quinta-feira, 17 de novembro de 2016

É PRECISO RESPEITO AO SERVIÇO E SERVIDOR PÚBLICO

* Honório de Medeiros


Há uma nítida distinção, em termos ontológicos, entre serviço público e iniciativa privada.

No primeiro caso, o paradigma que norteia a ação pública (iniciativa pública) é cumprir as expectativas da Sociedade, definidas constitucionalmente; no segundo, a ação privada é impulsionada pelo objetivo do lucro.

A própria Constituição Federal, embora estabeleça como princípio constitucional a livre iniciativa e o modelo capitalista de organização da economia, ressalva o caráter social da propriedade. Essa característica, segundo a melhor hermenêutica, referenda o primado de que o público está acima do privado, como o corrobora, também, a própria legislação infraconstitucional: assim são as previsões de intervenção do Estado na Ordem Econômica sem que, entretanto, se anatematize o lucro.

Quando tratamos de ações voltadas para a Sociedade, do primado do público sobre o privado, temos que convir que dada a especificidade dessa demanda de natureza essencialmente complexa, não somente quanto ao aspecto ético, político e social, mas, também, quanto a quantidade (a Sociedade) e a qualidade, elas necessariamente são, no mínimo, de médio prazo, não obstante as demandas emergenciais, enquanto as ações privadas, por serem pautadas pelo lucro são, essencialmente, instáveis e voláteis.

Se a ação pública se desenvolve, o mais das vezes, a médio e longo prazo, torna-se fundamental a preservação da sua memória, ou seja, qual o recurso humano nela envolvida e a consequente experiência advinda no trato com a questão trabalhada. Sem a preservação dessa memória não é possível a continuidade das políticas públicas, e a consequência é o comprometimento das ações estatais.

E somente é possível a preservação da memória aludida com o respeito ao serviço público, ao servidor público e a sua carreira diferenciada, assegurando-se-lhe o direito de ser credor do investimento de Estado em sua vida profissional, através de aposentadoria distinta, remuneração razoável e estabilidade na carreira. Trocando em miúdos: o serviço e o servidor público devem ser um investimento do Estado, dadas as peculiaridades do exercício da função pública, que exige sacrifícios indiscutíveis.

Por quê essas políticas públicas – aquelas consistentes – demandam tempo para serem implementada? Porque envolvem parcela significativa da Sociedade durante um longo tempo. É o caso, por exemplo, da erradicação do analfabetismo. As ações públicas que ao longo do tempo efetivamente originaram melhoria na qualidade de vida da Sociedade foram desenvolvidas sob o prisma da permanência, para além dos humores político-partidários.

Podemos comprovar essa afirmação analisando o segmento da Saúde e Educação em países comprovadamente desenvolvidos. Acresça-se outra assertiva: o desenvolvimento – não o econômico, mas, sim, o da qualidade de vida - desses países foi decorrente de políticas públicas, nunca privadas (lembremos a Escandinávia).

Mesmo no Brasil, onde faltam políticas de Estado, embora abunde as de Governo, muitos avanços foram obtidos graças a políticas públicas permanentes. Na área de saúde, citemos, o Brasil é referência mundial não somente no que concerne à erradicação definitiva de algumas moléstias como, também, em relação ao combate preventivo à AIDS.

Parece óbvio que, no caso do Brasil, os parâmetros estabelecidos pelo Consenso de Washington que originaram o cânone neoliberal encontraram solo fértil na tradicional ojeriza da Sociedade à utilização do serviço público e burocracia como instrumentos de obtenção e manutenção de privilégios de classe. É certo, também, que faz parte da cultura brasileira – embora a raiz possa ser rastreada até Portugal, como lembra Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder” – a construção dessa histórica instrumentalização do aparelho estatal por parte do estamento burocrático.

É certo, ainda, que o capital internacional considera a presença do Estado na economia como um obstáculo à sua desenvoltura, bem como anatematiza a concepção de desenvolvimento econômico por ele impulsionado. A conclusão, portanto, errada, do senso comum e das elites atrasadas, é a crença de que o servidor e o serviço público, são alavancas do atraso.

Entretanto, a verdade é bem outra. Podemos desconsiderar o diagnóstico apresentado pelo senso comum da sociedade e teóricos do neoliberalismo em relação ao serviço público brasileiro em seus fundamentos; podemos e devemos criticar veementemente a causa por eles encontrada dos descaminhos específicos do Brasil. O Estado não é um mal em si mesmo. Com efeito, condenar o Estado, o serviço e o servidor público na sua totalidade, pelos desacertos da elite governamental, seria como propor igual condenação do Capital pelas falências e concordatas inerentes à iniciativa privada.

Contra esse ideário quase consensual que se tornou lugar comum no Ocidente, e que nos legou a permanente fragilidade de nossas instituições, e a favor da compreensão do papel fundamental do serviço e servidor público na obtenção do bem-estar social almejado pela Sociedade, argumenta Jânio de Freitas, em seu artigo intitulado “O Bolso e a Vida”, publicado na Folha de São Paulo de 19 de janeiro de 2003: “A iniciativa privada não faz um país, no sentido de vida social e econômica organizada. Só o serviço público pode fazê-lo.

Os estudos sobre a recuperação da Europa, da devastação do pós-guerra ao bem-estar de hoje, sem igual no mudo, demonstram que o êxito não se explica pelo Plano Marshall, mas pelo papel decisivo do serviço público e pela função atribuída ao Estado naqueles novos ou restaurados regimes democráticos”. 

Não levar em consideração tal princípio pode nos levar a passarmos por cima do legado histórico de políticas públicas que foram extremamente úteis à Sociedade brasileira e que, com certeza, não poderiam ser implementadas pela iniciativa privada: um exemplo banal é a informatização das eleições no Brasil. As políticas públicas foram possíveis graças à preservação, governo após governo, qualquer que tivesse sido seu matiz, da memória das instituições. 

Esta somente é possível quando o servidor público tem respeitada sua diferença com o privado e a exclusividade de suas atribuições, tal como não trabalhar em nada além daquilo para o qual foi investido (seu cargo) – o que seria um desvio de função -, e que é uma garantia de Estado.

Por fim, da mesma forma como deve ter acontecido ao longo do processo histórico pelo qual passaram países altamente desenvolvidos e nos quais a participação do Estado foi fundamental - lembremo-nos da Dinamarca, Suécia, Canadá, França, Noruega, Japão -, para que o serviço e o servidor público sejam devidamente respeitados, necessário é combater a burocracia, a corrupção, e a ineficiência. Em o fazendo, asseguramos passaporte para um futuro melhor, capitaneado por um Estado que reflita os anseios da Sociedade.

Pois, afinal, o Estado não é um mal em si mesmo.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

A NOITE E OS MOSQUITOS

* Honório de Medeiros

Fui visitar Seu Antônio de Luzia. 

João, seu filho, João de Antônio de Luzia, a quem eu encontrei, antes, na Pedra do Mercado, me preveniu: "tá falando muito pouco e escutando demais."

"Por que?"

"Sei não. Eu pergunto o que é e ele, sentado naquela cadeira de balanço, estira a mão para cima e sacode os dedos como se estivesse espantando mosca."

Seu Antônio estava lá no mesmo lugarzinho de sempre, na calçadinha de sua casa de tijolos crus, olhando o tempo, cumprimentando os passantes com um balançar de cabeça para cima e para baixo.

"Boa tarde, Seu Antônio, como vão as cousas?".

"Boa tarde!"

E eu me danei a falar e ele só escutando, olhando e calando.

Lá para as tantas, perguntei: "o Senhor perdeu o gosto de falar?"

Ele ficou calado um tempão, pigarreou e disse: "tem muita gente sabendo de tudo, falando muito; eu, quanto mais vivo, menos sei das coisas." 

Parou, pigarreou, tomou um gole de café, cuspiu no chão de barro da rua do Sítio Canto, e rematou: "O pouco que sei faço com as mãos: cortar um capim, debulhar um feijão, pegar um balde d'água no poço..." João só olhava.

Mais não disse.

Ficamos os dois, cismarentos, enquanto a tarde ia e a noite chegava.

A noite e os mosquitos.

domingo, 13 de novembro de 2016

TRAGÉDIA, FARSA E VICE-VERSA

* François Silvestre
Na Coluna Plural, do Novo Jornal. 
Todas as ciências são de origem natural. Menos uma. Sim, porque há uma ciência de origem cultural. Isto é, criada pela ação humana. E mesmo assim essa criação humana não ocorre de forma controlada ou consciente. É a História.
Não se confunda História com historiografia. A História é o resultado da ocorrência das relações humanas; que vão desde os desdobramentos das conquistas naturais, sociais, políticas, de conhecimento, de arte e do pensamento. A historiografia é uma disciplina histórica, narradora, limitada pelo ponto de observação do historiador. A História produz o fato. A historiografia narra ou interpreta o fato histórico.
Possuir leis e disciplinas é a marca configuradora das ciências. A numismática, a heráldica e a historiografia são algumas das disciplinas da História. A imutabilidade do fato ocorrido é uma lei da ciência histórica.
Na História, o fato ocorrido é único e imutável. Na historiografia, um mesmo fato pode acolher várias versões. Dizia Thomaz de Aquino que “contra o fato ocorrido nem a interferência de Deus tem eficácia”.
O mais que se pode fazer contra o fato ocorrido é conjecturar. Imaginar ou supor consequências diferentes caso o fato houvesse sido outro e não o que realmente aconteceu.
Exemplos de conjecturas? Se Lott houvesse vencido Jânio Quadros, em 1960, não teríamos tido uma Ditadura militar. Se JK houvesse sido eleito, em 1965, o Brasil seria outro país.
Hegel afirmou que fatos e personagens da História repetem-se em épocas diferentes. Marx, na abertura d’O 18 Brumário, confirma essa assertiva de Hegel, mas observa que na repetição, de fatos ou pessoas da História, esta se dá com o segundo fato ou personagem sendo a farsa do primeiro, que foi a tragédia.
A redemocratização advinda pelo fim da ditadura Vargas deu-se com sucessivos fatos trágicos. Dentre eles, o suicídio de Getúlio, a renúncia de Jânio, a deposição de Jango. Foi a tragédia.
A redemocratização nascida da negociação de milicos, pelegos, raposas e similares, é a farsa. Vivemos a farsa de hoje, que repete uma caricatura da tragédia de ontem.
Na tragédia, estabeleceu-se um governo provisório para preparar a democracia. Foi o Presidente do Supremo, José Linhares, que governou por três meses.
Na farsa, o governo provisório durou cinco anos. Sarney foi a farsa de Linhares. Collor, a farsa de Jânio. Temer é a farsa de Itamar Franco. Lula é a farsa de JK. Ninguém ainda quis ser a farsa de Getúlio.
O Congresso Nacional de 1964 foi vencido pela força dos tanques e pelo conluio do fascismo civil com os quartéis politizados. O de hoje é a quitanda das “leis”.
A farsa nem sempre é mais suave. A Ditadura de 64, farsa do Estado Novo, fez da tragédia uma imagem pífia. A farsa, neste caso, pariu a tragédia da farsa que somos. Té mais.

sábado, 12 de novembro de 2016

UM IDEAL DE CIVILIZAÇÃO

* Honório de Medeiros

"APRENDEMOS quando nos defrontamos com um problema, qualquer que seja ele." 


Que o ensino, no Brasil, é completamente ultrapassado, basta cada um de nós recordar seus tempos de estudante e a ênfase dada, em cada Escola ou Faculdade, ao primado da INFORMAÇÃO sobre o CONHECIMENTO.

Em texto publicado anteriormente dissemos qual a distinção entre SE INFORMAR OU SER INFORMADO e CONHECER (http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2012/09/aprender-aprender.html).

Pois bem, o ensino tal qual é praticado hoje, no Brasil, com esse viés de INFORMAR, é anterior à presença, no País, dos jesuítas. Melhor, é anterior à Alta Idade Média, onde o ensino ocorria por intermédio do estímulo ao debate, à discussão, como nos mostra Jacques Le Goff em “OS INTELECTUAIS NA IDADE MÉDIA”:

"Com base no comentário de texto, a LECTIO, análise em profundidade que parte da análise gramatical, a qual produz a letra (LITTERA), ergue-se a explicação lógica que fornece o sentido (SENSUS) e termina pela exegese que revela o contéudo da ciência e do pensamento (SENTENTIA).

Mas o comentário provoca a discussão. A dialética permite ultrapassar a compreensão do texto para ir aos problemas que levanta, faz com que o texto se apague diante da busca da verdade. Um extensa problemática substitui a exegese. De acordo com procedimentos próprios, a LECTIO se desenvolve em QUAESTIO. O intelectual universitátio nasce a partir do momento em que põe em questão o texto, que não é mais do que uma base, e então de passivo se torna ativo. O mestre deixa de ser um exegeta, torna-se um pensador. Dá suas soluções, cria. Sua conclusão da QUAESTIO, a DETERMINATIO, é a obra de seu pensamento."

A partir de 1599 a Companhia de Jesus colocou em vigor o famoso Ratio Studiorum, uma espécie de coletânea privada, que surgiu com a necessidade de unificar o procedimento pedagógico dos jesuítas diante da explosão do número de colégios confiados aos jesuítas.

O modelo jesuítico, presente desde o início da colonização do Brasil pelos portugueses, apresentava os passos fundamentais de uma aula: preleção do conteúdo pelo professor, levantamento de dúvidas dos alunos e exercícios para fixação, cabendo ao aluno a memorização para a prova.

Como se pode depreender falta, ao ensino, no Brasil de hoje, comparando com a época dos portugueses, o estímulo ao levantamento de dúvidas, à crítica, por parte dos alunos. As aulas são preleções e nada mais...

Bachelard, comentando o cenário dos obstáculos epistemológicos à obtenção do conhecimento, em “A FORMAÇÃO DO ESPÍRITO CIENTÍFICO”, lembra que:

"No decurso de minha longa e variada carreira, nunca vi um educador mudar de método pedagógico. O educador não tem o SENSO DE FRACASSO justamente porque se acha um mestre. Quem ensina manda."

Como aprendemos quando nos defrontamos com um problema, qualquer que seja ele, as preleções, meras exposições, podem até nos INFORMAR, mas, com certeza, em nada contribuem, além de fomentar o tédio, para o nosso CONHECIMENTO.

Aliás, é bom que saibamos distinguir entre APRENDER e CONHECER.

Que nós conhecemos quando aprendemos, quanto a isso não há qualquer dúvida. Se aprendemos, conhecemos; se conhecemos, aprendemos. Entretanto, por uma questão pedagógica, costumamos distinguir o APRENDER do CONHECER no sentido de que, no primeiro caso, nos referimos, tecnicamente, a aquilo que resulta da busca deliberada de conhecer.

Aqui, o “deliberada” faz a diferença, na medida em que podemos CONHECER sem que tenhamos nos encaminhado para isso, bem como podemos CONHECER enquanto resultado desejado, buscado, e alcançado.

Não por outra razão, se eu digo “eu aprendo”, estou me referindo ao processo por intermédio do qual eu obtenho o conhecimento. Se eu digo “eu conheço”, significa que compreendo, entendo, apreendo aquilo acerca do qual me refiro.

Ou seja, o APRENDER decorre do processo de aprendizado, que é algo que se busca conscientemente. Nesse sentido, o CONHECER engloba o APRENDER, vez que o CONHECER tanto pode ocorrer desde que queiramos, quanto pode ocorrer mesmo que não o queiramos.

No sentido utilizado neste texto, todavia, não há distinção a ser feita. Aqui, APRENDER tem o sentido de CONHECER, e o conhecimento é alcançado, no sentido que se deve almejar nas escolas e universidades, na medida em que problematizamos a realidade, ou seja, enquanto alunos, criticamos sistematicamente, vigorosamente, a informação que nos é ofertada por intermédio das preleções dos professores.

Recordemos Popper, em “CONJECTURAS E REFUTAÇÕES”:

"- Cada problema surge da descoberta de que algo não está em ordem com nosso suposto conhecimento; ou examinado logicamente, da descoberta de uma contradição interna entre nosso suposto conhecimento e os fatos; ou, declarado talvez mais corretamente, da descoberta de uma contradição aparente entre nosso suposto conhecimento e os supostos fatos..”

E Bachelard, em obra acima mencionada”:

"No fundo, o ato de conhecer dá-se CONTRA um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos (...)"

Ainda:

"Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas."

E, por fim:

"Em resumo, o homem movido pelo espírito científico deseja saber, mas para, imediatamente, melhor questionar."

Portanto o estímulo a essa crítica sistemática e vigorosa, ao debate, à discussão, por parte dos alunos, às informações veiculadas pelos centros de saber deve ser um postulado fundamental do ensino que pretenda alcançar níveis superiores de excelência.

Na verdade, esse estímulo deveria se constituir numa verdadeira “PAIDÉIA”, um ideal de civilização, algo intrínseco à nossa Sociedade, principalmente hoje em dia, com a permanente ameaça à Liberdade por parte do Estado, dos seus aparelhos de controle, e daqueles que o usam em proveito próprio.

O limite ao Estado foi, é, e sempre será, a Sociedade livre e não-alienada.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

A "JUSTIÇA" DOS DEUSES

* Honório de Medeiros

Os fenômenos físicos, sua repetição, o padrão idêntico de suas conseqüências uma vez presentes as mesmas causas, quando apreendidos, são expressos através de uma fórmula – uma abstração – em uma linguagem sofisticada, a matemática.

Não precisamos descrever uma mesa para construir sua imagem ante nossos olhos; não é necessário fazê-lo em relação ao ferro que, colocado ao sabor do fogo, torna-se maleável e origina uma espada.

A certeza da inalterabilidade do fenômeno físico originou a consciência da causalidade pelo mecanismo da associação de idéias: não pode haver chuvas sem nuvens. E a expectativa de que todos os fenômenos ocorram da mesma forma, tanto na Grécia quanto no Egito, ontem como hoje, pertence ao mesmo gênero.

Esses fenômenos ocorreriam em virtude da “Justiça” dos deuses, entendida esta como “ordem”, “desígnio”, “determinação”, em um mundo na aurora de sua história.

Mas os deuses precisavam de intérpretes, de intermediários. Assim, foi fácil, para os mais espertos, fazer uso da confusão entre um fenômeno físico e um fenômeno que é conseqüência da vontade do homem, tal qual a proibição de matar, e se colocarem como representantes dos deuses na Terra. Ainda hoje há quem creia que os terremotos são punições divinas.

Hoje esses “deuses” foram substituídos por abstrações, como a “vontade do povo”, “moral média da Sociedade”, e assim por diante. Permanecem os intérpretes e intermediários. E os inocentes-úteis, aptos a serem manipulados. Ou seja, permanecem os lobos e as ovelhas.

Obviamente esse processo atende ao anseio da elite dirigente que o acentuava (e o havia criado).

Impressiona que se creia em Direito Natural quando qualquer conhecedor da história do Homem pode constatar, ao ler as primeiras compilações de leis escritas da humanidade, que sua existência se deve, única e exclusivamente, à necessidade de impor a ordem dos dirigentes.

Isso sem mencionar que, com certeza, na pré-história do Direito, apenas a necessidade de sobrevivência do clã originava a imposição de condutas, nunca algo abstrato quanto a idéia de Justiça.

Se se acreditar – é possível que alguém o faça – que esse ordenamento jurídico natural estaria à espera da maturidade da humanidade para ser colocado à sua disposição, bem, também se pode acreditar em Saci Pererê. 

terça-feira, 8 de novembro de 2016

A RETÓRICA DOS OBJETOS

* Honório de Medeiros

“Ser é perceber” (George Berkeley, 1685-1753).

Os objetos falam, por assim dizer.

Existe uma diferença entre “ver” e “enxergar”, sabemos disso[1]. Quando “vemos”, percebemos.

Os objetos, se percebidos, dizem-nos muito.

Imagine que você seja um advogado que foi introduzido na biblioteca de um potencial cliente para discutir com ele acerca de um futuro contrato de honorários. Você não se preparou para o encontro, seja porque não teve tempo, seja porque confia em sua capacidade de persuasão.

Ao aguardar a chegada do seu possível futuro cliente em sua (dele) biblioteca se admira com a organização reinante: livros limpos, organizados por tema e, nesses nichos, os autores postados em ordem alfabética.

A biblioteca condiz com o ambiente no qual ela repousa. Os outros objetos do espaço circundante também primam pela limpeza e organização: não há nada fora do lugar.

Esses objetos dizem que seu dono é alguém, portanto, organizado, até mesmo meticuloso.

Qual a probabilidade de você convencê-lo nesse encontro para o qual não está devidamente preparado com dados, documentos, legislação, jurisprudência e, até mesmo, doutrina?

Quase nenhuma.

Existe uma retórica dos objetos, chamemo-la assim, na falta de uma denominação melhor. O que se quer dizer é que “os objetos dizem, expressam algo”, dependendo de seu contexto. E é fundamental conhecê-la para quem se interessa em “decifrar” o meio com o qual interagimos.

Ramo da Retórica dos Objetos é a publicidade. Usa a técnica da Retórica dos Objetos para induzir associações de idéias que promovam o consumo.

Na Retórica dos Objetos é fundamental a noção de “estranhamento”. É por intermédio do “estranhamento” que decodificamos os objetos.

E o que seria o “estranhamento”? É algo difícil de conceituar, tal como a liberdade. Sabemos o que esta é, mas não sabemos dizer com propriedade o que ela é.

Em certo sentido “estranhamento” é uma desarmonia em relação ao padrão comum. Tal qual uma arte marcial, tornar-se hábil em captar essa desarmonia demanda contínuo exercitar-se até o limite do possível.

Recordemos o exemplo acima. Para alguém acostumado a perceber o que lhe cerca, a organização limpa e meticulosa da biblioteca do cliente chama a atenção por fugir do padrão comum. Ao conectar essa constatação com a que resulta do “ver” os restantes dos objetos espalhados pelo ambiente, torna-se possível fazer alguma inferência, ou elaborar alguma hipótese, para sermos mais precisos, acerca da personalidade do seu proprietário.

Em episódio bastante interessante da série norteamericana “The Mentalist”, agentes do FBI buscam, em uma sala, uma câmera de vídeo escondida. As outras já foram encontradas e estavam postadas em lugares óbvios. O personagem principal, Patrick Jane, ao ser introduzido na sala, observa que um determinado espelho estava colocado em uma altura um pouco acima do normal. Levanta-se o espelho e lá está a câmera procurada. Mas como essa câmera filmava através do espelho? Patrick sabia que os ilusionistas usam muito um tipo de espelho que permite a quem está por trás visualizar através dele. A noção de “estranhamento” permitiu a localização imediata da câmera procurada.

Em outro episódio, esse bastante conhecido na literatura policial, Sherlock Holmes chama a atenção de Dr. Watson para o cão da propriedade onde acontece a investigação. Dr. Watson retruca informando que o cão não latiu. Sherlock pondera, então: “por isso mesmo”.

Ou seja, Sherlock vivenciou, ali, essa sensação de estranhamento.

Um exemplo, pinçado da literatura, explica melhor a teoria acima:

"Enquanto se movimentavam pela pista, ele estudou o marido com olhos profissionais, de caçador tranquilo. Estava acostumado a fazê-lo: esposos, pais, irmãos, filhos, amantes das mulheres com quem dançava. Homens, enfim, acostumados a acompanhá-las com orgulho, arrogância, tédio, resignação e outros sentimentos igualmente masculinos. Havia muitas informações úteis nos alfinetes de gravata, nas correntes de relógio, nas cigarreiras e nos anéis, no volume das carteiras entreabertas diante dos garçons, na qualidade e no corte do paletó, nas listras de uma calça ou no brilhos dos sapatos. Até mesmo na forma de dar o nó na gravata. Tudo dera material que permitia a Max Costa estabelecer métodos e objetivos ao compasso da música; ou, dizendo de modo mais prosaico, passar de danças de salão a alternativas mais lucrativas." ("O Tango da Velha Guarda"; Arturo Pérez-Reverte).

[1] http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2011/11/ver-e-enxergar-acionam-regioes-diferentes-do-cerebro-diz-estudo.html

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

DE GRATIDÃO INTELECTUAL

* Honório de Medeiros

Tenho gratidão intelectual a dois grandes amigos, a quem considero os mais inteligentes de minha geração. 

Eduardo Jorge Maciel Pinheiro me presenteou, meados dos anos 70, com "A Sociedade Aberta e Seus Inimigos", de Sir Karl Raymund Popper.


Gilson Ricardo de Medeiros Pereira, logo depois, me iniciou na filosofia de Gaston Bachelard.


Ambos os autores atemporais. Enquanto houver civilização como conhecemos, eles serão referências.

Popper foi o último grande filósofo do século XX: matemático, músico, lógico, sociólogo, epistemólogo, cientista político. Bachelard, um homem diurno, a pensar a ciência, e noturno, a pensar a arte, com a intensidade de um gênio.

Gostaria de ser lembrado por alguns dos meus ex-alunos como alguém que lhes apresentou um autor ao qual se vincularam intelectualmente pelo resto dos seus dias.

Muita pretensão, claro, mas sonhar é livre e não custa nada.

Aos professores Eduardo Maciel e Gilson Pereira, minha gratidão.

domingo, 6 de novembro de 2016

CRÔNICA DE UM FATO ANUNCIADO

* Honório de Medeiros

Em 12 de novembro de 2014, fiz a seguinte publicação aqui, neste blog: 
http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2014/11/rn-de-pacto-social-e-reforma-de-estado.html

"Tendo em vista as informações que vão surgindo na mídia acerca da alarmante situação financeira do Estado, não enxergo outra alternativa, para o futuro Governador do Estado, a não ser liderar a construção de um novo Pacto Social no Rio Grande do Norte para alavancar a urgente, imprescindível, fundamental, Reforma do Estado.

Pacto Social, vez que todas as forças da Sociedade, representadas pelos poderes constituídos, precisam participar diretamente, sob a legítima liderança do futuro Governador do Estado, da elaboração de uma Carta de Princípios que nortearia a Reforma de Estado.

Reforma de Estado que permita a reconstrução do Rio Grande do Norte social, econômica e financeiramente, estabelecendo os parâmetros necessários a serem seguidos pelos poderes constituídos para assegurar o desenvolvimento do Estado.

Uma vez estabelecidos esses instrumentos fundantes da nova realidade política, social e econômica, todas as medidas necessárias a serem tomadas estarão naturalmente legitimadas e contarão com o apoio da Sociedade. 

É o que se espera de alguém que foi escolhido pelo povo para derrotar todas as forças políticas tradicionais do Estado." 

Em 3 de junho de 2015, voltei a abordar o tema do "pacto social":
http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2015/06/por-um-novo-pacto-social-para-o-rio.html

"O problema fundamental do Rn, hoje, é antes de tudo, antes do social, do político, de natureza orçamentária e financeira.

O Governo precisa de dinheiro e não tem de onde tirar. A entrada no Fundo Previdenciário prova isso. E a situação vai piorar, estamos beirando a recessão. Os repasses estão em queda livre. A arrecadação do Estado, com o declínio da atividade econômica, tende a diminuir lenta e 
inexoravelmente. As demandas dos servidores e da Sociedade tendem a crescer.

Se eu fosse o Governador Robinson convocaria os Poderes e a Sociedade para um novo Pacto Social.

Um pacto social no qual a renúncia e o trabalho de cada um, pensando no todo, fosse mais importante que qualquer demonstração de unilateralidade.

O Governador é o líder institucional apto a convocar e coordenar esse processo. Com os votos que recebeu, na situação em que isso aconteceu, é de se dizer, até mesmo, que deve assumir esse papel.

E com os pés firmemente fincados no presente, lançar as bases do futuro."

O resto, todos sabemos.

No mais é rezar. Esperar que chova. E esperar juízo nos homens.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

DA IRONIA

* Honório de Medeiros 


Não gosto de ironias.

Pressupõem uma superioridade inexistente.

Com os fracos é covardia; com os iguais, desrespeito; com os fortes, temeridade.

A auto-ironia é condescendência, algo perigoso: incompreensível para os ignorantes e brecha por onde entra o raciocínio dos inteligentes.

A polidez, que não se confunde com a gentileza, é bem mais correta e eficaz.

Não destrata e mantém a distância. 

terça-feira, 1 de novembro de 2016

ESCLARECENDO

* Honório de Medeiros
Ontem fiz um desabafo neste blog.
Basta ler "POR QUE NÃO NOS PAGA O ESTADO?"

Recebeu, meu texto, alguns comentários.

Um me chamou a atenção:

"Anônimo disse...Até onde se sabe, quem recebe no Banco do Brasil teve o depósito creditado no sábado. Quem recebe em outros bancos, principalmente devido à portabilidade, o sistema somente creditou na segunda feira, pois o ingresso do recurso só é processado em dias úteis. Visto que entrou no Banco do Brasil no sábado, somente na segunda servidores que recebem em outros bancos puderam ver os créditos em conta."

Pois bem, respondo:

Eu tenho conta no Banco do Brasil, onde recebo minha remuneração de Assessor Jurídico do Estado do Rio Grande Norte, e não tive o depósito creditado no sábado.

Minha remuneração foi creditada no dia 1º de novembro.

Como não posso conceber que tenha recebido um tratamento diferenciado, mantenho tudo quanto dito antes acerca da falta de respeito para com os servidores que passaram pela mesma situação.

O Governo precisa sair da bolha onde está alojado. Precisa ver e ouvir. E entender...

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

POR QUE NÃO NOS PAGA O ESTADO?

* Honório de Medeiros


Terminou o último dia do mês de outubro e eu ainda não recebi o restante da minha remuneração do mês de setembro, cujo pagamento o Governo prometeu para sexta-feira passada, dia 28.

Quase todos receberam tudo, na data acertada. Eu e outros não recebemos. Que eu saiba todos os assessores jurídicos do Estado receberam.

Eu, não.

Conheço pelo menos um professor da UERN que ainda não recebeu. Deve haver vários outros, professores ou não.

Busquei uma explicação para o fato. Disseram-me que a Secretaria de Planejamento não tinha enviado para o Banco do Brasil as ordens de pagamento.

Mas por que não enviou? Se não o fez na sexta-feira, por que não enviou no sábado, para que o pagamento saísse hoje, segunda? Muitas vezes assim foi feito.

Incompetência? Faltou dinheiro para nos pagar? Escolha seletiva?

Se faltou o dinheiro suficiente para completar o pagamento, por que o Governo não publicou alguma nota explicando o fato? Talvez fosse algo aceitável. O que não é aceitável é não nos dizer nada, tratar-nos como se não merecêssemos sequer a consideração de um aviso qualquer.

Pois não é correto, não é justo, não é certo que não saibamos como foi feita a escolha dos nossos nomes para sermos aqueles que não receberiam, na data aprazada, aquilo que é nosso.

Por qual motivo fulano recebeu na data convencionada, e nós não?

Mesmo que o pagamento saia amanhã, eu, particularmente, entendo que houve uma desfeita, e grande, conosco. 

Um mês de atraso. Uma crise que qualquer observador menos engajado na situação política e econômica do Brasil poderia prever, dois anos atrás. Basta que se leia o noticiário da época.

E nada foi feito.

E aqui estamos nós, pagando pelo que não devemos.

Por que Governador?  

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

O TEMPO NÃO PARA

* Honório de Medeiros

Hoje, mais que nunca, muitos recusam a aparência de sua própria idade.

Querem, à fina força, parecer jovens. 

Pintam os cabelos, lambuzam-se com cremes, fazem plásticas, entregam-se às academias, põem aparelhos nos dentes.

Fazem a alegria de cabeleireiros, esteticistas, cirurgiões-plásticos, donos de academias, dentistas... 

Não se vêem como de fato estão – simulacros.

Não se percebem como de fato são - inocentes úteis.

Cazuza estava certo: "Tuas ideias não correspondem aos fatos / O tempo não para".

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

A SOLIDÃO DOS IDOSOS



* Honório de Medeiros                   

Todos os dias quando caminho vejo sentado, em uma pequena praça, um idoso solitário a olhar para o tempo.

Às vezes, ao seu lado, fica sua acompanhante, uma bela moça que o trás e o leva de volta, sempre em silêncio.

Breve restará, aos que não são jovens, esse silêncio eloquente, o murmúrio dos iguais, a palavra paga, os fragmentos empoeirados da memória.

Ou, quem sabe, apenas saber ouvir, se houver quem lhes queira falar.

domingo, 16 de outubro de 2016

DE ALGO SÓRDIDO

* Honório de Medeiros

Ao longo dos séculos o avanço do processo civilizatório se caracteriza, dentre outras conquistas, por rechaçarmos a sordidez.

Falo em reagirmos, por exemplo, ao preconceito, algo sórdido em si mesmo. Claro que não todos. Mas o processo é assim mesmo, um vir-a-ser pleno de obstáculos.

Para não deixar dúvida: os dicionários dizem que sordidez é grande sujeira, imundície. E, por metáfora, ambiente de degeneração moral.

Não tenho muita esperança em sermos, individualmente, lúcidos quanto a perceber e denunciar a sordidez, em todos seus matizes, tão logo a identifiquemos.

Às vezes estamos de tal formas submersos na lama que somos incapazes de nos dar conta daquilo que acontece ao nosso lado. Somos ou estamos alienados, por assim dizer.

Ou, por outra, sabemos que algo está acontecendo, pensamos que é sórdido, mas nos dizemos que não é conosco, é algo muito distante, passageiro, há outras questões mais importantes com as quais se preocupar, e assim por diante...

Então, é tarde demais.

Por exemplo: que tipo de "música" nossos adolescentes estão escutando, dançando, cantando? 

Prepare-se, você terá uma surpresa. Um grande sucesso entre eles é de autoria da Mc Carol. Esse "Mc" que antecede o nome da funkeira carioca, sim, nós estamos falando de funk, significa "mestre de cerimônia", e é como se fosse um título nobiliárquico.

Pois bem, e continuando: um dos grandes sucessos do funk nacional, é da autoria de Mc Carol. Título: "Liga pra SAMU".

O estribilho da "música" é o seguinte: "Liga pra SAMU / Liga pra SAMU / Ela quis transar com três / Deu hemorragia no cu."

sábado, 15 de outubro de 2016

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

A RETÓRICA É UMA TÉCNICA DE OBTENÇÃO E MANUTENÇÃO DO PODER

* Honório de Medeiros

Na verdade a Retórica é uma técnica de obtenção e manutenção do Poder.

Muito além de uma técnica de persuasão, como propõem alguns teóricos. A persuasão é, apenas, um dos instrumentos da Retórica, tal como a manipulação ou a sedução.

Embora se costume dizer que a Retórica seja uma técnica de persuasão, de convencimento, ela é muito mais que isso. Pressupõe a existência, em polos distintos, de alguém a almejar que o Outro faça ou deixe de fazer algo, e a existência desse Outro.

Há uma tentativa de circunscrever a Retórica ao espaço da persuasão, quando a vontade do Outro cede, por vontade própria, posto que convencido, à vontade do persuasor.

Nada menos verdadeiro: na tentativa de persuasão do Outro, por mais ética que tenha sido, uma vez que ocorra, a vontade do persuasor se impôs à do persuadido alterando sua percepção das coisas e dos fenômenos.

Como a ninguém é dada a primazia de saber o que é certo ou errado, se o Outro é persuadido sem que sua percepção das coisas ou fenômenos tenha ocorrido por si mesma, sem interferência externa, então temos, mesmo se inconsciente, uma imposição de vontade.

Evidente que no mundo das verdades da ciência não se há de falar em persuasão: aqui a demonstração lógica se impõe por si mesma.

Nessa perspectiva da persuasão a ocultação inconsciente da intenção da imposição da vontade do persuasor pressupõe, na maioria das vezes, uma crença, a fé nos próprios desígnios de quem persuade. Mas nem sempre é assim. Aquele que tenta persuadir não raro o faz deliberadamente, querendo influenciar o Outro a modificar sua vontade, mesmo respeitando regras éticas no que diz respeito ao seu procedimento, tentando evitar a manipulação. O persuasor pensa: “quero persuadir, não manipular”.

Em tese, seria esse um dos alicerces da Democracia.

A manipulação, por sua vez, é "la bête noire" da Retórica. Aqui não há limite ético quanto à intenção da alteração da vontade do Outro.

Assim ocorre, também, no que diz respeito à sedução.

Qual a diferença entre manipulação e sedução? Sutil. Somente pode ser percebida por intermédio da introdução da noção de “vontade”.

Essa noção, segundo Hannah Arendt[1], foi introduzida na discussão filosófica por intermédio de São Paulo, em sua famosa Carta aos Romanos. E, através dela, podemos entender que o “eu quero” nem sempre corresponde ao “eu posso”.

Ou seja, minha vontade pode determinar claramente o rumo a ser seguido, entretanto não consigo me colocar em movimento.

Na manipulação[2], mesmo que enganado, vez que manipulado, a vontade do Outro adere à vontade do persuasor; na sedução, a vontade do Outro é contra, mas cede por não ter forças para a recusa.

Na sedução o Outro não é enganado e não muda sua percepção das coisas ou fenômenos, entretanto não é possível resistir ao sedutor.

Seja persuasão, seja manipulação, seja sedução, todas são instrumentos da Retórica, que é uma técnica de Poder, e têm, como objetivo, fazer com que a vontade de quem a utiliza influencie, no sentido de alterá-la, as ações do Outro.

[1] Responsabilidade e Julgamento; ARENDT, Hanna.

[2] Justiça versus Segurança Jurídica e Outros Fragmentos; de MEDEIROS FILHO, Francisco Honório

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

A POLÍCIA DO PENSAMENTO

* Honório de Medeiros


A polícia do pensamento está por aí, solta, desenfreada, equivocada, semeando nulidades e destilando ódio seletivo às vezes com sutileza, às vezes com uma brutalidade sem igual.

Recentemente perguntei a uma adolescente, de quem respeito o senso crítico, qual era a reação dos seus colegas às suas ideias, a seu ceticismo, a sua procura incessante de explicações que ultrapassem o embate ideológico raso dos dias de hoje. Ela respondeu que não se manifestava, ninguém sabia o que, de fato ela pensava. E pontuou: "temo o ostracismo social ao qual seria condenada em meu curso". 

Você encontra esses policiais, e não se dá conta do mal que semeiam. Estão nas escolas, universidades, igrejas, teatros, festas. Em todos os lugares. Como são fundamentalistas, seja de esquerda ou de direita, supõem serem portadores de alguma revelação extraordinária que lhes garante o direito de doutrinar quem quer que seja. 

Medíocres, raciocinam por estereótipos, palavras-de-ordem. Gritam, agridem, oprimem silenciosamente.

Fazem bullying.

Não aceitam não serem aceitos.

Não conhecem nada, não sabem nada, não se aprofundam em nada. Seu conhecimento é superficial, de leitura - quando há - de orelhas-de-livros, imediatista, e puramente literal.

Aqueles que não comungam com suas ideias, que não aceitam receber a "revelação", que não suportam essa patrulha ideológica, são considerados alienados, perdidos, e, se resistem, adversários que não merecem outro tratamento senão o aniquilamento intelectual, social, e, às vezes, até mesmo físico.

São todos inocentes úteis, massa de manobra de seus títeres. São a bucha-do-canhão com a qual seus mentores atacam os inadvertidos e os advertidos. E, em sua ousadia, até mesmo os poucos que têm coragem de lhes apontar o dedo e denunciar sua insensatez.

Nada tão semelhante quanto a esquerda e a direita, quando fundamentalista. Põem debaixo das asas seus bandidos, adoram odiar visceralmente seus inimigos, e sacralizam seus líderes.

O que muda é a cor da camisa. Quando muda.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

DEVO, NÃO NEGO, PAGO QUANDO PUDER

* Honório de Medeiros

Li atentamente a Nota do Governo do RN explicando atrasos nos pagamentos aos servidores.

Em síntese é o seguinte: "devo, não nego, pago quando puder".

Muito mais interessantes foram as postagens no Twitter feitas pela Secretária-Chefe do Gabinete do Governador, Tatiana Mendes Cunha.

Transparecendo indignação com o tratamento recebido pelo RN e outros Estados do Nordeste por parte do Governo Federal, a Secretária, renomada administrativista, diz: "Sempre fomos politicamente fracos, ao ponto de não criarmos condições nem para contrair dívidas".

E remata: "O alicerce do Pacto Federativo é o tratamento igual e proporcional para todos os entes federados. Manter a harmonia entre os Estados".

Essa indignação vem a calhar. Afinal o Governo Federal, para ajudar o Rio de Janeiro, editou a Medida Provisória 734/2016, pela qual lhe concedeu um apoio financeiro de R$ 2,9 bilhões. Tais recursos foram liberados desprovidos de necessidade de restituição e em parcela única.

De novo: liberados em parcela única e sem necessidade de restituição.

Não basta, entretanto, esse blá-blá-blá. Aos poucos que entendem do assunto, é desnecessário; para os muitos que não entendem, é conversa jogada fora.

Em tempos extraordinários, medidas extraordinárias: por que não judicializar a questão? Por que os Governadores diretamente atingidos por esse tratamento injusto e, como deixa transparecer a Secretária-Chefe do Gabinete Civil, até mesmo ilegal, não procuram a Justiça, após Decreto de Calamidade Pública?

Sem o pagamento da remuneração dos servidores a economia do Estado do RN não funciona. Isso é básico, elementar. E os resultados do não-pagamento são danosos em curto prazo, mas perversos, terríveis, a médio e longo prazos. 

Então é preciso atitude. Mais que nunca. Antes que seja tarde.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

POUCOS SABEM VIVER SOZINHOS

* Honório de Medeiros


Houve um tempo no qual eu morei em uma cidade pequena. Sentia tédio, principalmente aos domingos, quando tudo parava e as pessoas se recolhiam as suas casas.

Um dia me perguntaram: “como suporta viver aqui? Não há nada para se fazer.”

Depois fui para a cidade grande. Às vezes também sentia tédio, principalmente aos domingos. Menos, entretanto, pois perambulava por lugares onde pessoas se encontravam, falavam, riam, cantavam, brigavam, se deslocavam em vaivém incessante.

Tentando compreender, eu pensava com meus botões: “deve ser porque, aqui, há movimento, pois lá também existiam coisas para se fazer, embora a sós.”

“Mas não, não é o movimento, o bulício, o frenesi, uma vez que, mesmo assim, sinto tédio, embora em menor quantidade.”

“Então não é algo que está fora de mim, ao contrário, está dentro.”

“É minha alma inquieta, que se entorpece, em alguns momentos, com a aparência do algo-sendo-feito fora de mim.”

Pois a noção de que não nos sentimos entediados em lugares onde muitos estão em atividade, de que sempre há algo para se fazer, típica da e na cidade grande, é uma ilusão, entorpece nossa alma inquieta, e nos permite sobreviver à rotina.

Na verdade o tédio é uma consequência de nossa alma inquieta, viciada em não ficar a sós. Queremos movimento, cores, sons, sentir que estamos participando.

Mas quem não parou em alguma festa, por um momento, e se perguntou: “o que faço eu aqui?”.

Como somos empurrados, algumas vezes sutilmente, outras brutalmente, para participar desse convescote que é a vida comum, somos eternos inadaptados.

Poucos sabem viver sozinhos.

Poucos têm serenidade na alma.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

CARLOS EDUARDO, O GRANDE VENCEDOR

* Honório de Medeiros


Carlos Eduardo foi, sem sobra de dúvida, o grande vencedor dessa eleição. Não somente pela vitória avassaladora, mas, também, por firmar como patrimônio seu um senso estratégico que os desprevenidos insistem em atribuir ao destino ou à sorte.

Nesta eleição, por exemplo, assumiu, obliquamente, a liderança de sua família. Garibaldi está encerrando a carreira, por força da idade. Henrique tem voo curto, enredado nas teias da justiça. Os primos são demasiadamente novos. Digo obliquamente porque não se percebeu, no seu jogo-de-xadrez, qualquer movimento que induzisse esse objetivo. Mas aconteceu. Queiram ou não.

Assumiu, também, de forma inconteste, mas sutil, a bandeira da esquerda que não é extremada, tampouco petista. Não há espaço vazio na política, sabemos, e, agora, a sobrevivência da esquerda no RN depende dos passos que Carlos, e seu PDT, irão dar.

Mas mesmo segurando a bandeira da esquerda, não perdeu a possibilidade de estabelecer alianças táticas com o espectro conservador da política potiguar, vez que suas arestas são poucas e escolhidas, o que mostra sua capacidade de enxergar longe. E seu trânsito no segmento econômico está em aberto.

Como ainda é novo, não afasta  os jovens; como é experiente, atrai os mais velhos.

Esperto, conduz sua administração de forma tranquila, discreta, fazendo o óbvio, sem cometer equívocos. Isso tem sido bastante, as urnas o demonstram. Quando quer, sabe sumir. Ponto para ele. Investe forte na Cultura: entendeu logo o potencial político dessa opção. Palmas e mais palmas.

Claro que há senões. Impossível não haver. O tipo de ação que lhe é próprio, e sua personalidade pouco propensa a intimidades ruidosas podem não fazê-lo um líder de massas, e isso deixa um flanco aberto para potenciais inimigos políticos que tenham o carisma necessário para subverter a ordem natural das coisas.

Mas como no horizonte imediato é pouco provável surgir esse novo Aluízio Alves, queiram ou não os que pouco gostem, Carlos Eduardo está aí, solidamente enraizado, com galhos e folhas voltados para 2018. 

É isso: um líder forte em uma realidade fragmentada.