sábado, 4 de fevereiro de 2017

CHILDERICO JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ FILHO



* Honório de Medeiros

Em dias do ano de 1880 Childerico José Fernandes de Queiróz Filho, nascido em 1865, Pau dos Ferros, Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o segundo do seu nome, aos quinze anos de idade, portanto em 1880, quiçá alavancado pelas histórias e estórias que vinham da Amazônia longínqua, das quais eram protagonistas homens do Sertão da Serra das Almas e arredores, contadas nas feiras e na lide com o gado e a lavoura, durante o dia, e à noite, nos alpendres das casas, à luz das lamparinas, de riquezas imensas construídas de um dia para o outro na colheita do látex, ou mesmo pelo desejo de tomar distância de um futuro sem perspectivas para um órfão de pai e mãe cuja herança tinha muitos donos, montou num cavalo e arribou no mundo, no rumo da distante Belém do Pará.

E assim se passaram quase sessenta anos até que seus ossos cansados pousassem de vez na mítica Casa-Grande da fazenda “João Gomes”, que pertencera a seu pai e ascendentes, adquirida comprando as partes de seus irmãos e herdeiros, famosa por tantas e tantas histórias, dentre outras a dos nove ou onze filhos e filhas concebidos pelo Padre Bernardino José de Queiróz e Sá, e criados em seus sótãos, porão, quintais e oitões, uma das quais viria a ser sua madrasta, posto que herdeira única de toda aquela imensidão rural, por ter sido adotada por seu único irmão[1], o renomado Major Ephiphanio.

Mas seu pouso duraria pouco. Childerico II trouxera consigo, da Amazônia, uma moléstia mortal que o conduziria ao descanso eterno em um lugar jamais antes por ele visitado, o Rio de Janeiro. Em 26 de março de 1939 o “Guerreiro do Yaco”, como o denominou Calazans Fernandes, autor de uma trilogia que por intermédio desse singular personagem conta a história do Sertão do Alto Oeste do Rio Grande do Norte, o Sertão da “Serra das Almas” e arredores, desde sua origem até meados do século XX, finalmente foi acertar suas contas com o Criador, a quem ele, ferrenhamente, ateu convicto, negava a existência.

Nos quase sessenta anos de vida na Amazônia Childerico II se transformou em uma lenda que sobrevive esmaecida em livros e documentos. Nada que possa dar a verdadeira dimensão de sua história. Somente aqui e ali encontramos o rastro forte dos seus passos e o eco de sua voz autoritária, a traçar contornos pouco nítidos de um homem que viveu muitas vidas em apenas uma existência.

A história da construção de sua imensa riqueza, nos primeiros anos de saga amazônica, quando comprou um seringal denominado “Oriente”, fronteira com a Bolívia, maior que o Estado do Sergipe, depois de passar onze anos desaparecido na floresta, rio Yaco acima e adentro, onde homem algum, exceto índios ferozes, ousavam viver, bem como sua volta triunfal, conduzindo barcos e mais barcos repletos de látex, para serem vendidos a peso de ouro, nos portos de Manaus, por si só valem um livro. E que livro!

Assim como vale um livro as batalhas que enfrentou: a luta pelo Acre com Plácido de Castro; a tomada pela força das armas de Sena Madureira, enquanto líder do Movimento Autonomista do Alto Purus, e assim por diante. Está lá, no Dicionário das Batalhas Brasileiras[2], de Hernâni Donato: “8.6.1912 – SENA MADUREIRA. AC. Movimento autonomista do Alto Purus. A 7.5[3], em protesto contra o então Prefeito regional e o alegado descaso do Governo Federal, autonomistas declararam instalado o Estado Livre do Acre, embrião do futuro Acreânia. Chefes, os “coronéis” Childerico Fernandes, José de Alencar Matos, Raimundo Freire. Armaram 350 homens para enfrentar forças a serem enviadas contra o novo Estado. A 8.6[4] estas apresentaram-se, federais e estaduais. E venceram, dispersando os autonomistas, depois de seis horas de combate, dez mortos entre os levantados, incêndios, assassinatos vingativos.”

Ou a luta por Bragança, no Pará, da qual foi Prefeito várias vezes. E a luta por Belém, com Lauro Sodré, para depor Enéias Martins. Assim como a luta ao lado do Governador Eurico de Freitas Vale, durante a Revolução de 30, quando compareceu para combater com trezentos homens por ele armados e municiados!

Em – “Chamas do Passado” - segundo volume inédito da trilogia de Calazans Fernandes, a espinha dorsal, o fio-condutor continua sendo Childerico II. Sua história perpassa cada capítulo, enquanto pano-de-fundo, e nos dá a dimensão de homens como ele, heroicos, verdadeiros titãs, cuja fôrma está desaparecida. Homens que construíam o próprio destino na marra, como se diz no Sertão. Homens de feitos e glória. Homens que levaram “uma vida de conquistador bandeirante, de homem antigo, aventureiro das matas e da indiaria, reconstruindo com obstinação impassível o que a tempestade derrubava. Dessa fibra teimosa se teceram os ombros que empurraram o meridiano para o Oeste”, para citar Cascudo, parente distante pelos Fernandes Pimenta, de Caraúbas, que lhe escreveu um longo panegírico, ao saber de sua morte.

Nesse segundo volume nos damos conta de como são profundas as relações dos que nasceram no entorno da “Serra das Almas” com os cristãos-novos, judeus que povoaram nossos sertões desde que por aqui aportou Pedro Álvares Cabral. Mas não somente. Também nos damos conta da presença de personagens significativos da nossa história potiguar a assuntar o ouro da “Serra das Almas”. Que dizer das armaduras e armas lá encontradas, no Serrote do “Cabelo-Não-Tem” ao lado de bruacas de couro cru cheias de pepitas de ouro? E quanto aos descendentes dos sobreviventes dos oito naufrágios nas costas do Rio Grande do Norte que subiram os rios Sertão acima, até o Alto-Oeste?

São muitas histórias – e estórias também, imbrincadas entre si pelo talento de Calazans Fernandes que a Fundação José Augusto, muito apropriadamente, poderia resgatar do limbo na fabulosa Coleção Cultura Potiguar. Por esse trabalho, pela Coleção, para a obra a ser apresentada ao público leitor, viriam todos nossos aplausos.

[1] Do padre.

[2] IBRASA – Instituição Brasileira de Difusão Cultural Ltda. / Dos Conflitos com Indígenas aos Choques da Reforma Agrária (1996) / Premio Joaquim Nabuco 1988 (Academia Brasileira de Letras) /2ª edição, 1996. 

[3] 7 de maio. 

[4] 8 de junho.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

FALTA TUDO E NÃO TEM NADA



* Honório de Medeiros


Minha faxineira é uma heroína.

Nova, ainda, trinta e cinco anos, aparenta bem mais. Casada com um pedreiro, é mãe orgulhosa de uma mocinha de dezoito, que “faz um curso de informática na cidade” após ter concluído o Segundo Grau.

Mora em “Jardim Progresso”, o último bairro da Zona Norte de Natal no sentido de quem vai para São Gonçalo do Amarante ou Extremoz.

Todo manhã ela acorda às quatro e trinta. Prepara o café, deixa pronto o almoço e começa sua luta diária para pegar transportes que lhe deixem nas diferentes casas onde ganha o pão de cada dia.

Lá pelas cinco, seis, a luta é para voltar para casa, essa mais difícil ainda.

No “Jardim Progresso”, cujo nome com certeza foi escolhido por algum burocrata sarcástico, não tem Posto de Saúde. Nem Delegacia. Tampouco Escola de Ensino Médio. Menos ainda creches.

“Creche? Tem no Vale Dourado. A semana passada um bocado de mulheres daqui foi dormir nas calçadas da creche para segurar uma vaga no atendimento do dia seguinte. Muitas voltaram sem conseguir.”

 Ou seja, falta tudo e não tem nada.

Quando lhe pergunto se a Polícia aparece por lá, ela ri. “Quando aparece é por que está perdida”.

“Dia desses dois vizinhos se travaram na faca. Ligamos para a Polícia. O policial que nos atendeu perguntou se tinha havido ferimentos. Quando soube que sim nos aconselhou a botar o ferido em um carro e leva-lo para o hospital mais próximo, que chegava logo. Nunca apareceu.”

Ônibus que é bom, somente os que passam no Vale Dourado, conjunto vizinho. Outro nome escolhido pelo burocrata sarcástico. Quando minha faxineira volta para casa, lá pelas seis da noite, pode ser que precise descer em Nova Natal. Então será quase uma hora de caminhada até a chegada.

Quinta passada entrei nos detalhes de sua vida como consequência da rebelião dos presos de Alcaçuz, aquele presídio-ratoeira construído por sobre dunas pelos políticos e burocratas do Estado.

Mais ou menos na hora do almoço eu lhe disse que o noticiário estava avisando acerca do recolhimento dos ônibus a partir das quatorze horas. Ela resolveu ficar. Perguntei como ia ser sua volta. Como suas explicações me soaram vagas, não aprofundei a conversa, mas lhe disse que se não encontrasse meio de transporte, voltasse. Eu lhe daria o dinheiro para pegar um “uber”.

Nesta terça soube de sua epopeia. Na parada para qual sempre vai encontrou uma mulher na mesma situação. Desceram até outra parada, depois outra, e nada de transporte. A mulher se lembrou do trem que vai até a Zona Norte. Desceram mais ainda, muito mais, pegaram o trem lotado e saltaram em Nova Natal. De Nova Natal até sua casa foi, mais uma vez,  uma hora de caminhada.

“Com quem você fez a caminhada?”

“Com Deus. E rezando.”

É uma heroína.

* Arte em pragmatismopolitico.com.br

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

PROFESSOR VALÉRIO MAZZUOLI COTADO PARA MINISTRO DO STF

Professores Jahyr Bichara e Valério Mazzuoli (de barba) ladeiam a aluna Bárbara de Medeiros

Matéria da jornalista Celly Silva aponta o Professor Pós-Doutor Valério Mazzuoli como cotado para Ministro do STF na vaga de Teori Zavascki:

http://www.reportermt.com.br/poderes/professor-da-ufmt-tem-nome-citado-para-cargo-de-ministro-do-stf/63639

Recentemente o Professor Valério Mazzuoli este no Rio Grande do Norte a convite da Universidade Federal para ministrar um curso na Pós-graduação em Direito, coordenado pelo Professor Pós-Doutor Jair Bichara, também renomado intercionalista:

PODERES / VAGA DE TEORI ZAVASCKI

Pós doutor da UFMT é cotado para assumir posto de ministro do STF
Valério Mazzuoli é jurista respeitado no âmbito do Direito Internacional e, frequentemente, citado em decisões de ministros

Depois do governador Pedro Taques (PSDB), mais um nome surgiu, nos meios político e jurídico de Mato Grosso, como opção para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), na vaga deixada por Teori Zavascki, morto em acidente aéreo no último dia 19, em Paraty (RJ).

Trata-se de Valério Mazzuoli, professor do curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), pós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa e doutor em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Muito respeitado no âmbito jurídico em todo o país e até fora dele, por conta de dezenas de livros de sua autoria publicados em português e outras línguas, Valério Mazzuoli surge como um anseio dos catedráticos do Direito.

Apesar disso, ao , o professor afirmou que nunca recebeu nenhum convite para o STF e que não acredita que isso vá acontecer.

“Eu sou muito cético em relação a isso porque depende de indicação do presidente da República. Mas, eu acho que talvez meu nome tenha sido de certa forma cogitado pela minha produção acadêmica. São 23 livros publicados de Direito Internacional e eu sou muito citado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Hoje, em todas as questões de Direito Internacional, minhas obras são citadas no STF. Então, de certa forma, eu sou conhecido da Corte”, disse.

Por considerar que se trata de um "boato", o professor afirmou que não faz “a mínima ideia” de onde teria surgido a suposição de seu nome para ministro, mas acredita que cada segmento defende o seu representante.

“Falaram que eu seria um excelente nome porque precisam de um internacionalista no Supremo. Eu acho que isso vem do meio acadêmico. Cada um defende o seu: os juízes federais querem um juiz federal, os defensores públicos querem um defensor público, e eu acho que os meus colegas internacionalistas querem um internacionalista no Supremo”, observou.

Valério Mazzuoli preenche todos os requisitos estabelecidos pela Constituição para se tornar um ministro do STF: possui notório saber jurídico e reputação ilibada.

Mas, ele lembrou que, nos últimos governos, essas credenciais não têm sido seguidas pelos presidentes da República.

Ele se referia, por exemplo, ao ministro Dias Tóffoli, indicado pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, sem ter qualquer produção científica de peso no currículo.

“A ideia da Constituição não está sendo respeitada, foi desvirtuada”, comentou.

Questionado se o convite se concretizasse qual seria sua reação, o professor disse que o chamado para a função é uma grande honra para qualquer jurista, e que qualquer cidadão que seja patriota não poderia se recusar por se tratar de um convite para “servir à Nação”.

“Se um dia acontecesse, eu daria tudo de mim para ser um ministro excelente, para julgar de acordo com o que manda a Constituição e as leis sem política, sem amizades, sem compadrios, baseado na ética e na Constituição. Mas, como é político, eles colocam os amigos do rei”, completou.

sábado, 21 de janeiro de 2017

A VIDA É LÍQUIDA



* Honório de Medeiros

Pequena homenagem a Zygmunt Balman.


“A vida é líquida”, diria Zygmunt Balman, aludindo à consistência das relações entre nós e os outros, ou entre nós e as coisas e/ou fenômenos.

Líquida posto que essa consistência não tem forma definida, assume aquela que o recipiente (o contexto) impõe.

Não somos estruturas rígidas que atravessam o tempo imutáveis ou pouco atingidas pelas circunstâncias, somos proteiformes, somos difusos, somos evanescentes. 

Vivemos uma época na qual as gerações mais novas escrevem tudo em uma linha. No máximo algumas poucas linhas. E somente leem, e são treinadas pela realidade virtual com a qual convivem “full time” exatamente para isso, algumas linhas, umas poucas linhas.

Tal é o ser (e o dever-ser) que essa realidade virtual impõe: tudo é frenético, tudo é descartável, tudo é cambiante, imediato.

É a maximização das potencialidades, negativas ou positivas, da nossa espécie sobrevivente e dominante, conforme descrito pela teoria da seleção natural.

O modelo de ensino, que ainda predomina está fadado ao fim, entre outras razões em decorrência do descompasso com essa realidade que se impõe avassaladora.

Não há mais espaço para uma educação que se estrutura a partir de livros, com textos pesados, longos, exigindo tempo, estudo profundo, e o tratamento do “pensar” típico dos escolásticos medievais que moldaram as bases do nosso ensino ocidental e cristão.

As gerações mais novas, que herdarão o mundo, ou o que restar dele, e sua forma de apreender e expressar a realidade, estão em processo de descompasso com aquela construída pelos nossos antepassados.

Não se trata de estarmos certos e eles errados. Mas quem há de ler “Ulisses”, de Joyce, “Paidéia”, de Jaeger, ou “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust, em tempos como estes?

São elas, as gerações mais novas, mutações engendradas pelo meme que é a realidade virtual: caracterizam-se por viver em ritmo alucinante, pensar freneticamente, falar acelerado, em contraposição ao viver, pensar e falar arcaico, que vai sendo deixado para trás.

O livro de papel sobreviverá, claro, como sobreviveu o ritual do chá no Japão moderno que a restauração Meiji instaurou, bem como atirar com arco-e-flecha, como algo excêntrico, típico de verdadeiros “outsiders”, a partir do qual hão de se criar seitas e seus inevitáveis rituais iniciáticos.

Livros em ambientes virtuais existirão cada vez mais, óbvio. Mas nunca serão consumidos como o foram os livros de papel após Gutenberg.

Assim como os monges que salvaram a civilização na Alta Idade Média, copiando os textos antigos e os deixando para a posteridade, será em ambiente monacal que os iniciados lerão obras tais quais as que foram citadas acima.

O velho mundo está morrendo, viva o novo mundo, do qual serei espectador privilegiado, posto que, quando menino, fui apresentado ao milagre da televisão quando já completamente cativado pelo livro de papel, e, agora, cinquentão, me maravilho com as infinitas possibilidades de uma realidade sequer possível de ser imaginada antes, domínio e prisão dos que, hoje, ainda são apenas adolescentes.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

O HOMEM TEM QUE SABER A HORA DE SAIR



* Antônio Gomes.


O homem tem que saber a hora de sair. 
Recolher-se.
Guardar os arreios, tirar as esporas, encostar a cela.
Perceber que seu tempo passou.
Pendurar as armas da luta, sofrear os últimos ímpetos, despir a armadura.
Não mais se afadigar debaixo de nenhum sol.
Beber sua pinga, contar casos, ver os rebentos irem para a arena.
Sair de cena.
Com calma, para não parecer rendição; com certa ligeireza de quem sabe o que está fazendo.
Dizer adeus.
Afinal, até a chuva não será mais como era antes.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

FRACASSO


* Honório de Medeiros

Começo da noite do dia 18 de janeiro de 2017.

"Que fizemos nós deste País, meu Deus? Que tempos são estes? Como e quando começamos esse nosso fracasso coletivo?"

Ontem à noite minha filha Bárbara, e seus dezoito anos, olhava as ruas vazias, todo mundo recolhido enquanto carros e prédios públicos eram incendiados e a rede social anunciava novos confrontos nos presídios do Estado e seus rituais macabros de morte e degola, chorando.

"Eu somente quero ir trabalhar, papai. Sair. Quero minha liberdade. Então não vale a pena?"

Eu nada disse. Baixei a cabeça.

Depois de todos esses anos de vida, de trabalho, de luta, o legado que estávamos deixando para sua geração era aquele que ela não via, mas podia imaginar: labaredas, destruição, morte, uma cidade na qual nós, cidadãos pacíficos, estávamos prisioneiros, amedrontados, impotentes, enquanto a noite avançava lentamente.

Fracassamos.

* Arte em ano-zero.com/virus-do-fracasso

sábado, 14 de janeiro de 2017

A CAUSA DA EXISTÊNCIA DO PODER


Bertrand Russel

* Honório de Medeiros


Em “Power: A New Social Analysis”, Sir Bertrand Russel expõe a teoria de que os acontecimentos sociais somente são plenamente explicáveis a partir da idéia de Poder[1].

Não algum Poder específico, como o Econômico, ou o Militar, ou mesmo o Político[2], mas o Poder com “P” maiúsculo, do qual todas os tipos são decorrentes, irredutíveis entre si, mas de igual importância para compreender a Sociedade.

A causa da existência do Poder, segundo ele, é a ânsia infinita de glória, inerente a todos os seres humanos. Se o homem não ansiasse por glória, não buscaria o Poder.

Infinita posto que essa ânsia não conhece limites.

A busca pela glória dificulta a cooperação social, já que cada um de nós quer impor, aos outros, como esta deveria ocorrer, e nos torna relutantes em admitir limitações ao nosso poder individual.

Como isso não é possível, ou seja, se todos querem e são ações excludentes uma em relação à outra, surgem a instabilidade e a violência. 

A luta individual pela glória, cuja manifestação objetiva é o exercício do Poder, pode ser encontrada em qualquer ser humano, mais explicitamente nos guerreiros, santos, ou políticos, e implicitamente nos seus seguidores: Xerxes não precisava de alimentos, roupas ou mulheres quando invadiu Atenas; Newton não precisava lutar pela sobrevivência quando empreendeu escrever seus “Principia”; São Francisco de Assis e Santo Inácio de Loyola não precisavam criar ordens religiosas para difundir a palavra de Cristo.

Somente o amor ao Poder explicaria realizações tão singulares.

Portanto, para Russel, a força propulsora primeira, a "causa causarum" das transformações sociais se resume ao amor ao Poder glorioso, que é inerente a qualquer ser humano. 

Cabe agora indagar: o que leva o homem a ansiar pela glória, e em ansiando, lutar pelo Poder, posto que este é o instrumento, segundo se depreende da leitura de Russel, por meio do qual se obtém aquela?

Se Russel tem razão, é preciso ir mais fundo.

Freud explicaria? Sim, explicaria. Entretanto a psicanálise não é uma ciência, ou seja, suas teorias não são passíveis de serem submetidas a teste.

Ernst Becker escreveu um livro chamado "A Negação da Morte", que até lhe deu o prêmio Pulitzer, acerca do que ele considera o impulso psicológico primordial no homem. Tal impulso seria oriundo do medo da morte. Freud não tinha razão, segundo ele, quando apostava todas suas fichas no complexo de Édipo. Mas Otto Rank, que foi um seu discípulo não tão badalado, sim. E, para ele, o homem é um grande mentiroso - todas as suas lutas são ambições de imortalidade, tenham sido elas grandes ou pequenas. Ou seja, por exemplo, o desejo de procriar, ter filhos, nada mais é que uma aposta - perdida - contra a morte.

Becker foi mais além. Pegou o pensamento de Kiekergaard (não aquele que originou "O Diário de Um Sedutor") e extraiu-lhe a essência. Para Sorën Kiekergaard tudo isso que Rank disse é mais que verdade (lógico que não foram contemporâneos; este antecedeu aquele), embora visto dentro de uma perspectiva mística, ou seja, a única realidade neste mundo de ilusão seria a morte, companheira do homem desde seu nascimento e, a forma de enfrentá-la, criar um caminho para Deus.

Pois bem, no final sobrou algo assim: Becker acha que o impulso primordial psíquico do homem é originado pelo seu temor à morte; esse temor o leva a construir uma mentira vital para si - empreender uma ambiciosa história pessoal em busca da imortalidade seja qual seja ela (carreira política, etc.); mas o que conta, realmente, é a consciência do ato criador: criar é á única forma de transcender os limites da morte. Alguns têm consciência disso; outros, não.

E o marxismo-leninismo? Embora testáveis, suas teorias fracassaram.

E quanto a Darwin? Quanto à Teoria da Seleção Natural? Aqui temos teorias testáveis e que continuam resistindo, ao longo do tempo, a todas as verificações possíveis e imagináveis, embora ainda não tenha produzido uma explicação "definitiva" quanto a questões pontuais, como o homossexualismo ou o altruísmo, por exemplo.

"Se a homossexualidade masculina, por exemplo, é um traço genético, como teria perdurado ao longo do tempo se os indíviduos que carregam 'esses genes' não se reproduzem?", indaga o pesquisador Paul Vasey, da Universidade de Lethbridge, no Canadá. E continua: "Trata-se de um paradoxo do ponto de vista evolucionário." 

Em Darwin a obtenção da “glória” é apenas um dos meios por intermédio dos quais o homem amplia as possibilidades de sobrevivência dos seus genes, esse segmento de uma molécula de DNA responsável pelas nossas características herdadas geneticamente.

Outro seria, por exemplo, a obtenção de riqueza. E a glória pode catapultar a riqueza, ou vice-versa. Sempre existiu homens que ficaram ricos após a glória, e gloriosos após a riqueza.

Trocando em miúdos: quanto mais glória ou dinheiro eu obtiver, mais facilmente sobreviverão meus descendentes.

[1] Poder, segundo Bobbio, em "Teoria Geral da Política", no início do capítulo acerca de "Política e Direito", diz que Poder deve ser entendido como a capacidade de influenciar, condicionar, determinar a conduta de alguém.

[2] Bobbio, em obra já citada, abre o capítulo alusivo a "Política e Direito" expondo que o termo “Política” diz respeito às ações por meio das quais se conquista, mantém e exerce o Poder último ou soberano, tal e qual o dos governantes sobre os governados. 

LEIA AQUI, NESTE BLOG: 

http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2010/12/psicologia-evolutiva.html

http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2015/01/o-egoismo-dos-genes.html 

* Arte em hoovervamtol.blogspot.com

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

O PACTO DOS GOVERNADORES PARA ELIMINAR OS CANGACEIROS


* Honório de Medeiros 

Teria havido um pacto entre os governadores para a eliminação física dos cangaceiros, sem que lhes fosse dado o direito de responderem processo ante a Justiça?

O estudo dos autores e os indícios levam a crer que sim.

Houve uma reunião em Recife, no dia 28 de dezembro de 1926, entre os chefes de polícia dos estados do Nordeste, cujo teor não pôde ser vazado para a imprensa em decorrência do seu caráter reservado e das medidas de ordem interna que estavam sendo tomadas e não podiam ser reveladas. O Governador anfitrião, Estácio Coimbra, na abertura do conclave, fizera críticas contundentes aos coronéis do interior e sua complacência com o banditismo. E já havia tomado algumas medidas radicais no combate ao cangaceirismo: nomeara, a 16 de novembro daquele ano, o Major Teófanes Ferraz Torres para comando geral das unidades policiais de cidades e vilas no interior do Estado e lhe dera “carta branca” para atacar o principal suporte dos cangaceiros, através da eliminação ou redução drástica de seus coiteiros, mesmo que para isso fosse necessário prender e torturar, como de fato foi feito ao longo dos anos seguintes.

Frederico Pernambucano de Mello[1] comenta o encontro:

Daí para a idéia da promoção de novo encontro[2] ia apenas um leve passo. Ele é dado logo a 28 de dezembro desse ano[3] com a reunião, mais uma vez no Recife, de representantes dos Estados atingidos pela ação do banditismo – os tradicionais, como os mais recentes – de modo especial a que decorria do comando superiormente engenhoso de Lampião.

Da Paraíba, freguesa antiga do bandido, chega o chefe de polícia, Júlio Lira; do Ceará, Paes de Carvalho; do Rio Grande do Norte, Benício Filho[4]. Pernambuco se faz representar pelo chefe de polícia, Eurico de Souza Leão, e pelo secretário de Justiça, Genaro Guimarães. (...) Alagoas, Ernande Teixeira Bastos; (...) Madureira de Pinho, chefe de polícia da Bahia.

Vamos aos indícios: no Rio Grande do Norte, Sérgio Dantas relata o episódio da morte de Mormaço e Bronzeado[5]:

Mossoró, 12 de março. A cadeia pública passava por minuciosa revista. Prisioneiro recambiado para a cidade de Apodi deu conta às autoridades de plano de fuga encabeçado pelos cangaceiros Mormaço e Bronzeado. O objetivo da empreitada – segundo o delator – seria o aprisionamento do carcereiro e a tomada das armas depositadas no paiol.

A polícia não titubeou e investigou sumariamente a denúncia. Descobriu sinais de arrombamento em porão localizado no setor norte do presídio. Sem maiores rodeiros, responsabilizou os dois cangaceiros por tentativa de fuga e os imobilizou à força de algemas[6].

Na manhã seguinte decidiu-se pelo encaminhamento dos prisioneiros para a capital. O tenente Laurentino ficou encarregado de facilitar o transporte. Além de Mormaço e Bronzeado, seriam de igual recambiados os criminosos Thomaz dos Santos e Waldemar Ramos, presos comuns, detidos há meses na cidade salineira.

A ordem de transferência para Natal – segundo insinuações surgidas no período subseqüente à eclosão do movimento revolucionário de 1930 – partira do Governo do Estado, ainda na véspera.

Fato concreto, imaculado de dúvidas, é que a transferência em discussão foi efetivamente autorizada.

Entre Mossoró e Açu, no Sítio Lagoa Cerrada, os bandoleiros encontraram a morte. Foram fuzilados.

Não se chegou, à época, a ser apresentada à sociedade civil versão verossímil para o caso.

Durante o governo revolucionário de 1930, entretanto, foi aberto Inquérito para apurar os extermínios de criminosos, inclusive cangaceiros. O Tenente Abdon Nunes – não se sabe a que pretexto – chamou para si toda a culpa pelos assassinatos. Isentou o Governo do Estado de qualquer responsabilidade. Durante interrogatório, disse, textualmente: ‘Não recebi ordens de ninguém. E diga ao Chefe de Polícia que tive pena de não ter podido matar os outros’[7].

No Ceará a imprensa reagiu à chacina, em tudo e por tudo realizada nos moldes utilizados para a morte de Jararaca, Bronzeado e Mormaço, comandada pelo Sargento José Antônio do Nascimento, do cangaceiro Lua Branca e quatro comparsas, remanescentes do bando de João Vinte e Dois[8]:

“Os grandes responsáveis são os poderosos e tranqüilos mandantes dessas tropelias dos cangaceiros. São vendedores de armas e munições. São os compradores solertes dos produtos de cada assalto”.

O que nos diz Fenelon Almeida[9] acerca da morte de Jararaca?

Não obstante as dores fortes que sentia, Jararaca dava sinais evidentes de que iria sarar dos graves ferimentos recebidos. Vinha aos poucos melhorando. Seu organismo resistia de maneira surpreendente. E ISSO PASSOU A PREOCUPAR AS AUTORIDADES POLICIAIS DE MOSSORÓ. POR TEMOR ou por simples espírito de vingança, preferiam que ele morresse de vez, sem apelação. Que desaparecesse de Mossoró. Não queriam mais tê-lo ali nem uma semana.

O TENENTE LAURENTINO DE MORAIS[10] TINHA IDO A NATAL, DE ONDE REGRESSOU NO DIA SEGUINTE (com quem teria estado ele?). A partir de sexta-feira, dia 17, começou a circular pela cidade a notícia de que o ainda temível cangaceiro seria transferido de Mossoró para Natal – uma informação lacônica, desacompanhada de qualquer comentário ou explicação da medida.

Sérgio Dantas[11], novamente:

Até hoje ignora-se de onde ou de quem partiu a ordem para o extermínio do cangaceiro[12].
                                            
Importante, para a compreensão da possibilidade desse pacto, é a leitura da carta publicada por Manoel Alves do Nascimento[13], enviada por Paulo Fernandes, filho de Rodolfo Fernandes, em 15 de setembro de 1963, ao escritor Nertan Macedo, que pela sua importância vai transcrita integralmente, sem ser editada:

Limo. Sr.
Nertan Macedo
Rio de Janeiro (GB)

Na qualidade de filho de Rodolfo Fernandes de Oliveira Martins, prefeito de Mossoró, RN, por ocasião do assalto de Lampião àquela cidade, tendo deparado à página 213, linhas 20/21 do seu livro ‘Capitão Virgulino Ferreira Lampião’ com uma afirmativa que não corresponde a verdade, cumpro o dever de refutá-lo e solicitar de V. SA. as providências que o caso requer.

De V. SA. referindo-se à Jararaca, que ‘de madrugada, um conselho local, reunindo elementos de maior destaque da municipalidade, decidiu pela morte do bandido’.

Jamais ouvira falar em tal reunião nem também ouvira imputar a elementos da municipalidade a decisão de eliminar o bandido Jararaca.

Quando ocorreu o assalto de Lampião (13 de junho de 1927), encontrava-me no Rio cursando o 6° ano de medicina. Menos de quatro meses depois meu pai veio a esta capital e aqui faleceu a 10 de outubro, tendo conversado comigo sobre os dramáticos acontecimentos e não me declarou entretanto ter mandado matar Jararaca.

Posteriormente ouvi pessoas de minha família e também estranhos sobre os referidos acontecimentos e nunca ouvi qualquer coisa que induzisse pelo menos a um indício de verdade na afirmação de V. SA.

Deliberei entretanto em viajar recentemente até Mossoró para investigar melhor o assunto. Falei a várias pessoas, homens honrados, alguns dos quais tomaram parte na defesa da cidade e de nossa residência e todos unanimemente repudiam a versão do seu livro.

Embora cumpra a V.SA. e não a mim provar o alegado. Apresso-me em aduzir alguns comentários que esclarecem o assunto. Vejamos alguns fatos e circunstâncias em que se desenrolaram os acontecimentos em exame.

1 – As forças policiais, sediadas em Mossoró, obedeciam ao comando do oficial Abdon Nunes[14];

2 – O Governador do Rio Grande do Norte, Doutor José Augusto Bezerra de Medeiros e o seu chefe de polícia, Desembargador Manoel Benício de Melo, estavam à época, em franco dissídio com o prefeito de Mossoró (meu pai);

3 – Segundo consta, as autoridades estaduais não acreditavam que Lampião atacaria Mossoró e por isso não enviaram, com antecedência, forças suficientes para defesa da cidade;

4 – O Sr. Mirabeau Melo, chefe da repartição do telégrafo em Mossoró era irmão do chefe de polícia, e atuava como informante das coisas locais e porta voz do governo era um medíocre intrigante, inadequado para a missão que o destino lhe reservou pois tanto o governador do estado e seu chefe de polícia como o prefeito de Mossoró eram homens de bem e do mesmo partido político de modo só se compreende o dissídio entre eles em torno do problema de interesse público em virtude da ação maléfica de mexeriqueiros;

5 – As advertências à população e providências tomadas por meu pai eram exploradas pela oposição até com o ridículo. Chamavam-no por exemplo de velho medroso por se preocupar com um possível ataque de Lampião à cidade;

6 – Quando porém se tornou certo o ataque e o pânico dominou a cidade nossa casa foi procurada como refúgio por alguns desses detratores. Segundo relato que me fez nosso motorista, José de Paula, já falecido, que assistiu à cena, um comerciante de alta projecção local, José Martins Fernandes ajoelhou-se aos pés de meu pai e lhe pediu perdão da campanha que movera e lá ficou, em nossa casa, perdoado, inerte e inútil, durante toda a luta;

7 – O telegráfo nem sempre foi voraz[15]. Recordo-me ainda de ter lido os telegramas vindos de Mossoró e retransmitidos de Natal para Juvenal Lamartine, governador eleito para o Rio Grande do Norte por eles ficava-se com a impressão de que Lampião dominará a cidade;

8 – Jararaca, preso, recusou o alimento que lhe fornecia o xadrez e declarou que só comeria comida da casa do prefeito. Minha mãe enviou leite para sua alimentação. Houve censura e comentários por essa atitude.

9 – Boatos, intrigas políticas dominavam o ambiente apesar de que houvesse o real perigo de um novo assalto;

10 – Corriam porém ameaças de que o governo cogitava de desarmar os civis que eram afeiçoados a meu pai embora houvessem defendido à cidade e fossem todos homens pacatos em Mossoró não havia nem nunca houve o hábito do rifle;

11 – Jararaca dissera ou mandara dizer ao meu pai que desejava falar-lhe em particular. Até hoje não se sabe o que ele pretendia dizer pois foi massacrado na noite que seguiu;

12 – Pessoas fidedignas que conviveram com meu pai disseram-me agora que ele na intimidade reprovou a morte de Jararaca;

13 - Alega-se que se meu pai tivesse tido conhecimento prévio do massacre projetado teria se apressado em ir ao encontro solicitado por Jararaca pois no consenso de muitos, este desejava, no mínimo, revelar onde estava escondido seu dinheiro ou fazer qualquer revelação a respeito de Lampião, por vingança, pois ele não acudiu aos seus rogos para que o levasse ferido, deixando à margem de um desvio ferroviário rente aos fundos de nossa casa;

14 – Ainda está vivo um dos soldados da escolta que abateu Jararaca. É o Sr. João Arcanjo, hoje funcionário da prefeitura de Mossoró. Não o ouvi por escrúpulo. Deve ter sido um mero instrumento a cumprir ordens de algum superior sem nada saber nem poder se insurgir contra as mesmas;

15 – Sabe-se ainda que o Sr. Amaro Silva, agrônomo, funcionário do Ministério da Agricultura, cortou as orelhas de Jararaca[16] e levou-as para Natal para exibi-las às autoridades.

As circunstâncias e fatos narrados induzem a conclusão de ser pura invencionice afirmativa de que ‘um conselho local, reunindo elementos de maior destaque da municipalidade, decidiu pela morte do bandido.’

Os fatos devem ter ocorrido de outro modo.

Ouvi a respeito do Dr. José Augusto Bezerra de Medeiros e ele me respondeu que o Jararaca morrera na luta.

É cedo para esclarecer o caso. Ainda estão vivas pessoas envolvidas direta e indiretamente no assunto. Há ainda descendentes próximos de outros.

Seria tarefa subversiva agitar agora essa questão. Meu objetivo é apurar os fatos, senão a bem da verdade e da memória de meu pai refutar a imputação que indiretamente lhe foi feita.

Assim como é importante entender os “bastidores” da morte de Chico Pereira, através da leitura de Adauto Guerra Filho[17]:

Apesar de ser uma história longa e complexa, não é difícil entender a razão de tanta contradição. Em primeiro lugar, levemos em consideração uma informação do livro ‘Vingança, Não’ de F. Pereira Nóbrega, o qual diz que os dois Presidentes de Província, Dr. Juvenal Lamartine, então Presidente do Rio Grande do Norte, e João Suassuna, Presidente da Paraíba, fizeram um pacto de morte no dia 18.08.1928. Isto assim se explica: O Presidente da Paraíba não queria entrar em choque com o recém-eleito Cel. João Pessoa, que dera a Chico garantia de liberdade. Então idealizou uma forma de condená-lo fora do Estado. Ele bem sabia que cangaceiro no Rio Grande do Norte tinha vida curta e, por isso, oportunamente se aproveitou do assalto à casa do Cel. Quincó para idealizar uma forma de incriminar Chico Pereira[18]. Isto aconteceria ao induzir o bandido principal, Antônio Jerônimo, conhecido por Antônio Chofer, a dizer que Chico estava entre eles. Pessoas maliciosas vão mais além, afirmando que o assalto fora programado, tanto é que, logo após a ida de Chico para a detenção, em Natal, Antônio Chofer caiu no desinteresse da Justiça, inclusive sendo solto e ficando no anonimato.

Outro fato curioso que nos induz a pensar que o assalto foi programado é o excessivo interesse de Antônio Suassuna – o Tonho, sobrinho do Presidente da Paraíba, pela ‘liberdade’ de Chico Pereira. Ele próprio hospedou Chico em sua casa, na Fazenda Cajueiro, no município de Catolé do Rocha. Ali chegando, Chico foi alvo de sua atenção, havendo Tonho servido de mediador entre ele e João Pessoa, ao levá-lo à presença do Presidente eleito. Naquela ocasião, Tonho convenceu Chico de que, após o júri em Princesa, nada mais lhe aconteceria. Este fato, aliás, o demoveu da idéia de se retirar para Goiás.

Em Acari, Chico Pereira, sentindo o acre da traição, escreveu a Tonho, fazendo paralelos entre a cadeia e a Fazenda Cajueiro e, na doce ilusão de que um dia seria solto, dizia ao traidor que após ficar livre, não hesitaria em matá-lo.

Ainda com referência ao fato, o Sr. Abdias Pereira Dantas, numa conversa com o autor em Nazarezinho, no dia 04.01.1985, assim falou:

“Só me queixo da morte do finado Chico, de João Suassuna. Depois que Chico morreu, ele mandou me chamar para conversar. Respondi que, com um bandido da qualidade dele, não queria conversa. Quem fez o assalto à casa do Cel. Quincó foi o sobrinho dele”.

Ainda para tornar mais clara a contradição da Justiça, o Pe. Francisco Pereira Nóbrega falou ao autor em João Pessoa, em 10.01.1985, que, no momento do assalto, seu pai se encontrava no município de Pombal. Ele é também dos que acreditam na hipótese do assalto ter sido programado naquele lugar.

Pelo menos uma coisa não se põe em dúvida: a morte de Chico estava programada. Isto está confirmado no depoimento de um soldado sobrevivente que reproduziu um diálogo entre Juvenal Lamartine e o Ten. Joaquim de Moura. O Presidente solicitou a presença do Tenente em seu gabinete e a ele assim se dirigiu:

- É verdade que aquele cangaceiro da Paraíba vai voltar para Acari?

- É, sim.

- Olhe! Não quero esse homem vivo.

Essa determinação, a priori, até dispensa pesquisadores de fazer exames mais apurados sobre notas de jornais diversos, tais como:

Correio de Campina – 17.12.1928. ‘Teria sido Chico Pereira vitimado mesmo de um desastre de carro? Pessoas residentes no interior do Estado (Rio Grande do Norte) põem dúvida à afirmação. O Presidente potiguar é acusado de mandar fuzilar sumariamente os sertanejos acusados’ (Livro “Vingança, Não”, pág. 254).

Diário da Manhã, de Recife (PE) – 02.11.1928. “Chico Pereira, preso há pouco, ao ser transportado para a cidade de Acari, onde devia ser julgado, foi morto de ordem superior pelos policiais que o conduziam. Alegou-se que o carro que o conduzia capotou, verificando-se terrível desastre.” (Livro “Vingança, Não”, pág. 254).

Continua, mais a frente, Adauto Guerra Filho:

O Sr. José Pereira da Costa, cidadão de Ouro Branco, tabelião da cidade e curioso das histórias da região, assim detalhou o fato, em 09.07.1984:

“Chico Pereira chegou preso a Santa Luzia na companhia do Ten. Manoel Arruda e alguns soldados. O Ten. Francisco Honorato, de Serra Negra do Norte, foi indicado para recebê-lo. Chico vinha de paletó e gravata e isso provocou censura da parte do Tenente:

- Como se conduz um bandido de paletó e gravata? Isso é um cachorro de fila.

Em seguida, com arrebates, tirou o paletó e a gravata de Chico e autorizou os soldados a lhe colocarem as algemas. O Ten. Francisco Honorato esperava que o matador de Chico fosse ele. Porém a ordem do governo veio para o Ten. Joaquim de Moura. Ele ficou revoltado”.

Quem matou Chico Pereira: João Suassuna e Juvenal Lamartine? Teria sido Aproniano, irmão de Chico Pereira, quem assassinara João Suassuna no Rio de Janeiro, contratado pela família de João Pessoa ou unicamente para vingar Chico Pereira? Corre essa lenda ou história no Sertão. Talvez não se saiba nunca a verdade. A morte de Chico Pereira é a prova do Pacto dos Governadores?

Raimundo Nonato como que referenda essa tese[19]:

Em longo depoimento constante de publicação oficial (A República de 22-10-1930) por determinação ‘post’-revolução do Chefe de Polícia, João Café Filho, e prestado perante o 1º Juiz Distrital de Natal, D. Arnaldo Neto, declarou o Capitão Moura todos os pormenores do plano delegado para a morte de Chico Pereira, em 29-10-1930[20], no transporte do preso para julgamento, no Acari, de suposto processo.

E publica também, em sua obra, a defesa de Juvenal Lamartine[21]:

Quando morreram[22] os bandidos de “Lampião”, no município de Mossoró, e Chico Pereira[23], num acidente de automóvel, no município de Currais Novos, o chefe de Polícia, de acordo comigo, mandou proceder ao inquérito pelo Delegado especial, a fim de que a verdade fosse apurada com rigor[24].

Vitoriosa a revolução, foi aberto novo inquérito a fim de ser processado o presidente do Estado, o chefe de polícia e os oficiais e soldados como responsáveis pelas mortes dos facínoras. A medida deve ser completada pela ereção de um monumento comemorativo das façanhas desses bandidos atacando cidades e fazendeiros honrados. É preciso glorificar o crime e punir os que defendem a propriedade, a vida e a honra ameaçadas por salteadores perigosíssimos[25].

Mesmo assim Raimundo Nonato chega a ser irônico quando aborda o episódio da morte de Mormaço e Bronzeado[26]:

De todos, “Mormaço” foi o bandoleiro que prestou declarações mais importantes, tendo dado nada menos que quatro depoimentos: em Crato, CE., a Pau dos Ferros, Martins e Mossoró, RGN. Em todas as referências e as acusações são mais ou menos semelhantes.

Juntamente com “Bronzeado”[27] e mais dois presos de justiça, que se encontravam na cadeia de Mossoró, foi levado para a estrada de Natal e morto com os outros. Do ocorrido há um processo, onde se fez prova de qualquer forma, que um dos bandidos pegou um fuzil, atirou nos companheiros, e depois, suicidou-se com a mesma arma...

Gutemberg Costa[28] noticia a reação do Tenente Abdon Nunes ao inquérito contra si aberto como conseqüência da execução de Jararaca:

Dois anos e meio depois da morte de Jararaca em Mossoró, o capitão Abdon Nunes de Carvalho, avocou para si toda a responsabilidade do episódio. Assim, o processo tão desejado, contra os ex-governadores José Augusto e Juvenal Lamartine não teve curso. Por causa disso a minúscula facção política de oposição (daquela época) fez violenta carga, pela imprensa contra o Governo, de acordo com comentário de Raul Fernandes na sua obra sobre o assunto, citada neste capítulo.

Houve ou não um pacto entre os governadores para a eliminação física dos cangaceiros, sem que lhes fosse dado o direito de responderem processo ante a Justiça?



[1] “GUERREIROS DO SOL”; Massangana Editora; A Girafa Editora Ltda. ; Segunda edição; 2004; São Paulo; SP.

[2] O anterior fora em 15 de dezembro de 1922.

[3] 1926.

[4] Benício Filho era Chefe de Polícia do Governador José Augusto Bezerra de Medeiros e irmão do Chefe dos Correios e Telégrafos de Mossoró, este acusado por Paulo Fernandes, ex-Prefeito de Mossoró e filho de Rodolpho Fernandes, de  fomentar o afastamento de seu pai com o Governador do Estado que era seu correligionário político.
 
[5] “LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE”; DANTAS, Sérgio Augusto de Souza; Cartgraf – Gráfica Editora; 2005; Natal; Rn.

[6] Terá sido armação? Por que esse preso foi recambiado para Apodi? Talvez tenha sido seu prêmio, caso contrário teria o mesmo fim dos outros presos comuns. Observe-se a rapidez com que a polícia agiu.
[7] Sérgio Dantas informa que a afirmação está em SUASSUNA e MARIZ, 2002, p. 236.

[8] “LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE”; DANTAS, Sérgio Augusto de Souza; Cartgraf – Gráfica Editora; 2005; Natal; Rn.

[9] “JARARACA: O CANGACEIRO QUE VIROU SANTO; ALMEIDA, Fenelon; Guararapes; Recife, Pe; 1981.

[10] Clóvis Marcelo de Araújo que se encontrava de guarda no Presídio onde estava Jararaca, afirmou a Raimundo Soares de Brito: “A escolta era composta do Tenente Laurentino de Morais, então Delegado e Comandante do destacamento; Tenente Abdon Nunes; Sargento Pedro Silvio de Morais; um Sargento do destacamento de Macau, cujo nome não recordo; Cabo Manoel de Tal e os Soldados Militão, Paulo e João Arcanjo (GURGEL, Antônio e BRITO, Raimundo Soares de; “NAS GARRAS DE LAMPIÃO”; Fundação Guimarães Duque; Fundação Vingt-Un Rosado; Coleção Mossoroense; Volume 1513; 2ª. Edição.

[11] “LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE”; DANTAS, Sérgio Augusto de Souza; Cartgraf – GRÁFICA EDITORA; 2005; Natal; Rn.

[12] Jararaca.
[13] “POLÍGONO – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ESTUDOS DO CANGAÇO – TOMO I – ANO I - Coleção Mossoroense; Série “C”; Volume 963; Co-edição ETFRN/UNED; Mossoró; 1997.

[14] Não era o Tenente Laurentino?

[15] Deve ser “veraz”.
[16] Na realidade as de Colchete. Segundo entrevista feira por Ilná Rosado com Jerônimo Lahyre de Melo Rosado, Amaro Silva foi até o Sítio “Canto”, onde estava sua mãe Dna. Marola, levando uma orelha de Colchete. Botaram-na em uma lata e esta dentro de outra e enterraram em baixo de uma árvore perto da casa que ficava próximo da porteira. Nunca mais a encontraram.
[17] “O SERIDÓ NA MEMÓRIA DE SEU POVO”; Julho de 2001; Editora: Departamento Estadual de Imprensa; Natal, Rn.

[18] José Ribamar Diógenes, filho de Antístenes Diógenes, este proprietário da Fazenda “Tombador”, entre Rodolfo Fernandes, Itaú e Pereiro, me contou que seu pai acoitou Chico Pereira. Informou, inclusive, que Chico Pereira casou-se com sua esposa por procuração através de um irmão seu, nessa fazenda. E observa que Chico Pereira era conhecido, no “Tombador”, por João Estrela.
[19] “LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; 4a. edição; Coleção Mossoroense; Série C; Volume CDVIII; 1989.

[20] A data não bate com a da publicação do jornal “A República”.

[21] “LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; NONATO, Raimundo; COLEÇÃO MOSSOROENSE, SÉRIE “C”, VOLUME CDVIII; 1989; 3ª. Edição; 1965; EDITORA PONGETTI; Rio de Janeiro; Brasil.

[22] Juvenal oculta que os cangaceiros foram mortos, não morreram.

[23] Idem.

[24] Compare-se com o depoimento do Capitão Moura, citado acima, por Raimundo Nonato.

[25] Eis a debochada defesa de Juvenal quanto à morte de Chico Pereira.

[26] “LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; NONATO, Raimundo; Coleção Mossoroense, série “C”, volume CDVIII; 1989; 3ª. Edição; 1965; editora Pongetti; Rio de Janeiro; Brasil.

[27] “Além de Jararaca, mais outros cangaceiros envolvidos com os ataques a Apodi e Mossoró foram, de maneira sumária e com os mesmos requintes de perversidade, justiçados pela Polícia sob o mesmo álibi: Transferência para o Presídio de Natal. Bronzeado e Mormaço (...) foram eliminados juntamente com Valdemar Ramos e Tomaz dos Santos, dois presos de justiça que se encontravam detidos e aguardando julgamento” (GURGEL, Antônio e BRITO, Raimundo Soares de; “NAS GARRAS DE LAMPIÃO”; Fundação Guimarães Duque; Fundação Vingt-Un Rosado; Coleção Mossoroense; Volume 1513; 2ª. Edição.). E o Juiz e o Promotor de Mossoró da época: nada!

[28] “GOTA DE SANGUE NUM MAR DE LAMA”; COSTA, Gutemberg; Gráfica Santa Maria; Natal, Rn, edição do Autor.

* Excerto do livro "Massilon", do autor do texto.