sábado, 18 de março de 2017

OS BÁRBAROS NÃO CHEGAM; CHEGARAM.

CARTAS A ANTÔNIO GOMES (1)

Caro Antônio,

Faz tempo que não nos vemos, desde antes de 2010, quando lhe conheci em Cajazeiras durante aquelas minhas andanças pelo Sertão com o escritor Franklin Jorge, no rastro de Massilon.

A escritora Luitgarde Oliveira Cavalcante Barros, autora de "Juazeiro do Padre Cícero (A TERRA DA MÃE DE DEUS)" e o escritor Franklin Jorge do Nascimento Roque, autor de "Ficções, Fricções, Africções", Prêmio Luis da Câmara Cascudo, em mesa do café da manhã do Cariri Cangaço, em Crato, Ceará, setembro de 2013.

A história desse encontro, como você sabe, está em "Massilon", e no meu blog http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2016/03/de-um-encontro-casual-e-um-evento-comum.html

"Massilon", o livro, vai para sete anos de publicação. Muito tempo. "O tempo passa, o tempo voa", como dizia aquela antiga propaganda do Bamerindus, banco que não mais existe. Passou muito rápido. Poeira que o vento que adivinha chuva tange nos oitões do Sertão.

Este ano estamos completando oitenta anos da invasão de Mossoró por Lampião. Oitenta! E continuam dizendo que Lampião invadiu Mossoró única e exclusivamente para arrancar dinheiro da cidade. Essa versão arraigou-se de tal forma na história que parece impossível mudá-la.

Penso que perdi meu tempo escrevendo "Massilon", noves fora o prazer que me deu. Sete anos de pesquisa!

Tantas perguntas a serem respondidas apresentadas no livro e nada. Ninguém se apresentou para o debate.

O papel dos coronéis de antanho, a conexão da invasão de Apodi com a de Mossoró, a enigmática participação de Massilon nos dois episódios, os mistérios do acontecimento, tal qual a morte de Jararaca, que antes de ser morto já dispunha de um atestado de óbito pronto e bem acabado, ou o cerco exclusivo à residência do Prefeito Rodolpho Fernandes nas cercanias da cidade, enquanto o centro, onde estava o comércio e o dinheiro, jazia abandonado pelos cangaceiros...

Deixa pra lá.

Por falar em cangaço, no lançamento do meu "Histórias de Cangaceiros e Coronéis" surpreendi Alex Nascimento lendo as orelhas do livro, feitas por você.

Quando me viu, perguntou quem era. Respondi: "quase sessentão, de Cajazeiras - de onde saiu na infância, mora onde lhe dá na telha, tem um pequeno apartamento no Rio e outro menor ainda em Paris, é solteiro, e mais eu não sei porque o homem é mais fechado que freira reclusa".

Ele deve ter pensado: "isso é mesmo que nada e mais alguma coisa". Ou seja: conversa fiada. Alex é um dos grande escritores da terrinha, um dos melhores que já tivemos, dono de um estilo muito peculiar.

Diz pela noite - tem hábitos noturnos, que não mais vai escrever nada. Dedica-se, hoje, ao jazz, a Mariana no que faz muito bem, a aprender latim e a bater papo com Florentino Vereda, além de outras coisinhas mais. Grande figura. Um outsider.

O escritor Alex Nascimento, autor de "Um Beijo e Tchau", e a escritora Bárbara de Medeiros, autora de "Sindicato das Bailarinas Circenses".

Andei publicando uns poemas seus no blog. Vá lá. Estou mandando estas "mal traçadas linhas" para aquele email que você me enviou via "messenger" do "facebook", e que nunca abre. Tomara que lhe alcance.

No mais, e tirando o mundo velho de meu Deus que parece repetir o ciclo da Alta Idade Média, com outra tecnologia - claro, quando os bárbaros pintaram e bordaram e quase destruíram a civilização, por aqui vamos seguindo.

Você conhece o poema de Konstantino Kaváfis, não? Para lhe poupar o tempo de rememorar, aqui vai ele:

À espera dos bárbaros

O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

Até mais, beije o Sena por mim.

Honório.

segunda-feira, 6 de março de 2017

APROPRIARAM-SE DO BRASIL

* Honório de Medeiros

Os depoimentos dos delatores ao Ministro do TSE Herman Benjamin levaram-no, segundo o Estadão (http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,para-relator-odebrecht-se-apropriou-do-poder-publico,70001688031) a elaborar aquela que, no meu modo de entender, é a mais precisa conclusão acerca do que aconteceu e está acontecendo no Brasil: houve e há um pacto informal entre as elites (políticos, procuradores, juízes, integrantes dos tribunais de contas, imprensa, empresários, etc.), excetuando-se as honrosas exceções de sempre para, em absoluto desprezo em relação ao restante da Sociedade, apropriar-se, privatizar, apoderar-se do Estado brasileiro.

A metástase não poupa qualquer instituição. Nenhuma. Em todas elas encontramos o câncer da participação direta ou da omissão nesse processo.

O resultado é aquele que o cidadão comum, indefeso, desinformado, espoliado, sente de forma visceral: saúde que não funciona, segurança inexistente, educação falida, infra-estrutura arruinada. Para ficarmos no mais visível.

E assim, de passo-em-passo, vamos lentamente retrocedendo.

Às vezes não tão lentamente. Às vezes numa velocidade medonha...

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

SOLIDÃO

* Antônio Gomes


Não há diálogo entre o homem e a noite absurda,
entre o homem e a terra.
Há imobilidade aniquilante,
o silêncio escoimando a vida,
percorrendo, uniforme, todos os caminhos.
Há imensidão de céu estrelado;
noite, silêncio, espaço sem rincões, tempo.
O tempo não passa; o tempo é.
Solidão.
A solidão é feita de imobilidade e silêncio.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

CAMINHAREMOS

* Antônio Gomes


"Caminharemos então tu e eu,
companheiros de nossas sombras,
da luz das estrelas, lua, sol,
e nossas pegadas saudarão o tempo 
e a terra, a pedra, o verde ou o asfalto, 
durante toda essa busca incessante.

Caminharemos então tu e eu,
falando da solidão que não sentimos,
dos seus efeitos nos homens e nas coisas,
enquanto a doçura indecifrável do instante
aprisiona a mim e a ti em uma teia 
cujo começo e fim começam e terminam no mesmo ponto.

Caminharemos então tu e eu,
e falaremos dos fragmentos dos discursos de amor,
lido às sombras de nossas sombras,
esses amorosos companheiros,
até que o presente se confunda com o futuro.

Caminharemos então tu e eu,
para falarmos das equações que o vento
(o vento?)
traça nas hastes flexíveis das abstrações,
antes que o efeito que projetam
o Homem, e as Formas, seja interrompido.

Caminharemos então tu e eu,
e eu lhe falarei da solidão de quem pensa,
eu, um solitário de idéias absurdas,
resignado ante a longa estrada que nos resta percorrer,
enquanto a trilha que conhecíamos se esvai no tempo.

Caminharemos então tu e eu,
E você me falará na reforma das ilusões 
que se entoavam em rituais mágicos à luz das estrelas.
Conheceremos a história do Homem,
dos seus santos e das imagens vazias de vida
e prenhes de história.

Toda nossa caminhada nos dirá, quem sabe,
o significado oculto de tudo que percebemos,
o sonho loucos dos deuses alucinados,
a verdade última, a coisa-em-si,
e então, à sombra do futuro, descansaremos."

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

TODO HOMEM É UM INFINITO DE SOLIDÃO

* Antônio Gomes

Há algo que nós sabemos, e que os jovens não sabem.
E o que sabemos está escrito no coração e na pele.
Lembranças de tempos idos, marcas, rugas, cicatrizes.
Odores, sensações, imagens que não podem ser reproduzidas.

O que sabemos morrerá conosco tão logo cada um de nós se vá.
Pouco importam os livros, as imagens, pouco importam os museus.
E assim será amanhã com aqueles que estão hoje na aurora dos dias.
E assim será amanhã com os filhos dos nossos filhos dos nossos filhos.

Pois ao contrário do que se supõe e nos cantam os poetas,
Todo homem é uma ilha, e toda ilha um infinito de solidão.


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

LAMPIÃO NA FAZENDA "VENEZA". MASSILON. CHILDERICO FERNANDES DE SOUZA.

* Honório de Medeiros

Reportagem do jornal “O Nordeste”, feita a partir dos depoimentos de Bronzeado[1], nos dá uma idéia acerca do temperamento de Massilon: "Em Bálsamo[2], juntaram-se mais 4 indivíduos de nome: Vicente Brilhante; outro que este chamava de primo; Vicente de tal e mais um morador de Décio[3]. Este acompanhou o bando até 3 léguas, voltando a exigências de Massilon, que presenciou a aflicção em que ficara a mulher[4] de Décio, que chorava e pedia não violassem as famílias."

Sérgio Dantas relata o que foi a passagem do bando de Lampião pelo povoado de São Sebastião, atual Governador Dix-Sept Rosado, um pouco antes de entrarem em Mossoró: algazarra, surras, depredação, saques, fogo, violações. "Massilon retornava da malsucedida tentativa de tomar a cidade de Apodi[5]. Impressionou-se com a quebradeira. Repreendeu, áspero, o cangaceiro Jararaca e culpou-lhe pela destruição do povoado. Entabulou-se ríspida discussão entre os dois. A contenda, entretanto, foi breve. Lampião interveio enérgico. Evitou maiores desdobramentos do ‘imbróglio doméstico’[6]."

  Mas o maior depoimento que se pode dar acerca do temperamento de Massilon está nas páginas que tratam de sua conduta na Fazenda Veneza, quando da fuga de Mossoró para Limoeiro, escritas por Raul Fernandes[7]. Nelas se expõe o drama pelo qual passou Childerico Fernandes de Souza[8], administrador da propriedade do seu parente Alfredo Fernandes[9], e sua esposa Felisbela (Dna. Bebela) Rodrigues Fernandes. Também estão expostos alguns episódios que dão a natureza do temperamento de Massilon. Em um deles Sabino começa a se vangloriar de que tinham entrando em Mossoró sem dificuldades, tomado o Banco do Brasil, a casa do Prefeito, quando é interrompido por Massilon, que diz: "Nada disso é verdade. Eles não entraram em Mossoró. Receberam balas do céu e da torre da igreja."

Em outro episódio, Raul Fernandes relata que enquanto o almoço era preparado por Dna. Bebela, os cabras aguardavam fora da casa impacientes. "Soada a hora, acorreram à cozinha, em turbulência, atravancando a passagem. Foi preciso Massilon chamá-los à ordem, obrigando-os a formarem fila."

Na hora da sesta, continua o escritor, "alguns cangaceiros bocejavam deitados à sombra de uma árvore, próxima a casa, procurando tirar uma soneca. De súbito são perturbados pelo choro ininterrupto de criança. Era o menino Ney Fernandes, de dois anos. Ralhações não conseguiram moderar o berreiro incontrolável.

Serra D’Umã, mestiço, alto, de compleição franzina, serviçal ordinário, resolveu dar mostras do que era capaz. Em bárbara ostentação, levantou-se, arrastou a lâmina de aço e engrolou:

- Vou calar aquela pestinha[10].

Caminhou, a passos tardos, desengonçado, à casa-grande.

Os companheiros foram incapazes de um gesto, para impedir a consumação do mais covarde e hediondo dos crimes.

Um morador avisou à genitora. Novamente, Massilon, interveio. Desmoralizou o cabra, fazendo-o retroceder.

As ameaças continuavam. Não havia sossego na fazenda. Coqueiro pediu a Bebela que lhe costurasse o bornal e como não foi possível, por falta de linha, arrebentou a máquina de costura.

Outro cabra, de punhal em riste, tomou-lhe a aliança. Massilon a acode. Obriga o perverso a devolver a jóia, após séria altercação. Advertiu-o, voz alta, que não permitiria ameaças, desrespeito e palavras malsoantes naquela casa. Voltou à sala, sentou-se ao lado de Childerico e continuou a falar, contrariado:

- Não sou bandido! Quando chegar ao Ceará, deixarei essa gente. Vou cuidar da minha vida.

Percebia-se seu arrependimento por estar ligado a essa corja malsinada. Fora a alma benfazeja em ‘Veneza’[11]."

Em Tabuleiro de Areia, Ceará, agosto de 1927, nos lembra Lauro de Oliveira Lima, já apartado de Lampião, Massilon e seu bando invadem a casa de Santana Gadelha e tomam todas as suas jóias. Santana pediu a Massilon que mandasse um dos cabras devolver sua aliança de casamento, sendo atendida ("mas só a aliança, disse o cangaceiro")[12].

* Excerto do livro "Massilon", do Autor.




[1] “O CANGAÇO NA IMPRENSA MOSSOROENSE”; PIMENTA, Antônio Filemon Rodrigues; Fundação Vingt-Un Rosado; Coleção Mossoroense; Série “C”; número 1104; Outubro de 1999; p. 70.

[2] Fazenda de Décio Hollanda localizada em Iracema, Ceará, na época pertencente a Pereiro, no mesmo Estado.

[3] Décio Albuquerque, o Décio Hollanda.

[4] Filha de Tylon Gurgel. Sobrinha, portanto, do Cel. Antônio Gurgel, refém de Lampião.

[5] Na verdade retomada. Dias antes ele havia tomado a cidade.

[6] “LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE”; DANTAS, Sérgio Augusto de Souza; Cartgraf – GRÁFICA EDITORA; 2005; Natal; RN; Nota 4.

[7] “A MARCHA DE LAMPIÃO”; FERNANDES, Raul; 2ª. EDIÇÃO; Ed. Universitária – UFRN; 1981; Natal, Rn.

[8] Childerico era filho de Francisca Fernandes de Souza, avó materna da mãe do Autor e irmã do Coronel Adolpho Fernandes.

[9] Filho do Coronel Adolpho Fernandes, então Prefeito de Pau dos Ferros, RN.

[10] Contou-me Francisca Ida Fernandes de Oliveira, tia do Autor, que João Marcelino de Oliveira, irmão de seu esposo José Marcelino de Oliveira, e médico em Mossoró no ano de 1927, bem como responsável pelo atendimento a Jararaca, que este, ao ser por ele indagado se não sentia remorso pelos crimes que cometera, perguntara-lhe o que significava essa palavra.

Ao ser respondido, quedou silencioso por algum tempo e depois respondeu que uma vez jogara uma criança de mais ou menos dois anos para cima e a aparara com um punhal. Desde então, segundo ele, sonhava muito com ela.

Fenelon Almeida em sua obra “JARARACA: O CANGACEIRO QUE VIROU SANTO” conta que Lauro da Escóssia testemunhou a negativa veemente de Jararaca a uma pergunta a esse respeito, de bate-pronto, feita por uma popular.

A verdade é que provavelmente Jararaca contou a história a Dr. João Marcelino de Oliveira que a repassou para a frente e a conseqüência foi a pergunta da popular.

Provavelmente preocupado com a repercussão da história entre as pessoas que estavam em sua frente Jararaca desmentiu, categoricamente, aquilo que contara privadamente a Dr. João Marcelino de Oliveira, a quem devia não lhe ter sido amputado, covardemente, por um soldado da comitiva do Sargento Kelé, um dedo no qual luzia, reluzente, um anel de ouro.

[11] “A MARCHA DE LAMPIÃO”; FERNANDES, Raul; 2ª. EDIÇÃO; Ed. Universitária – UFRN; 1981; Natal, Rn.

[12] “NA RIBEIRA DO RIO DAS ONÇAS (LIMOEIRO DO NORTE); LIMA, Lauro de Oliveira; p. 463; Gráficae Editora Assis Almeida; Fortaleza; Ceará.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

CHILDERICO JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ FILHO



* Honório de Medeiros

Em dias do ano de 1880 Childerico José Fernandes de Queiróz Filho, nascido em 1865, Pau dos Ferros, Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o segundo do seu nome, aos quinze anos de idade, portanto em 1880, quiçá alavancado pelas histórias e estórias que vinham da Amazônia longínqua, das quais eram protagonistas homens do Sertão da Serra das Almas e arredores, contadas nas feiras e na lide com o gado e a lavoura, durante o dia, e à noite, nos alpendres das casas, à luz das lamparinas, de riquezas imensas construídas de um dia para o outro na colheita do látex, ou mesmo pelo desejo de tomar distância de um futuro sem perspectivas para um órfão de pai e mãe cuja herança tinha muitos donos, montou num cavalo e arribou no mundo, no rumo da distante Belém do Pará.

E assim se passaram quase sessenta anos até que seus ossos cansados pousassem de vez na mítica Casa-Grande da fazenda “João Gomes”, que pertencera a seu pai e ascendentes, adquirida comprando as partes de seus irmãos e herdeiros, famosa por tantas e tantas histórias, dentre outras a dos nove ou onze filhos e filhas concebidos pelo Padre Bernardino José de Queiróz e Sá, e criados em seus sótãos, porão, quintais e oitões, uma das quais viria a ser sua madrasta, posto que herdeira única de toda aquela imensidão rural, por ter sido adotada por seu único irmão[1], o renomado Major Ephiphanio.

Mas seu pouso duraria pouco. Childerico II trouxera consigo, da Amazônia, uma moléstia mortal que o conduziria ao descanso eterno em um lugar jamais antes por ele visitado, o Rio de Janeiro. Em 26 de março de 1939 o “Guerreiro do Yaco”, como o denominou Calazans Fernandes, autor de uma trilogia que por intermédio desse singular personagem conta a história do Sertão do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o Sertão da “Serra das Almas” e arredores, desde sua origem até meados do século XX, finalmente foi acertar suas contas com o Criador, a quem ele, ferrenhamente, ateu convicto, negava a existência.

Nos quase sessenta anos de vida na Amazônia Childerico II se transformou em uma lenda que sobrevive esmaecida em livros e documentos. Nada que possa dar a verdadeira dimensão de sua história. Somente aqui e ali encontramos o rastro forte dos seus passos e o eco de sua voz autoritária, a traçar contornos pouco nítidos de um homem que viveu muitas vidas em apenas uma existência.

A história da construção de sua imensa riqueza, nos primeiros anos de saga amazônica, quando comprou um seringal denominado “Oriente”, fronteira com a Bolívia, maior que o Estado do Sergipe, depois de passar onze anos desaparecido na floresta, rio Yaco acima e adentro, onde homem algum, exceto índios ferozes, ousavam viver, bem como sua volta triunfal, conduzindo barcos e mais barcos repletos de látex, para serem vendidos a peso de ouro, nos portos de Manaus, por si só valem um livro. E que livro!

Assim como vale um livro as batalhas que enfrentou: a luta pelo Acre com Plácido de Castro; a tomada pela força das armas de Sena Madureira, enquanto líder do Movimento Autonomista do Alto Purus, e assim por diante. Está lá, no Dicionário das Batalhas Brasileiras[2], de Hernâni Donato: “8.6.1912 – SENA MADUREIRA. AC. Movimento autonomista do Alto Purus. A 7.5[3], em protesto contra o então Prefeito regional e o alegado descaso do Governo Federal, autonomistas declararam instalado o Estado Livre do Acre, embrião do futuro Acreânia. Chefes, os “coronéis” Childerico Fernandes, José de Alencar Matos, Raimundo Freire. Armaram 350 homens para enfrentar forças a serem enviadas contra o novo Estado. A 8.6[4] estas apresentaram-se, federais e estaduais. E venceram, dispersando os autonomistas, depois de seis horas de combate, dez mortos entre os levantados, incêndios, assassinatos vingativos.”

Ou a luta por Bragança, no Pará, da qual foi Prefeito várias vezes. E a luta por Belém, com Lauro Sodré, para depor Enéias Martins. Assim como a luta ao lado do Governador Eurico de Freitas Vale, durante a Revolução de 30, quando compareceu para combater com trezentos homens por ele armados e municiados!

Em – “Chamas do Passado” - segundo volume inédito da trilogia de Calazans Fernandes, a espinha dorsal, o fio-condutor continua sendo Childerico II. Sua história perpassa cada capítulo, enquanto pano-de-fundo, e nos dá a dimensão de homens como ele, heroicos, verdadeiros titãs, cuja fôrma está desaparecida. Homens que construíam o próprio destino na marra, como se diz no Sertão. Homens de feitos e glória. Homens que levaram “uma vida de conquistador bandeirante, de homem antigo, aventureiro das matas e da indiaria, reconstruindo com obstinação impassível o que a tempestade derrubava. Dessa fibra teimosa se teceram os ombros que empurraram o meridiano para o Oeste”, para citar Cascudo, parente distante pelos Fernandes Pimenta, de Caraúbas, que lhe escreveu um longo panegírico, ao saber de sua morte.

Nesse segundo volume nos damos conta de como são profundas as relações dos que nasceram no entorno da “Serra das Almas” com os cristãos-novos, judeus que povoaram nossos sertões desde que por aqui aportou Pedro Álvares Cabral. Mas não somente. Também nos damos conta da presença de personagens significativos da nossa história potiguar a assuntar o ouro da “Serra das Almas”. Que dizer das armaduras e armas lá encontradas, no Serrote do “Cabelo-Não-Tem” ao lado de bruacas de couro cru cheias de pepitas de ouro? E quanto aos descendentes dos sobreviventes dos oito naufrágios nas costas do Rio Grande do Norte que subiram os rios Sertão acima, até o Alto-Oeste?

São muitas histórias – e estórias também, imbrincadas entre si pelo talento de Calazans Fernandes que a Fundação José Augusto, muito apropriadamente, poderia resgatar do limbo na fabulosa Coleção Cultura Potiguar. Por esse trabalho, pela Coleção, para a obra a ser apresentada ao público leitor, viriam todos nossos aplausos.

[1] Do padre.

[2] IBRASA – Instituição Brasileira de Difusão Cultural Ltda. / Dos Conflitos com Indígenas aos Choques da Reforma Agrária (1996) / Premio Joaquim Nabuco 1988 (Academia Brasileira de Letras) /2ª edição, 1996. 

[3] 7 de maio. 

[4] 8 de junho.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

FALTA TUDO E NÃO TEM NADA



* Honório de Medeiros


Minha faxineira é uma heroína.

Nova, ainda, trinta e cinco anos, aparenta bem mais. Casada com um pedreiro, é mãe orgulhosa de uma mocinha de dezoito, que “faz um curso de informática na cidade” após ter concluído o Segundo Grau.

Mora em “Jardim Progresso”, o último bairro da Zona Norte de Natal no sentido de quem vai para São Gonçalo do Amarante ou Extremoz.

Todo manhã ela acorda às quatro e trinta. Prepara o café, deixa pronto o almoço e começa sua luta diária para pegar transportes que lhe deixem nas diferentes casas onde ganha o pão de cada dia.

Lá pelas cinco, seis, a luta é para voltar para casa, essa mais difícil ainda.

No “Jardim Progresso”, cujo nome com certeza foi escolhido por algum burocrata sarcástico, não tem Posto de Saúde. Nem Delegacia. Tampouco Escola de Ensino Médio. Menos ainda creches.

“Creche? Tem no Vale Dourado. A semana passada um bocado de mulheres daqui foi dormir nas calçadas da creche para segurar uma vaga no atendimento do dia seguinte. Muitas voltaram sem conseguir.”

 Ou seja, falta tudo e não tem nada.

Quando lhe pergunto se a Polícia aparece por lá, ela ri. “Quando aparece é por que está perdida”.

“Dia desses dois vizinhos se travaram na faca. Ligamos para a Polícia. O policial que nos atendeu perguntou se tinha havido ferimentos. Quando soube que sim nos aconselhou a botar o ferido em um carro e leva-lo para o hospital mais próximo, que chegava logo. Nunca apareceu.”

Ônibus que é bom, somente os que passam no Vale Dourado, conjunto vizinho. Outro nome escolhido pelo burocrata sarcástico. Quando minha faxineira volta para casa, lá pelas seis da noite, pode ser que precise descer em Nova Natal. Então será quase uma hora de caminhada até a chegada.

Quinta passada entrei nos detalhes de sua vida como consequência da rebelião dos presos de Alcaçuz, aquele presídio-ratoeira construído por sobre dunas pelos políticos e burocratas do Estado.

Mais ou menos na hora do almoço eu lhe disse que o noticiário estava avisando acerca do recolhimento dos ônibus a partir das quatorze horas. Ela resolveu ficar. Perguntei como ia ser sua volta. Como suas explicações me soaram vagas, não aprofundei a conversa, mas lhe disse que se não encontrasse meio de transporte, voltasse. Eu lhe daria o dinheiro para pegar um “uber”.

Nesta terça soube de sua epopeia. Na parada para qual sempre vai encontrou uma mulher na mesma situação. Desceram até outra parada, depois outra, e nada de transporte. A mulher se lembrou do trem que vai até a Zona Norte. Desceram mais ainda, muito mais, pegaram o trem lotado e saltaram em Nova Natal. De Nova Natal até sua casa foi, mais uma vez,  uma hora de caminhada.

“Com quem você fez a caminhada?”

“Com Deus. E rezando.”

É uma heroína.

* Arte em pragmatismopolitico.com.br

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

PROFESSOR VALÉRIO MAZZUOLI COTADO PARA MINISTRO DO STF

Professores Jahyr Bichara e Valério Mazzuoli (de barba) ladeiam a aluna Bárbara de Medeiros

Matéria da jornalista Celly Silva aponta o Professor Pós-Doutor Valério Mazzuoli como cotado para Ministro do STF na vaga de Teori Zavascki:

http://www.reportermt.com.br/poderes/professor-da-ufmt-tem-nome-citado-para-cargo-de-ministro-do-stf/63639

Recentemente o Professor Valério Mazzuoli este no Rio Grande do Norte a convite da Universidade Federal para ministrar um curso na Pós-graduação em Direito, coordenado pelo Professor Pós-Doutor Jair Bichara, também renomado intercionalista:

PODERES / VAGA DE TEORI ZAVASCKI

Pós doutor da UFMT é cotado para assumir posto de ministro do STF
Valério Mazzuoli é jurista respeitado no âmbito do Direito Internacional e, frequentemente, citado em decisões de ministros

Depois do governador Pedro Taques (PSDB), mais um nome surgiu, nos meios político e jurídico de Mato Grosso, como opção para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), na vaga deixada por Teori Zavascki, morto em acidente aéreo no último dia 19, em Paraty (RJ).

Trata-se de Valério Mazzuoli, professor do curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), pós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa e doutor em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Muito respeitado no âmbito jurídico em todo o país e até fora dele, por conta de dezenas de livros de sua autoria publicados em português e outras línguas, Valério Mazzuoli surge como um anseio dos catedráticos do Direito.

Apesar disso, ao , o professor afirmou que nunca recebeu nenhum convite para o STF e que não acredita que isso vá acontecer.

“Eu sou muito cético em relação a isso porque depende de indicação do presidente da República. Mas, eu acho que talvez meu nome tenha sido de certa forma cogitado pela minha produção acadêmica. São 23 livros publicados de Direito Internacional e eu sou muito citado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Hoje, em todas as questões de Direito Internacional, minhas obras são citadas no STF. Então, de certa forma, eu sou conhecido da Corte”, disse.

Por considerar que se trata de um "boato", o professor afirmou que não faz “a mínima ideia” de onde teria surgido a suposição de seu nome para ministro, mas acredita que cada segmento defende o seu representante.

“Falaram que eu seria um excelente nome porque precisam de um internacionalista no Supremo. Eu acho que isso vem do meio acadêmico. Cada um defende o seu: os juízes federais querem um juiz federal, os defensores públicos querem um defensor público, e eu acho que os meus colegas internacionalistas querem um internacionalista no Supremo”, observou.

Valério Mazzuoli preenche todos os requisitos estabelecidos pela Constituição para se tornar um ministro do STF: possui notório saber jurídico e reputação ilibada.

Mas, ele lembrou que, nos últimos governos, essas credenciais não têm sido seguidas pelos presidentes da República.

Ele se referia, por exemplo, ao ministro Dias Tóffoli, indicado pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, sem ter qualquer produção científica de peso no currículo.

“A ideia da Constituição não está sendo respeitada, foi desvirtuada”, comentou.

Questionado se o convite se concretizasse qual seria sua reação, o professor disse que o chamado para a função é uma grande honra para qualquer jurista, e que qualquer cidadão que seja patriota não poderia se recusar por se tratar de um convite para “servir à Nação”.

“Se um dia acontecesse, eu daria tudo de mim para ser um ministro excelente, para julgar de acordo com o que manda a Constituição e as leis sem política, sem amizades, sem compadrios, baseado na ética e na Constituição. Mas, como é político, eles colocam os amigos do rei”, completou.

sábado, 21 de janeiro de 2017

A VIDA É LÍQUIDA



* Honório de Medeiros

Pequena homenagem a Zygmunt Balman.


“A vida é líquida”, diria Zygmunt Balman, aludindo à consistência das relações entre nós e os outros, ou entre nós e as coisas e/ou fenômenos.

Líquida posto que essa consistência não tem forma definida, assume aquela que o recipiente (o contexto) impõe.

Não somos estruturas rígidas que atravessam o tempo imutáveis ou pouco atingidas pelas circunstâncias, somos proteiformes, somos difusos, somos evanescentes. 

Vivemos uma época na qual as gerações mais novas escrevem tudo em uma linha. No máximo algumas poucas linhas. E somente leem, e são treinadas pela realidade virtual com a qual convivem “full time” exatamente para isso, algumas linhas, umas poucas linhas.

Tal é o ser (e o dever-ser) que essa realidade virtual impõe: tudo é frenético, tudo é descartável, tudo é cambiante, imediato.

É a maximização das potencialidades, negativas ou positivas, da nossa espécie sobrevivente e dominante, conforme descrito pela teoria da seleção natural.

O modelo de ensino, que ainda predomina está fadado ao fim, entre outras razões em decorrência do descompasso com essa realidade que se impõe avassaladora.

Não há mais espaço para uma educação que se estrutura a partir de livros, com textos pesados, longos, exigindo tempo, estudo profundo, e o tratamento do “pensar” típico dos escolásticos medievais que moldaram as bases do nosso ensino ocidental e cristão.

As gerações mais novas, que herdarão o mundo, ou o que restar dele, e sua forma de apreender e expressar a realidade, estão em processo de descompasso com aquela construída pelos nossos antepassados.

Não se trata de estarmos certos e eles errados. Mas quem há de ler “Ulisses”, de Joyce, “Paidéia”, de Jaeger, ou “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, em tempos como estes?

São elas, as gerações mais novas, mutações engendradas pelo meme que é a realidade virtual: caracterizam-se por viver em ritmo alucinante, pensar freneticamente, falar acelerado, em contraposição ao viver, pensar e falar arcaico, que vai sendo deixado para trás.

O livro de papel sobreviverá, claro, como sobreviveu o ritual do chá no Japão moderno que a restauração Meiji instaurou, bem como atirar com arco-e-flecha, como algo excêntrico, típico de verdadeiros “outsiders”, a partir do qual hão de se criar seitas e seus inevitáveis rituais iniciáticos.

Livros em ambientes virtuais existirão cada vez mais, óbvio. Mas nunca serão consumidos como o foram os livros de papel após Gutenberg.

Assim como os monges que salvaram a civilização na Alta Idade Média, copiando os textos antigos e os deixando para a posteridade, será em ambiente monacal que os iniciados lerão obras tais quais as que foram citadas acima.

O velho mundo está morrendo, viva o novo mundo, do qual serei espectador privilegiado, posto que, quando menino, fui apresentado ao milagre da televisão quando já completamente cativado pelo livro de papel, e, agora, cinquentão, me maravilho com as infinitas possibilidades de uma realidade sequer possível de ser imaginada antes, domínio e prisão dos que, hoje, ainda são apenas adolescentes.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

O HOMEM TEM QUE SABER A HORA DE SAIR



* Antônio Gomes.


O homem tem que saber a hora de sair. 
Recolher-se.
Guardar os arreios, tirar as esporas, encostar a cela.
Perceber que seu tempo passou.
Pendurar as armas da luta, sofrear os últimos ímpetos, despir a armadura.
Não mais se afadigar debaixo de nenhum sol.
Beber sua pinga, contar casos, ver os rebentos irem para a arena.
Sair de cena.
Com calma, para não parecer rendição; com certa ligeireza de quem sabe o que está fazendo.
Dizer adeus.
Afinal, até a chuva não será mais como era antes.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

FRACASSO


* Honório de Medeiros

Começo da noite do dia 18 de janeiro de 2017.

"Que fizemos nós deste País, meu Deus? Que tempos são estes? Como e quando começamos esse nosso fracasso coletivo?"

Ontem à noite minha filha Bárbara, e seus dezoito anos, olhava as ruas vazias, todo mundo recolhido enquanto carros e prédios públicos eram incendiados e a rede social anunciava novos confrontos nos presídios do Estado e seus rituais macabros de morte e degola, chorando.

"Eu somente quero ir trabalhar, papai. Sair. Quero minha liberdade. Então não vale a pena?"

Eu nada disse. Baixei a cabeça.

Depois de todos esses anos de vida, de trabalho, de luta, o legado que estávamos deixando para sua geração era aquele que ela não via, mas podia imaginar: labaredas, destruição, morte, uma cidade na qual nós, cidadãos pacíficos, estávamos prisioneiros, amedrontados, impotentes, enquanto a noite avançava lentamente.

Fracassamos.

* Arte em ano-zero.com/virus-do-fracasso

sábado, 14 de janeiro de 2017

A CAUSA DA EXISTÊNCIA DO PODER


Bertrand Russel

* Honório de Medeiros


Em “Power: A New Social Analysis”, Sir Bertrand Russel expõe a teoria de que os acontecimentos sociais somente são plenamente explicáveis a partir da idéia de Poder[1].

Não algum Poder específico, como o Econômico, ou o Militar, ou mesmo o Político[2], mas o Poder com “P” maiúsculo, do qual todas os tipos são decorrentes, irredutíveis entre si, mas de igual importância para compreender a Sociedade.

A causa da existência do Poder, segundo ele, é a ânsia infinita de glória, inerente a todos os seres humanos. Se o homem não ansiasse por glória, não buscaria o Poder.

Infinita posto que essa ânsia não conhece limites.

A busca pela glória dificulta a cooperação social, já que cada um de nós quer impor, aos outros, como esta deveria ocorrer, e nos torna relutantes em admitir limitações ao nosso poder individual.

Como isso não é possível, ou seja, se todos querem e são ações excludentes uma em relação à outra, surgem a instabilidade e a violência. 

A luta individual pela glória, cuja manifestação objetiva é o exercício do Poder, pode ser encontrada em qualquer ser humano, mais explicitamente nos guerreiros, santos, ou políticos, e implicitamente nos seus seguidores: Xerxes não precisava de alimentos, roupas ou mulheres quando invadiu Atenas; Newton não precisava lutar pela sobrevivência quando empreendeu escrever seus “Principia”; São Francisco de Assis e Santo Inácio de Loyola não precisavam criar ordens religiosas para difundir a palavra de Cristo.

Somente o amor ao Poder explicaria realizações tão singulares.

Portanto, para Russel, a força propulsora primeira, a "causa causarum" das transformações sociais se resume ao amor ao Poder glorioso, que é inerente a qualquer ser humano. 

Cabe agora indagar: o que leva o homem a ansiar pela glória, e em ansiando, lutar pelo Poder, posto que este é o instrumento, segundo se depreende da leitura de Russel, por meio do qual se obtém aquela?

Se Russel tem razão, é preciso ir mais fundo.

Freud explicaria? Sim, explicaria. Entretanto a psicanálise não é uma ciência, ou seja, suas teorias não são passíveis de serem submetidas a teste.

Ernst Becker escreveu um livro chamado "A Negação da Morte", que até lhe deu o prêmio Pulitzer, acerca do que ele considera o impulso psicológico primordial no homem. Tal impulso seria oriundo do medo da morte. Freud não tinha razão, segundo ele, quando apostava todas suas fichas no complexo de Édipo. Mas Otto Rank, que foi um seu discípulo não tão badalado, sim. E, para ele, o homem é um grande mentiroso - todas as suas lutas são ambições de imortalidade, tenham sido elas grandes ou pequenas. Ou seja, por exemplo, o desejo de procriar, ter filhos, nada mais é que uma aposta - perdida - contra a morte.

Becker foi mais além. Pegou o pensamento de Kiekergaard (não aquele que originou "O Diário de Um Sedutor") e extraiu-lhe a essência. Para Sorën Kiekergaard tudo isso que Rank disse é mais que verdade (lógico que não foram contemporâneos; este antecedeu aquele), embora visto dentro de uma perspectiva mística, ou seja, a única realidade neste mundo de ilusão seria a morte, companheira do homem desde seu nascimento e, a forma de enfrentá-la, criar um caminho para Deus.

Pois bem, no final sobrou algo assim: Becker acha que o impulso primordial psíquico do homem é originado pelo seu temor à morte; esse temor o leva a construir uma mentira vital para si - empreender uma ambiciosa história pessoal em busca da imortalidade seja qual seja ela (carreira política, etc.); mas o que conta, realmente, é a consciência do ato criador: criar é á única forma de transcender os limites da morte. Alguns têm consciência disso; outros, não.

E o marxismo-leninismo? Embora testáveis, suas teorias fracassaram.

E quanto a Darwin? Quanto à Teoria da Seleção Natural? Aqui temos teorias testáveis e que continuam resistindo, ao longo do tempo, a todas as verificações possíveis e imagináveis, embora ainda não tenha produzido uma explicação "definitiva" quanto a questões pontuais, como o homossexualismo ou o altruísmo, por exemplo.

"Se a homossexualidade masculina, por exemplo, é um traço genético, como teria perdurado ao longo do tempo se os indíviduos que carregam 'esses genes' não se reproduzem?", indaga o pesquisador Paul Vasey, da Universidade de Lethbridge, no Canadá. E continua: "Trata-se de um paradoxo do ponto de vista evolucionário." 

Em Darwin a obtenção da “glória” é apenas um dos meios por intermédio dos quais o homem amplia as possibilidades de sobrevivência dos seus genes, esse segmento de uma molécula de DNA responsável pelas nossas características herdadas geneticamente.

Outro seria, por exemplo, a obtenção de riqueza. E a glória pode catapultar a riqueza, ou vice-versa. Sempre existiu homens que ficaram ricos após a glória, e gloriosos após a riqueza.

Trocando em miúdos: quanto mais glória ou dinheiro eu obtiver, mais facilmente sobreviverão meus descendentes.

[1] Poder, segundo Bobbio, em "Teoria Geral da Política", no início do capítulo acerca de "Política e Direito", diz que Poder deve ser entendido como a capacidade de influenciar, condicionar, determinar a conduta de alguém.

[2] Bobbio, em obra já citada, abre o capítulo alusivo a "Política e Direito" expondo que o termo “Política” diz respeito às ações por meio das quais se conquista, mantém e exerce o Poder último ou soberano, tal e qual o dos governantes sobre os governados. 

LEIA AQUI, NESTE BLOG: 

http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2010/12/psicologia-evolutiva.html

http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2015/01/o-egoismo-dos-genes.html 

* Arte em hoovervamtol.blogspot.com