major Ephiphanio, o único irmão do sátiro de batina. 

Mas seu pouso duraria pouco. Childerico II trouxera consigo, da Amazônia, uma moléstia mortal que o conduziria ao descanso eterno em um lugar jamais antes por ele visitado, o Rio de Janeiro. 

Em 26 de março de 1939 o “Guerreiro do Yaco”, como o denominou Calazans Fernandes, autor de uma trilogia que por intermédio desse singular personagem, conta a história do Sertão do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o Sertão da “Serra das Almas” e arredores, desde sua origem até meados do século XX, finalmente foi acertar suas contas com o Criador, de quem ele, ferrenhamente, ateu convicto, negava a existência. 

Nos quase sessenta anos de vida na Amazônia Childerico II se transformou em uma lenda que sobrevive esmaecida em livros, documentos e relatos de muito poucos. Nada que possa dar a verdadeira dimensão de sua história, pelo que se infere. Somente aqui e ali encontramos o rastro forte dos seus passos e o eco de sua voz autoritária, a traçar contornos pouco nítidos de um homem que viveu muitas vidas em apenas uma existência. 

A história da construção de sua imensa riqueza, nos primeiros anos de saga amazônica, quando comprou um seringal denominado “Oriente”, fronteira com a Bolívia, maior que o Estado do Sergipe, depois de passar onze anos desaparecido na floresta, rio Yaco acima e adentro, onde homem algum, exceto índios ferozes, ousavam viver, bem como sua volta triunfal, conduzindo barcos e mais barcos repletos de látex, para serem vendidos a peso de ouro, nos portos de Manaus, por si só valem um livro. E que livro! 

Assim como valem um livro as batalhas que enfrentou: a luta pelo Acre com Plácido de Castro; a tomada pela força das armas de Sena Madureira, enquanto líder do Movimento Autonomista do Alto Purus; a luta armada por Bragança, da qual foi prefeito várias vezes, e Belém, no Pará, esta com Lauro Sodré; a luta ao lado do Governador Eurico de Freitas Vale, durante a Revolução de 30, quando compareceu para combater com trezentos homens por ele armados e municiados! 

Está lá, no Dicionário das Batalhas Brasileiras[1], de Hernâni Donato: “8.6.1912 – SENA MADUREIRA. AC. Movimento autonomista do Alto Purus. A 7.5[2], em protesto contra o então Prefeito regional e o alegado descaso do Governo Federal, autonomistas declararam instalado o Estado Livre do Acre, embrião do futuro Acreânia. Chefes, os “coronéis” Childerico Fernandes, José de Alencar Matos, Raimundo Freire. Armaram 350 homens para enfrentar forças a serem enviadas contra o novo Estado. A 8.6[3] estas se apresentaram federais e estaduais. E venceram, dispersando os autonomistas, depois de seis horas de combate, dez mortos entre os levantados, incêndios, assassinatos vingativos.” 

No inédito segundo volume – “Chamas do Passado” - da trilogia de Calazans Fernandes, a espinha dorsal, o fio-condutor da história continua sendo Childerico II. 

Sua saga perpassa cada capítulo, enquanto pano-de-fundo, permitindo-nos perceber a dimensão de homens como ele, heroicos, verdadeiros titãs, cuja fôrma está desaparecida. 

Homens que construíam o próprio destino na marra, como se diz no Sertão. Homens de feitos e glória. Homens que levaram “uma vida de conquistador bandeirante, de homem antigo, aventureiro das matas e da indiaria, reconstruindo com obstinação impassível o que a tempestade derrubava. Dessa fibra teimosa se teceram os ombros que empurraram o meridiano para o Oeste”, para citar Cascudo, parente distante pelos Fernandes Pimenta, que lhe escreveu um longo panegírico, ao saber de sua morte. 

No “Guerreiro do Yaco” nos damos conta de como são profundas as relações dos que nasceram no entorno da “Serra das Almas” com os cristãos-novos, os judeus que povoaram nossos sertões desde que por aqui aportou Pedro Álvares Cabral. Mas não somente. Também nos damos conta da presença de personagens significativos da nossa história potiguar a assuntar o ouro da “Serra das Almas”. 

Que dizer das armaduras e armas lá encontradas, no Serrote do “Cabelo, Cabelo-Não-Tem” ao lado de bruacas de couro cru cheias de pepitas de ouro? E quanto aos descendentes dos sobreviventes dos oito naufrágios nas costas do Rio Grande do Norte que subiram os rios Sertão acima, até o Alto-Oeste? 

São muitas histórias – e estórias também, imbrincadas entre si pelo talento de Calazans Fernandes, todas tendo como espinha dorsal a vida de Childerico II, a esperar que a Fundação José Augusto, muito apropriadamente, as resgate do limbo através da fabulosa Coleção Cultura Potiguar, impedindo assim que o pó do tempo sepulte, de vez, o conhecimento, pelos homens e mulheres de hoje, dos feitos e parte da vida dos nossos ancestrais. 

[1] IBRASA – Instituição Brasileira de Difusão Cultural Ltda. / Dos Conflitos com Indígenas aos Choques da Reforma Agrária (1996) / Premio Joaquim Nabuco 1988 (Academia Brasileira de Letras) /2ª edição, 1996.

[2] 7 de maio. 

[3] 8 de junho.

sexta-feira, 27 de julho de 2018

NO QUE SOU FIDALGO

* Honório de Medeiros


Longe de mim o mundo envelhece, mas que importa, meu reino é interior. Não aceito as regras do jogo que corrompe o mundo. No entanto elas, mesmo assim, me fazem, me constroem, dispõem de mim. Sou um seu reflexo, mesmo se e quando busco ignorá-las. 

Mas não aceito. Nisso sou fidalgo.

quarta-feira, 25 de julho de 2018

DIÁRIO DE VIAGEM: PRIMEIRO DIA

* Honório de Medeiros

O avião da TAP até que foi pontual, contrariando nossas expectativas. Chegou na hora em Lisboa, mas ficamos no chão, esperando ordem para atracar, por um longo tempo.

Então começou o drama das filas. A primeira intimida. É um mar de gente tentando ultrapassar a imigração. 

Senti-me, como sempre, qual um rato correndo em um labirinto formado por cordões de isolamento. 

A fila anda, para, anda, para, vamos cruzando uns com os outros, embora separados por raias, nervosos, tangendo uns aos outros e nossa bagagem de mão.

Depois, outra fila: a máquina de raio-x que vasculha o interior da bagagem. Tiramos casaco, celular, ipad, notebook, mochila, sapato, cinturão, relógio. Quase nus, fomos liberados. Finalmente estamos considerados aptos a entrar na Europa!

Agora uma fila para comer. Depois de um voo noturno de sete horas de duração, isso é fundamental. Ainda falta a fila para pegar o voo até Paris e, depois, a longa espera para recolher as malas. Recolhidas as malas, nova fila para pegar o táxi, e ainda uma última, no hotel, para o check-in.

O voo até que foi bom, não fosse o fedor do casal europeu sentado atrás das nossas poltronas. Cheiro de roupas mal lavadas, suor acumulado, ranço.

Conhecemos um casal de cariocas, ele bem mais novo que ela. Interessantes. Essa era a primeira vez que viajavam juntos para fora do Brasil. Levou tempo até que ele, que gosta de viajar, a convencesse a sair de casa e cruzar os mares no rumo do Velho Mundo. Ela, caseira, ele, bate-perna.

Uma das aeromoças portuguesas era tão bonita que me fez lembrar uma Madonna rafaelita:


 Madonna della seggiola,  Raphael Sanzio, 1513 - 1514.

Tomamos o Hotel Albe Saint Michel, na Rue de La Harpe, no epicentro da muvuca, perto da Notre-Dame e da Shakespeare & Co., a lendária livraria da zona sul da cidade de Paris, aberta por Sylvia Beach em 19 de novembro de 1919.

Depois fomos até o Sena render nossas homenagens ao mais belo dos rios depois do Potengi amado, o mesmo Sena do belo poema "A Ponte Mirabeau", de Guillaume Apollinaire:

"Sob esta ponte passa o rio Sena
e o nosso amor
lembrança tão pequena
sempre o prazer chegava após a pena

Chega a noite a
hora soa
vão-se os dias
vivo à toa

Mãos dadas nós fiquemos face a face
enquanto sob
a ponte dos braços passe
de eternas juras tédio que se enlace

Chega a noite a
hora soa
vão-se os dias
vivo à toa

E vai-se o amor como água corre atenta
e vai-se o amor
ai como a vida é tão lenta
e como só a esperança é violenta

Chega a noite a hora
soa
vão-se os dias vivo à
toa

Dias semanas passam à dezena
nem tempo volta
nem nosso amor nossa pena
sob esta ponte passa o rio Sena

Chega a noite a hora
soa
vão-se os dias vivo à
toa".

Terminamos a noite, muito cansados, jantando no Il Gigolo, na pequena Rue de La Huchette, com apenas dois quarteirões fechados para pedestres, meio kitsche, no centro de Parisonde sempre encontramos de tudo, do jazz à música tradicional italiana.

Nela fica o famoso Clube de jazz  "Le Caveau de la Huchette". E um teatro, o "Théâtre de la Huchette", inaugurado logo após a segunda guerra mundial e que desde então oferece o mesmo programa: todas as noite podemos ver duas peças de Ionesco: "La Cantatrice Chauve" e "La Leçon". Casa cheia, sempre.


A cor das águas do Sena. Nada há igual. Talvez a do Potengi.

domingo, 22 de julho de 2018

A QUESTÃO É MORAL



* Honório de Medeiros
E-mails para honoriodemedeiros@gmail.com


Imagine que você precise de uma segunda via do documento do seu carro.

E dirige-se ao Órgão apropriado para tirá-lo.

Em lá chegando recebe uma ficha que indica sua vez de ser atendido.

Pelo número da ficha você percebe que não adiantou chegar cedo.

Seu atendimento, se acontecer, ocorrerá no final da manhã, começo da tarde, e olhe lá.

No dia seguinte, comentando o episódio com um amigo, escuta dele: "mas por que você não pagou um despachante para fazer isso?" "Ele resolveria tudo na mesma hora e lhe entregaria a segunda via em casa." "Você não teria incômodo algum".

O despachante é aquela figura nebulosa que abre todas as portas, em qualquer momento, das repartições públicas, providenciando, nelas, soluções para quem não quer se submeter a filas e tem dinheiro suficiente para contratá-lo.

A questão é a seguinte: e quanto aos que não têm dinheiro para contratar um despachante?

E quanto aos que acordaram cedo, pegaram a fila, esperaram, mas são ultrapassados, às vezes sem saber, pelas artes e ofícios de quem abre, na hora que deseja, todas as portas?

Como se percebe facilmente trata-se de uma questão cujo cerne é constituído por moral e dinheiro.

Moral, aqui, para além de como deve agir o Estado que, conforme a Constituição Federal deve, por intermédio de seus servidores, agir com absoluto respeito à igualdade entre os cidadãos.

É esse o tema do livro de Michel J. Sandel, "O Que O Dinheiro Não Compra", professor em Harvard, professor-visitante na Sorbonne.

Sandel ficou midiático desde que seu curso "Justice", no qual interagia com seus alunos lhes propondo questões de natureza moral, apareceu na internet e ganhou o mundo.

Em 2010 a edição chinesa do "Newsweek" o considerou a personalidade estrangeira mais influente no País.

Sandel elenca muitos exemplos de "coisas" que hoje estão à venda, graças à onipresença e influência do mercado. Trocando em miúdos: graças ao afã do lucro. 

Alguns até mesmo cômicos, se não fossem trágicos: "upgrade" em cela do sistema carcerário; barriga de aluguel; direito de abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção; direito de consultar imediatamente um médico a qualquer hora do dia ou da noite...

Nos EUA, segundo Sandel, é florescente o negócio de comprar apólices de seguro de pessoas idosas ou doentes, pagar as mensalidades enquanto ela está viva, e receber a indenização enquanto morrer.

Ou seja: quanto mais cedo o segurado morrer, mais o comprador ganha.

O professor considera que "hoje, a lógica da compra e venda não se aplica mais apenas a bens materiais: governa crescentemente a vida como um todo".

E não aceita a teoria dos que atribuem à ganância essa falha moral, pois, no seu entender, o que está por trás é algo maior, qual seja a "extensão do mercado, dos valores do mercado, às esferas da vida com as quais nada têm a ver."

Eu compreendo esse salto que o professor dá desde a ganância até o mercado.

Mas não concordo.

Para o professor, o mercado deixa o Homem ganancioso; eu, pelo meu lado, penso que foi a ganância que criou o mercado.

Se lá na aurora da história do Homem o primeiro ganancioso tivesse sido silenciado, seu "gen" não teria sobrevivido.

Ou será que era para ser assim mesmo, caso contrário não existiria a nossa espécie?

Antes que imputem a mim uma percepção simplista da questão, saliento logo que ela é mais profunda: diz respeito a uma discussão de natureza ontológica acerca da realidade social: em última instância, no que concerne a sua instauração (faz com que ela surja), está o Homem ou a Sociedade?

Por outra: a Sociedade é gananciosa porque o Homem o é, ou o Homem o é porque a Sociedade é gananciosa?

Aceita a premissa de que a Sociedade é gananciosa porque o Homem o é, cabe então perguntar: por que o Homem é ganancioso?

Essa questão, a verdadeira questão, não é enfrentada como deveria ser, hoje em dia, por que virou moda escamotear o óbvio atribuindo ao "sistema", ao "meio", a uma "realidade exterior a nós", aquilo que somos individualmente.

Fica mais fácil, em assim sendo, fugir da nossa responsabilidade individual, da moral, do caráter, e nos excluir da culpa por nossas decisões e atitudes.

Exemplo patente dessa perspectiva vil e equivocada, mas compreensível e eficaz, é o escândalo do Mensalão, essa nódoa permanente e intransferível na nossa elite política.

Ao invés do mea culpa, mea maxima culpa ao qual temos direito nós outros, os cidadãos inocentes deste País de bandalheiras ao qual sustentamos passivamente ao longo dos anos, bem como à escumalha dirigente e sua soturna vocação para a ladroagem, lemos e escutamos cretinices tais quais as que pretendem imputar a responsabilidade pelos malfeitos acontecidos ao sistema eleitoral e de financiamento de campanhas eleitorais.

Querem nos fazer crer que quando o irmão de Zé Genoíno foi flagrado escondendo dinheiro enlameado na cueca, em um dos mais grotescos episódios recentes da crônica da corrupção tupiniquim, assim agia porque o sistema não presta.

Faz parte da própria lógica do aparato intelectual que sustenta uma teoria como essa, a de que o meio cria o Homem - o determinismo social -, a falta de capacidade técnica para compreender aquilo que está em jogo em termos científicos, embora não lhe falte meios que a protejam da luz crua da verdade.

Os defensores de teorias como essas pululam nas redes sociais.

Mas Darwin está aí, basta lê-lo.

Aliás, como a grande, a imensa maioria dos nossos cientistas sociais é herdeira de uma tradição marxista que eles não compreendem em seus fundamentos por lhes faltar preparo e leitura, ou então são devedores de um funcionalismo anêmico de tradição norte-americana para o qual a realidade social é um carro que funciona sem a estrada e quem as produz (caricatura do positivismo), estão atrasados gerações em relação ao que se discute, em termos científicos, nos centros de pesquisa das grandes universidades do mundo.

Não compreendem, mas usam.

É mais fácil botar a culpa no Sistema. Como se fosse responsabilidade apenas do meio o fato de sermos como somos, nivelando todos por baixo, inclusive aqueles que, ao longo da história, tornaram-se as nossas referências quando, em alguns momentos, fizeram avançar o processo civilizatório.

Mas que se há de fazer?

Talvez responder à Baronesa Thatcher: "não, você se enganou, a ganância não é um bem; o altruísmo, sim, é um bem". 
Arte: ip.usp.br

sábado, 14 de julho de 2018

DE SABER E DESDENHAR OU PERCEBER QUE NÃO VALE A PENA

kierkegaard


* Honório de Medeiros


“Na cidade de H... viveu há alguns anos um jovem estudante chamado Johannes Climacus, que não desejava, de modo algum, fazer-se notar no mundo, dado que, pelo contrário, sua única felicidade era viver retirado e em silêncio”.

Assim começa “Johannes Climacus”, ou “É preciso duvidar de tudo”, delicioso texto do escritor – meio esquecido – Soren Kierkegaard, nascido em 1813, e morto quarenta e dois anos depois, em 1855, um típico pensador excêntrico do século XIX.

O pequeno livro que tenho em mãos é da Martins Fontes, Coleção “Breves Encontros”, que vem publicando opúsculos de autores variados, como Schopenhauer, Cícero, Sêneca, Schelle, dentre outros menos conhecidos, como o Abade Dinouart e Tullia D’Aragona.

O prefácio e notas, cuidadoso no que diz respeito ao levantamento da história da produção do texto e a um leve perfil do autor, está assinado por Jacques Lafarge – me é desconhecido – e a tradução por Sílvia Saviano Sampaio professora da PUC/SP, doutora em filosofia pela USP com a tese “A subjetividade existencial em Kierkegaard”, e membro da AMPOF – Associação Nacional de Pós-graduandos em Filosofia.

“É preciso duvidar de tudo” é dividido em três partes: "Introdução", "Pars Prima" e "Pars Secunda". A parte primeira contém três capítulos e o primeiro é uma afirmação: “A filosofia moderna começa pela dúvida”. A segunda parte, contendo somente um capítulo, Kierkegaard lhe nomina interrogando: “O que é duvidar?”

A mim, particularmente, interessou a seguinte proposição: “a filosofia começa pela dúvida”, que é o Capítulo II, da "Pars Prima". A conclusão de Kierkegaard, falando por intermédio de Climacus, é de que essa proposição se situava fora da filosofia e a ela era uma preparação. Perfeito.

No próprio texto Kierkegaard alude ao fato de os gregos ensinarem, aludindo a Platão, no "Teeteto", que a filosofia começa com o espanto. Eu traduziria espanto por perplexidade, mas talvez haja diferenças sutis entre os dois termos que não valham a pena serem esmiuçadas.

Muito mais recentemente Karl Popper propôs que o conhecimento novo – não apenas a filosofia – começasse por problemas. Esses problemas surgiriam a partir do conhecimento antigo, ou seja, da expectativa de que regularidades, padrões, se mantivessem, inclusive em relação a nós mesmos. Ao nos depararmos com algo que o nosso conhecimento antigo não explica, há uma fragmentação nas nossas expectativas e surge, então, o problema a ser solucionado. Elaboramos uma nova teoria que explique esse "algo" e, assim, surge o conhecimento novo.

Bachelard diz tudo isso de forma profunda e elegante, até mesmo poética: "o conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão".

Observe-se que tal teoria pressupõe a existência do conhecimento inato adquirido geneticamente, no que é referendada pela teoria da seleção natural de Darwin. Pressupõe, ainda, dando-se razão a Kant, que o Conhecimento, em última instância, antecede a Realidade.

Em certo sentido estão certos, ouso dizer, não somente os gregos, como Kiekergaard, Bachelard e Popper. Resta saber se, no início, há o espanto com a dúvida, ou a dúvida com o espanto.

Cabe também observar que Johannes Climacus é um típico caso de personagem acometido da Síndrome de Bartleby, algo que, com certeza, interessaria bastante à Enrique Vila-Matas, referência contemporânea no romance-ensaio.

Vila-Matas, em seu inigualável "Bartleby e Companhia", observou que Roberto Colasso, referindo-se a Robert Walser, o autor de "Jakob von Guntem", genial escritor atraído pelo nada, e ao próprio Bartleby, o personagem símbolo dessa estranha pulsão, criação de Herman Melville, chama a atenção para os "seres que imitam a aparência do homem discreto e comum" no qual "habita, no entanto, uma inquieta tendência à negação do mundo."

lembro, então, de meu pai e seus silêncios, de sua deliberada omissão em falar acerca do passado, o instintivo jogo retórico no qual se escudava para evitar qualquer manifestação que implicasse em juízos de valor, a disponibilidade convidativa para escutar quem lhe procurava, ao mesmo tempo em que levava o interlocutor a expor a própria alma.

Não inquieta, mas profundamente quieta era sua negação ao mundo, sob o manto da discrição e das palavras comuns, triviais, incolores de tão banais.

Mas hoje percebo: em certos e raros instantes, uma sóbria colocação de sua parte estabelecia um silêncio que era um golpe profundo na ordem das coisas. Feito isso, se recolhia, e voltava à aparente placidez de sempre.

E eu, e nós, que sempre o achávamos tão comum. Como poderia, ele que sempre foi um sobrevivente?

Ou sabia muito e desdenhava, ou sabia muito e percebia que não valia a pena.

sábado, 7 de julho de 2018

TOFFOLI TALVEZ SEJA ATEU




* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com

“Antes de mim nada era existente
         Além do eterno e eu eterno sou.
         Deixe aqui toda a esperança e entre.”
         Inferno, III, 1-9
         Dante Alighieri

Quando Dante, conduzido por Virgílio, como se lê em “A Divina Comédia”, chegou à porta do Inferno, e leu a advertência acima nele escrita, se encheu de medo. Não era para menos.

No poema o inferno é descrito como tendo nove círculos de sofrimento localizados dentro da Terra. O oitavo círculo, o “Malebolge” (fraude), é todo em pedra e da cor do ferro, assim como a muralha que o cerca. Aqui estão os fraudulentos. Este círculo está dividido em dez fossos (ou Bolgias), semelhantes aos fossos que defendem certos castelos, e os fossos estão ligados entre si por pontes.

A "Sexta Bolgia" contém os hipócritas vestidos com roupas brilhantes, atraentes, porém pesadas como o chumbo. Este é o peso que não sentiram na consciência ao fazerem maldades. No inferno, sentem o peso de seu falso brilho. Nele esta Caiphás, o sacerdote que condenou Jesus, crucificado no chão e sendo pisoteado pelos outros condenados, sofrendo as mesmas dores que Cristo sofreu.

A esses hipócritas Jesus destinou uma das suas mais belas pregações (Mateus, 23, 1-39):

 (...)
  
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, que, por fora, se mostram belos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia!

 (...)

"Quem a si mesmo se exaltar será humilhado; e quem a si mesmo se humilhar será exaltado.

Pois bem, o jornalista Ruy Fabiano, nestes dias, escreveu um artigo cujo título é “STF: sem juízes e sem juízo”. Transcrevo alguns trechos:
                           
                            “No dia 3, o ministro Dias Toffoli negou habeas corpus a Evanildo José Fernandes de Souza, morador de rua que furtou e depois devolveu à loja uma bermuda de R$ 10.

                            A Defensoria Pública da União recorreu à tese da irrelevância do furto e ao fato de o morador ter devolvido a mercadoria. Toffoli foi implacável: tratava-se de reincidência – e ponto.

                            Evanildo cumprirá pena de 1 ano e sete meses.

                             Já José Dirceu, reincidente dos reincidentes – condenado no Mensalão e duas vezes no Petrolão por desvios multimilionários –, foi posto em liberdade pelo mesmo Toffoli, sem que a defesa do condenado o pedisse.

                            Não há irrelevância, nem devolução do roubo. E não é só: um dia antes de condenar o morador de rua, Toffoli, usurpando as prerrogativas do juiz da causa, Sérgio Moro, mandou tirar a tornozeleira eletrônica de José Dirceu. Nada de medida cautelar.

                            Trata-se agora de um homem livre, embora condenado duas vezes, em segundo grau, e já cumprindo pena. Pode agora, se quiser, comparecer à 24ª reunião do Foro de São Paulo, em Havana, no próximo dia 19. Não se sabe se irá, mas não será o STF a barrá-lo.

                            Toffoli integra a 2ª Turma do STF, onde, ao lado de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, tem sido sistemático na defesa e libertação dos réus políticos da Lava Jato. Em circunstâncias normais (algo que inexiste há muito tempo), nem poderia julgar José Dirceu, a quem deve não apenas o cargo, mas a própria carreira.

                            Foi seu chefe de gabinete, advogado e assessor. A ele, deve a nomeação ao cargo de Advogado Geral da União, de onde, ainda por meio dele, foi guindado à mais alta Corte de Justiça do país – ele que fora reprovado em dois concursos para juiz de carreira.

                            (...)
                           
                            Não se trata apenas de juízes: está faltando juízo ao STF.”

Talvez Toffoli seja ateu.