domingo, 13 de março de 2016

DE UM ENCONTRO CASUAL E UM EVENTO COMUM

* Honório de Medeiros

“Um radialista”. Assim, secamente, Antônio Gomes me identificou o morto cujo enterro passava pela esquina onde estávamos postados em Cajazeiras, Paraíba. Até que o enterro passasse por mim não lhe dera atenção. Observava, fascinado, aquela fila coleante a se arrastar molemente, ocupando todos os espaços da rua. Era sempre assim, pensava eu, fosse enterro, manifestação, passeata política, desfile: um fluxo constituído por pessoas diferentes, mas iguais quando em grupo. O ser humano. Esse compósito de vilania e santidade se arrastando em grupo, ou a sós, do nada para o nada. “De longe, todo mundo é normal”: terá sido Wilde, quem o disse? Não, foi Caetano.


Antônio Gomes, como eu, estava de braços cruzados olhando o enterro, mas seu olhar era sardônico. Um olhar que combinava bem com o rosto magro, de feições indefinidas, comuns. Deveria ter sessenta e poucos anos. Cabelos grisalhos, abundantes, cortados curtos, displicentemente penteados para trás. 

Ao observá-lo tive a sensação de que ele parecia um elemento estranho à paisagem. Não combinava com Cajazeiras, uma cidade que, como muitas outras, sendo grande para os padrões do Sertão, disso nada extrai de bom, assim como não guardou o que de bom havia de quando era pequena. Era como uma questão de foco. Ele parecia deslocado não porque estivesse no centro da cidade, e não acompanhasse o enterro, mas, sim, porque estava ali como se fosse um estrangeiro em pleno Sertão, muito embora sua roupa, dele não dissesse nada, nem os sapatos, nem qualquer adereço, até por que não os havia, excetuando um relógio que também era muito discreto.

“O senhor não é daqui.”

“Sou e não sou. Nasci aqui há uns sessenta anos atrás, e voltei há uns poucos dias para vender uma terra que me coube por herança.” 

E me perguntou o que eu fazia em Cajazeiras. Falei-lhe de minha pesquisa acerca de Massilon, o cangaceiro, e que acabara de voltar de Missão Velha, no Ceará, terra onde o Cel. Isaias Arruda “reinara” na década de 20 e da qual, com seu apoio logístico, Lampião partira para invadir Mossoró.

Agora já estávamos sentados numa lanchonete que colocara na calçada aquelas mesas e cadeiras de metal com imensas logomarcas de cerveja na calçada. Mesas e cadeiras sujas. Como não era possível tomar um café respeitável, pedíramos água mineral.

“Ah, o cangaço”, disse, e perguntou: “descobriu algo em Missão Velha?”. Sim, eu havia descoberto, mas não queria falar acerca de cangaço. Queria falar da viagem em si mesma. Será que eu conseguiria transmitir oralmente, para aquele estranho, um homem educado, percebia-se facilmente isso, minhas impressões de viagem? Será que eu conseguiria prender sua atenção durante um tempo suficiente para lhe dizer uma crônica elaborada com fragmentos de imagens e palavras? O que significaria tudo isso quando cada um fosse para seu lado e um tempo razoável tivesse passado desde então?

“O cariri é verde, muito verde para ser Sertão”, comecei. “E Missão Velha parece uma cidadezinha perdida no tempo, uma Macondo. Lá, quando chegamos, fomos direto para o coração da cidade. Estacionamos. Seria dia de feira? Não, é que o pagamento da “esmola oficial do governo federal” era naquele momento.”

As feiras, como eram antigamente, não existem mais. Não há mais cantadores de viola, coquistas, literatura de cordel, contadores de “causos”, vendedores de drogas milagrosas, rezadeiras, adivinhos, mágicos, circos mambembes... Há tipos estranhos, é impossível não haver: uma mulher de mais de sessenta anos, horrorosamente maquiada, vestida como uma adolescente, a carne sobrando por sobre a barra da minissaia curtíssima, a abraçar freneticamente uma comadre a quem aparentemente não via desde há muito tempo, e lhe responder em cima da bucha quando ela dissera “criatura, você já está com muitos janeiros, né?”: “estou, mas você não fica atrás não, olhe as pelancas, não é, mulher?”

E depois dessa resposta, se virou para o lado e tangeu o marido que empurrava um carrinho de sorvete caseiro, enquanto olhava aquele encontro bizarro: “vai, vai, que aqui é conversa de comadres”.

O sorveteiro obedeceu, mas como vingança, ao passar por mim que observava deliciado a cena, levou a mão ao lado da cabeça, e fez, com o indicador apontado para si e desenhando um círculo, o comentário final: “é tudo doida”.

Mestre Antônio riu do episódio das mulheres e depois comentou que, às vezes, dizia a seus amigos do Sul, quando se demorava a voltar, que ali, no Sertão, para quem soubesse ver, ouvir, e extrair as conclusões possíveis, não havia escola nem teatro iguais, e, finalizando, aludiu a um personagem de Agatha Christie, Miss Marple, insulada em uma pequena cidade inglesa, a resolver crimes Inglaterra afora a partir de sua peculiar psicologia aldeã, e à frase de Tolstoi “ninguém se torna universal sem escrever acerca de sua aldeia”, para encerrar nossa rápida e estranha conversa que lhe dava razão na justa medida em que, no coração de Cajazeiras, o teatro da vida nos permitira divagar, filosoficamente, acerca da condição humana, sem que fosse necessário nada mais além de um final-de-tarde, um encontro casual, e um evento comum.

sexta-feira, 11 de março de 2016

DE UMA QUIETA TENDÊNCIA A NEGAR O MUNDO

* Honório de Medeiros


Vila-Matas, em seu inigualável "Bartleby e Companhia", observou que Roberto Colasso, referindo-se a Robert Walser, o autor de "Jakob von Guntem", genial atraído pelo nada, e ao próprio Bartleby, o personagem símbolo dessa estranha pulsão, criação de Herman Melville, chama a atenção para os "seres que imitam a aparência do homem discreto e comum" no qual "habita, no entanto, uma inquieta tendência à negação do mundo."

Meu pai e seus silêncios, sua deliberada omissão em falar acerca do seu passado, seu instintivo jogo retórico no qual se escudava para evitar qualquer manifestação que implicasse em juízos de valor, sua disponibilidade convidativa para escutar quem lhe procurava, ao mesmo tempo em que levava o interlocutor a expor a própria alma.

Não inquieta, mas profundamente quieta era sua negação ao mundo, sob o manto da discrição e das palavras comuns, triviais, incolores de tão banais.

Mas hoje percebo: em certos e raros instantes, uma sóbria colocação de sua parte estabelecia um silêncio que era um golpe profundo na ordem das coisas. Feito isso, se recolhia, e voltava à aparente placidez de sempre.

E eu, e nós, que sempre o achamos tão comum. Como poderia, ele que sempre foi um sobrevivente?

Ou sabia muito e desdenhava, ou sabia muito e percebia que não valia a pena.

EU TE AMO



* Bárbara de Medeiros

Mais uma madrugada chegou e eu não consegui dormir por causa de uma velha amiga chamada ansiedade. Quando meu coração acelera a velocidades exorbitantes e minha cabeça gira, minha única escolha é me agarrar a um refúgio que guardo a sete chaves (e uma senha de dezessete dígitos) no fundo do meu computador, em que fotos, depoimentos e prints de conversas ajudam a me lembrar que, no fundo, no fundo, eu não sou odiada por todos que me conhecem.

(talvez pareça ridículo, mas quando eu não consigo dormir à noite o motivo normalmente é esse).

Hoje resolvi abrir uma conversa antiga com um dos melhores professores que já tive na vida – não citarei nomes porque ele sabe quem é. De todas as escolas em que já estudei, a dele foi a minha favorita, e o mais engraçado é que ele é a única coisa que eu sinto falta quando lembro dos momentos que passei lá. O resto, consigo reconhecer que “foi bom enquanto durou”, e a nostalgia não me consome e a saudade não me afoga quando penso.

Ele, ao contrário, é servido nas minhas lembranças numa bandeja de ouro com uma taça de melancolia, e a falta dele dói tanto que eu juro que sinto que falta um pedaço do meu coração.

Mas as lembranças escoam no tempo, e por mais que eu não duvide da importância que ele teve na minha vida (escolar e pessoal), não consigo lembrar grande parte dos momentos que compartilhamos. E é por isso que às três da manhã me encontro revirando as mensagens trocadas pelo Facebook há quase quatro anos (eu juro que parece que foi ontem).

Pra começar, ficou óbvio pra mim que grande parte do tempo eu, como a adolescente bipolar que era, perdi bastante tempo estando chateada com ele, provavelmente como uma forma de chamar atenção? Nossa turma foi a primeira que ele ensinou, e eu sei que o apego que eu tive por ele todas as outras meninas da sala também tiveram, e ele teve por todas nós. Mas seria exagero dizer que nós tinhamos uma conexão especial?

Minha mãe suspiraria e reviraria os olhos, lembrando-me que eu sempre tive um fetiche por professores. Por mais que ele tenha sido meu professor de história, pasmem! Eu nunca fui apaixonada por ele. Não era apaixonada por ele, como fui pelo seu antecessor e pelo seu sucessor e por tantos outros que me deram essa fama de platonicamente Lolita. Eu o amava.

Mas eu não o amava com suspiros apaixonados e sonhos acordados, com a ansiedade feliz e infantil de uma criança que imaginava ter encontrado seu príncipe encantado. Eu nunca pensei nele como um homem com quem eu poderia ter meu felizes-para-sempre, ou qualquer outra coisa que a gente imagine que é o amor e a base de um relacionamento quando se é adolescente.

Eu o amava com o fervor de uma menina encantada, apaixonada pela paixão com o qual ele ensinava nossa matéria favorita, com a habilidade que logo fez todas as quarenta meninas da sala amarem história. Eu o amava com uma preocupação lenta e constante: “Você está bem?”, “Você precisa de alguma coisa?”, “Posso te ajudar?”.

Eu o amava todas as vezes que pulava da cama ansiosa porque teríamos aula, todas as segundas e sextas, e era como se só nesses dias a vida fizesse sentido. Porque ele me entendia, me respeitava e me fascinava.

E eu não o amava como quem esperava algo dele ou de mim ou de nós, eu o amava pelo que ele representava pra mim, o mestre que não se achava nada, mas que dava tudo de si para que nós fossemos alguém.

Nós éramos o seu mundo e a realização de um sonho, e quando eu vi a decepção começar a corroer seu coração, tão jovem, tão cedo, foi como se estivesse me matando também.

Seria prepotência dizer que eu fui seu bote salva-vidas? Eu me senti assim. Eu fiz de tudo para que fosse assim.

E eu disse que o amava, todos os dias, com um abraço apertado, com um olhar encantado ou com as palavras mágicas, digitadas ou pronunciadas.

Por que é tão difícil dizê-las?

Por que é um tabu?

Porque esse homem foi importante para mim, e eu o amei, e não de uma forma sexual ou romântica, mas como uma evolução natural do processo de admiração que vivi.

Eu o amei como amo meu pai, minha mãe, meu irmão, a memória da minha avó e meus amigos mais queridos, e um monte de outros professores que vieram antes e depois dele.

E ele sabe disso.

Mas em algum momento, entre esses quatro anos que nos afastaram fisicamente um do outro, eu mudei.

E dizer “eu te amo” se tornou tão, tão difícil. Algo que a gente fala pros pais, pro irmão quando necessário, pros amigos após um momento de hesitação, pros avós porque eles precisam ouvir, e apenas raramente pra um interesse amoroso.

Nunca pra professores.

Mesmo que seja verdade, e que nosso coração esteja explodindo de amor por eles.

Porque não é apropriado.

E eu só tenho pena. Porque talvez se não houvesse o “o que ela quis dizer com isso?” e as pessoas dissessem tudo o que sentem e querem que seja dito, o mundo seria um lugar com mais amor e felicidade.

Esse texto é um desabafo longo demais, que talvez nunca seja a luz do dia, de uma menina que está prestes a completar dezoito anos e não sabe a última vez que falou que amava um professor.

Hoje, por escrito e sem citar nomes, eu gostaria de dizer.

Eu amo vocês. Muito obrigada por serem pessoas lindas, por dentro e por fora, que fazem acordar cedo valer a pena quando vejo aquele brilho de felicidade nos seus olhos, por estarem ensinando algo que gostam.

Eu amo você, primeiro professor de história que viu potencial em uma menina ignorada por todos ao seu redor.

Eu amo você, professor de inglês que hoje é amigo e que eu ainda estou descobrindo novos motivos para amar.

Eu amo você, professor de história-músico por quem eu nutri uma paixão platônica e que hoje é o fruto das minhas maiores risadas.

Eu amo você, professor de francês que deve ter sido minha alma gêmea em alguma vida passada.

Eu amo você, professora de matemática que sem sorrir na maior parte das aulas cavou um túnel em meu coração até encontrar seu lugar.

Eu amo você, professor de geografia que me ensinou mais do que eu posso colocar em papel. Sinto sua falta todos os dias.

Eu amo você, minha primeira professora de inglês. E sua morte não pode nunca tirar de mim a importância da sua vida na minha.

E eu amo você, meu último professor de história e minha última paixão platônica. Sua aula era uma peça de teatro da qual eu nunca conseguia tirar os olhos.

Espero um dia recuperar a coragem de dizer o que precisa ser dito, sem medo do que os outros pensam que eu quero obter com o que digo.

Nunca é nada demais, só uma consciência limpa e um coração um pouco menos pesado.

Porque sabe como é: tem horas que o amor transborda.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

HOJE ELA FAZ DEZOITO ANOS

Feliz aniversário, meu amor.
Que Deus lhe faça, sempre, a vida muito leve...




Menina e Moça

Está naquela idade inquieta e duvidosa, 
Que não é dia claro e é já o alvorecer; 
Entreaberto botão, entrefechada rosa, 
Um pouco de menina e um pouco de mulher.

(...)

É que esta criatura, adorável, divina, 
Nem se pode explicar, nem se pode entender: 
Procura-se a mulher e encontra-se a menina, 
Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher! 

Machado de Assis, em 'Falenas'

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

VAIDADE DAS VAIDADES, TUDO É VAIDADE

Os primeiros versos do Eclesiastes na Bíblia (Tradução Ecumênica), 1994, aprovada pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, tradução do francês:

1. Palavras de Qohélet, filho de David,
rei de Jerusalém.

2. Vaidade das vaidades, diz Qohélet,
vaidade das vaidades, tudo é vaidade.

3. Que proveito tira o homem
de todos os trabalhos com que se
afadiga sob o sol?

4. Uma geração passa, outra vem,
e a terra permanece sempre.

5. O sol se levanta, o sol se põe,
procurando lugar de onde se erguerá
de novo.

6. O vento vai para o sul e vira para o norte,
gira, gira e vai embora,
sempre retoma o seu curso, o vento.

7. Os rios todos correm para o mar
e o mar nunca fica cheio;
para o lugar onde correm os rios,
para lá retornam.

8. Todas as palavras estão gastas,
não se consegue mais dizê-las;
o olho não se sacia do que vê,
o ouvido não se enche do que ouve.

9. O que foi é o que será,
o que se fez é o que se fará:
nada de novo sob o sol!

10. Se algo existe de que se possa dizer:
“Vede, isto é novo!”,
- já existe desde os séculos
que houve antes de nós (...)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O QUE FAZER DO SEU DIA?

"Recebeu como uma estocada sibilina a insidiosa sensação de derrota que o acompanhava havia muito tempo. Para que se levantar? O que podia fazer do seu dia? (...) A ausência de expectativas se tornava tão agressiva que decidiu, nesse instante, encará-la da melhor maneira que conhecia e da única forma que podia: de frente e lutando."
HEREGES, Leonardo Padura.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

COLHEITA

* François Silvestre

Colheita.
Do plantio da estrada /
Uma roupa no corpo,/ outra na mochila. /
O destino: / nenhum ou a liberdade. /
Dos melhores, a saudade./ Pois mortos.
Dos menores, / a tristeza. /
Das madrugadas, / as grades. /
E a mochila pronta / pra outra estrada. /
O colhido? / Esse tempo sujo. /
Se valeu a pena? / Pergunto ao poeta: /
Qual o tamanho da alma? / E ele responde:
Pequena.

http://blogs.portalnoar.com/francoissilvestre/

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O STF AVANÇA!

* Honório de Medeiros

A OAB criticou a decisão do STF de acabar com a farra dos recursos para manter os bandidos na rua. Sou advogado. Há tempos que a OAB não me representa. Essa posição é a defesa dos grandes escritórios de chicaneiros...

Evidentemente ao me referir em meu comentário acerca da OAB eu estava aludindo à atual, não aquela de Raymundo Faoro, por exemplo. No mais eu acredito que a repercussão da decisão do STF deixará bastante entusiasmados aqueles que, ao longo do tempo, viram a camada mais humilde da população ser levada às prisões enquanto o topo, defendido por chicaneiros que se aproveitavam dos mais de cinquenta recursos possíveis antes do trânsito em julgado, desfilava sua impunidade pelas ruas do País. Isso é o que importa.

"No tocante ao direito internacional, o ministro relator do caso, ministro Teori Zavascki, ao negar o Habeas Corpus (HC) 126292 na sessão desta quarta-feira (17), citou manifestação da ministra Ellen Gracie (aposentada) no julgamento do HC 85886, quando (esta) salientou que 'em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando referendo da Suprema Corte'."

Ainda, como se lê em NOTICIÁRIO STF:

"O relator do caso, ministro Teori Zavascki, ressaltou em seu voto que, até que seja prolatada a sentença penal, confirmada em segundo grau, deve-se presumir a inocência do réu. Mas, após esse momento, exaure-se o princípio da não culpabilidade, até porque os recursos cabíveis da decisão de segundo grau, ao STJ ou STF, não se prestam a discutir fatos e provas, mas apenas matéria de direito. “Ressalvada a estreita via da revisão criminal, é no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame dos fatos e das provas, e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado”, afirmou.

Como exemplo, o ministro lembrou que a Lei Complementar 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, expressamente consagra como causa de inelegibilidade a existência de sentença condenatória proferida por órgão colegiado. “A presunção da inocência não impede que, mesmo antes do trânsito em julgado, o acórdão condenatório produza efeitos contra o acusado”." 

Tamanho o descompasso do Brasil em relação ao resto do mundo, a privilegiar alguns poucos, que podem pagar excelentes advogados, em detrimento de muitos, a quem cabe ir para a cadeia.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

DA DELAÇÃO PREMIADA

* Honório de Medeiros

Peço licença para discordar de quem faz críticas ao instituto da delação premiada.

E o faço afirmando, inicialmente, que assim como outros, também tenho receio do Estado.

É como se lê: do Estado. Se bem me lembro, não somente anarquistas concordam quanto a todo Estado ser de exceção, uns mais, outros menos.

Mas não sei bem como se pode afirmar que o instituto da delação premiada seja característico de Estados de exceção.

Sei ainda, por outro lado, posto que a lógica o imponha, que uma análise crítica de um instituto como esse não pode ser feita sob o prisma da reserva moral aos delatores. Não faz sentido.

Alguns afirmam que a delação deu azo a todo o tipo de barbárie na história da humanidade.

Acredito firmemente que não podemos confundir a delação privada com a delação premiada, da mesma forma que não podemos confundir assassinato com matar em estrito cumprimento do dever legal (como o fazem os soldados nas guerras).

Sabemos disso: não por outra razão muitos aceitam a delação premiada, desde que submetida ao aparato ideológico dos direitos fundamentais individuais. 

Ora, assim o é em relação a qualquer instituto do Estado. Qualquer aparato do Estado que não esteja submetido a limites é “espelho da retaliação, perseguição”, como se diz.

Parece óbvio que nada é mal em si mesmo. E qualquer instrumento, seja ideal ou concreto, pode ser manipulado de acordo com diferentes faces da Moral.

Não por outra razão, a mesma enxada que rasga a terra para a semeadura pode ser instrumento de morte.

Discordo, pois, de quem afirma ser contraditório confiar em um criminoso que se submeteu à delação premiada.

Na verdade o Estado não está aqui ou ali para confiar em quem quer que seja: seu objetivo é trabalhar as declarações do delator confrontando-as com informações das quais disponha, para alcançar o objetivo almejado.

Crer que o Estado aja a partir de filtros morais é puro romantismo, e à pergunta que alguns fazem, acerca de ser ou não plenamente aceitável uma pessoa sob juramento denunciar seus cúmplices, apresentar um relato verdadeiro e ser perdoado por seus delitos eu respondo: claro que o é!

Assim aconteceu na história recente da Itália, para combater a Máfia. Lá, o instituto da delação premiada impediu, até onde sabemos, que aquela organização criminosa assumisse, de vez, o controle do Estado.

Não aconteceu o mesmo na Colômbia, em relação às FARC?

Não é isso que pretende fazer a Polícia do Rio de Janeiro para erradicar os soldados que o tráfico infiltrou e infiltra em suas fileiras?

Em relação ao suposto delator sociopata, hipótese com a qual alguns lidam para condenar o instituto, não posso concordar com sua plausibilidade.

Ora, os depoimentos dos delatores não são verdades com as quais irão lidar ingênuos, inocentes policiais ou promotores, em somente uma etapa de um processo criminal.

Qualquer declaração de alguém em uma investigação é avaliada a partir de tudo quanto compõe o problema com o qual a Polícia e o MP estão lidando. Chamam a isso de “contexto”. Isso é óbvio.

Quanto ao mais, principalmente no que diz respeito aos comentários críticos feitos pelos que afirmam que nos faltam “freios morais”, lamento, mas também vou discordar.

Como não sei quem há de me impor “freios morais”, e não nasci com eles, assim como ninguém nasceu, prefiro os “freios legais”.

Nunca é demais lembrar que os Estados nos quais há um melhor índice de desenvolvimento humano, nos moldes pensados por Amartya Sen, são aqueles em que as leis são, tanto quanto possível, respeitadas.

Assim e correndo o agradável risco de me ter colocado enquanto contraponto a amigos queridos deixo claro que sou a favor do instituto da delação premiada.

E torço para que esse instituto possa ajudar no combate à corrupção metastática que infesta o Estado brasileiro, seja no Executivo, seja no Legislativo, seja no Judiciário.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

A VIDA É LÍQUIDA

* Honório de Medeiros

“A vida é líquida”, diria Zygmunt Balman, aludindo à consistência das relações entre nós e os outros, ou entre nós e as coisas e/ou fenômenos. Líquida, posto que essa consistência não tem forma definida, assume aquela que o recipiente (o contexto) impõe.


Não seríamos estruturas rígidas que atravessam o tempo imutáveis ou pouco atingidos pelas circunstâncias, somos proteiformes, somos difusos, somos evanescentes.

Vivemos em uma época na qual as gerações mais novas escrevem tudo em uma linha. No máximo algumas poucas linhas. E somente lêem, e são treinadas pela realidade virtual com a qual convivem “full time” exatamente para isso, algumas linhas, umas poucas linhas. Tal é o ser (e o dever-ser) que essa realidade virtual impõe: tudo é frenético, tudo é descartável, tudo é cambiante, imediato. É a maximização das potencialidades, negativas ou positivas, da nossa espécie sobrevivente e dominante, conforme descrito pela teoria da seleção natural.

O ensino, hoje, está em ruínas por vários motivos, mas desconfio que o modelo que ainda predomina está fadado ao fim, entre outras razões, mais ainda, em decorrência do descompasso com essa realidade que aos poucos se impõe, no qual não há mais lugar para uma educação que se estrutura a partir de livros, com textos pesados, longos e que exigem tempo e estudo profundo, bem como o tratamento do “pensar” típico dos escolásticos medievais que moldaram as bases do nosso ensino ocidental e cristão.

As gerações mais novas, que herdarão o mundo, ou o que restar dele, e sua forma de apreender e expressar a realidade, estão em processo de descompasso com aquela construída pelos nossos antepassados. Não se trata de estarmos certos e eles errados por não quererem ler livros como “Ulisses”, de Joyce, “Paidéia”, de Jaeger, ou “Em Busca do Tempo Perdido”, de Proust.

São elas, as gerações mais novas, mutações engendradas pelo meme que é a realidade virtual: caracterizam-se por viver em ritmo alucinante, pensar freneticamente, falar acelerado, em contraposição ao lento viver, pensar e falar arcaico, que vai sendo deixado para trás.

O livro de papel sobreviverá, claro, como sobreviveu o ritual do chá no Japão moderno que a restauração Meiji instaurou, e atirar com arco-e-flecha, algo excêntrico, típico de verdadeiros “outsiders”, a partir do qual hão de se criar seitas e seus inevitáveis rituais iniciáticos. Livros em ambientes virtuais existirão cada vez mais, óbvio. Mas nunca serão consumidos como o foram os livros de papel após Gutenberg.

Assim como os monges que salvaram a civilização como nós a conhecemos, na Alta Idade Média, copiando os textos antigos e os deixando para a posteridade, será em ambiente monacal que os iniciados lerão obras em papel como as que foram citadas acima.

O velho mundo está morrendo, viva o novo mundo, do qual serei espectador privilegiado, posto que, quando menino, fui apresentado ao milagre da televisão já completamente cativado pelo livro de papel, e, agora, cinquentão, me maravilho com as infinitas possibilidades de uma realidade sequer possível de ser imaginada antes, domínio e prisão dos que, hoje, ainda são apenas adolescentes.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

1968: 4º ANO PRIMÁRIO NO COLÉGIO DIOCESANO DE MOSSORÓ


4º Ano Primário do Colégio Diocesano Santa Luzia de Mossoró. Ano: possivelmente 1968.
Na primeira linha, primeiro degrau, da esquerda de quem olha para a direita: Concita Almeida e Ângela; na segunda fila, segundo degrau: Israel, Otávio, Roberto Azevedo, Anchieta Medeiros, Gilson Ricardo, Elídia Ângela; na terceira fila, terceiro degrau: Wilson Cabral, Franzé Rodrigues, Honorio de Medeiros, Marcos Mendes, Luis Gustavo, Desconhecido, Hipólito, Carlos Eduardo, Maria José, Magale Luz; na quarta fila, quarto degrau: Éverton Cardoso, Eduardo Medeiros, João, Raimundo Benjamin, Júnior Godeiro, Zé Maria, Carlito Rego; na quinta fila, Militão, Lamonier, Leônidas Terceiro (meio oculto), Giovani Leite, Apodi, Desconhecido. Professora: Dna. Socorro Rodrigues.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

CARNAVAL, ESSA IMENSA CATARSE COLETIVA

* Honório de Medeiros

O PRIMEIRO CLARIM / DIRCINHA BATISTA

"Hoje eu não quero sofrer, 

Hoje eu não quero chorar, 
Deixei a tristeza lá fóra,, 
Mandei a saudade esperar, lá, rá, rá, rá, 
Hoje eu não quero sofrer, 
Quem quiser que sofra em meu lugar.

Quero me afogar em serpentinas, 
Quando ouvir, 
O primeiro clarim tocar, 
Quero ver milhões de Colombinas, 
A cantar, trá, lá, lá, lá, lá, lá, 
Quero me perder de mão em mão, 
Quero ser ninguém na multidão... 
Lá, rá, rá, rá..."


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MASSA REAL / CAETANO VELOSO

"Hoje eu só quero você
Seja do jeito que for
Hoje eu só quero alegria
É meu dia, é meu dia
Hoje eu só quero amor
Hoje eu só quero prazer
Hoje vai ter que pintar
Só quero a massa real
É o meu carnaval
Hoje eu só quero amar
Hoje eu não quero sofrer
Não quero ver ninguém chorar
Hoje eu não quero saber
De ouvir dizer que não vai dar
Vai ter que dar, vai ter que dar
Esse é o meu carnaval
Vai ter que dar, vai ter que dar
Só quero a massa real."

Carnaval, essa imensa catarse coletiva.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

ADEUS, VELHO AMIGO

* Honório de Medeiros

Aquele amigo que se afasta, aquele velho amigo, com ele desaparece "a testemunha e o comentarista de milhares de lembranças compartilhadas, fiapos de reminiscências comuns que se desvaneceriam"(*). "All those moments will be lost in time, like tears in rain"(**).

* "Hereges", Leonardo Padura.
** O replicante Roy Batty, em "Blade Runner".

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

ERRO DO AUTOR EM "HISTÓRIAS DE CANGACEIROS E CORONÉIS"

* Honório de Medeiros

Às páginas 21 do meu "Histórias de Cangaceiros e Coronéis", fiz uma afirmação que não se sustenta.

Está na Nota 3, rodapé. Lá eu coloquei: "Sânzio de Azevedo, em seu 'RODOLFO TEÓFILO E A SAGA DE JESUÍNO BRILHANTE' diz que essa morte ocorreu em 1837. Nesse ano José Brilhante, se nascido em 1824, teria sete anos de idade."

Um leitor mais atento perceberá facilmente que 1837 menos 1824 é igual a treze anos, e, não, sete. 

Ou seja, Sânzio de Azevedo estava coberto de razão.

Erro meu, claro, aqui assumido publicamente, assim como publicamente peço desculpas ao grande escritor e ensaísta cearense.

Erro que será corrigido na segunda edição, não se tenha dúvida.

O ESTADO, ESSA JIBÓIA

* Honório de Medeiros


Enquanto passam-se os dias (e as noites) o Estado, essa jiboia-constritora, vai asfixiando lentamente cada individualidade, cada singularidade, e promovendo os meios pelos quais sobrevive e se amplia: o suor do nosso rosto, por exemplo, é levado para seus cofres, e muito pouco recebemos como retorno, e não adianta questionar. Tão certo quanto a morte somente o pagamento dos tributos...

E se amplia em uma espiral ascendente sem fim. Brotam ininterruptamente de seu ventre legiões de policiais, auditores, fiscais, juízes, promotores, procuradores, guardas de trânsito, penitenciários, florestais, ferroviários, de portos, militares, agentes administrativos, tesoureiros, assessores, e etc, etc, etc.

E o Estado comprime, esmaga, esmerilha, prende, sufoca, ameaça, reprime, mata, bate, tortura, manipula, asfixia, vigia...

É um pesadelo...

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

A NOITE DO MEU BEM, DE RUY CASTRO

* Honório de Medeiros


Vá no youtube e digite "Estrada do Sol", de Dolores Duran e Tom Jobim: 

"É de manhã, vem o sol
Mas os pingos da chuva que ontem caiu
Ainda estão a brilhar
Ainda estão a dançar
Ao vento alegre que me traz esta canção...

Ou "Eu e a Brisa", de Johnny Alf:
"Ah, se a juventude que essa brisa canta
Ficasse aqui comigo mais um pouco
Eu poderia esquecer a dor
De ser tão só pra ser um sonho
Daí então quem sabe alguém chegasse
Buscando um sonho em forma de desejo
Felicidade então pra nós, seria..."

Então você terá o ambiente natural para se deleitar com "A Noite do Meu Bem", a história e as histórias do samba-canção, de Ruy Castro, e da boemia dos anos quarenta a inícios dos sessenta no Rio de Janeiro.

sábado, 30 de janeiro de 2016

RECOMENDO!

* Honório de Medeiros


DE SABE-TUDO

* Honório de Medeiros

Ô cidade para ter sabe-tudo! E é antigo, isso. De física quântica a corte e costura, além de assar e cozer, passando por hermenêutica jurídica e vinhos, Natal é um prodígio. Benzadeus!

AUTO-CRÍTICA E CETICISMO

* Honório de Medeiros

Auto-crítica e ceticismo. O primeiro para nos colocar em nossos reais limites; o segundo, para colocar os outros em seus reais limites.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

A CRISE FORJADA DA PREVIDÊNCIA

ENTREVISTA - DENISE GENTIL

A crise forjada da Previdência

Por Coryntho Baldez

Com argumentos insofismáveis, Denise Gentil destroça os mitos oficiais que encobrem a realidade da Previdência Social no Brasil. Em primeiro lugar, uma gigantesca farsa contábil transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário, que atingiu a cifra de R$ 1,2 bilhões em 2006, segundo a economista.

O superávit da Seguridade Social - que abrange a Saúde, a Assistência Social e a Previdência - foi significativamente maior: R$ 72,2 bilhões. No entanto, boa parte desse excedente vem sendo desviada para cobrir outras despesas, especialmente de ordem financeira - condena a professora e pesquisadora do Instituto de Economia da UFRJ, pelo qual concluiu sua tese de doutorado "A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 - 2005" (leia a tese na íntegra).

Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, ela ainda explica por que considera insuficiente o novo cálculo para o sistema proposto pelo governo e mostra que, subjacente ao debate sobre a Previdência, se desenrola um combate entre concepções distintas de desenvolvimento econômico-social.

Jornal da UFRJ: A idéia de crise do sistema previdenciário faz parte do pensamento econômico hegemônico desde as últimas décadas do século passado. Como essa concepção se difundiu e quais as suas origens?

Denise Gentil: A idéia de falência dos sistemas previdenciários públicos e os ataques às instituições do welfare state (Estado de Bem- Estar Social) tornaram-se dominantes em meados dos anos 1970 e foram reforçadas com a crise econômica dos anos 1980. O pensamento liberal-conservador ganhou terreno no meio político e no meio acadêmico. A questão central para as sociedades ocidentais deixou de ser o desenvolvimento econômico e a distribuição da renda, proporcionados pela intervenção do Estado, para se converter no combate à inflação e na defesa da ampla soberania dos mercados e dos interesses individuais sobre os interesses coletivos. Um sistema de seguridade social que fosse universal, solidário e baseado em princípios redistributivistas conflitava com essa nova visão de mundo. O principal argumento para modificar a arquitetura dos sistemas estatais de proteção social, construídos num período de crescimento do pós-guerra, foi o dos custos crescentes dos sistemas previdenciários, os quais decorreriam, principalmente, de uma dramática trajetória demográfica de envelhecimento da população. A partir de então, um problema que é puramente de origem sócio-econômica foi reduzido a um mero problema demográfico, diante do qual não há solução possível a não ser o corte de direitos, redução do valor dos benefícios e elevação de impostos. Essas idéias foram amplamente difundidas para a periferia do capitalismo e reformas privatizantes foram implantadas em vários países da América Latina.

Jornal da UFRJ: No Brasil, a concepção de crise financeira da Previdência vem sendo propagada insistentemente há mais de 15 anos. Os dados que você levantou em suas pesquisas contradizem as estatísticas do governo. Primeiramente, explique o artifício contábil que distorce os cálculos oficiais.

Denise Gentil: Tenho defendido a idéia de que o cálculo do déficit previdenciário não está correto, porque não se baseia nos preceitos da Constituição Federal de 1988, que estabelece o arcabouço jurídico do sistema de Seguridade Social. O cálculo do resultado previdenciário leva em consideração apenas a receita de contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) que incide sobre a folha de pagamento, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos trabalhadores. O resultado dá em déficit. Essa, no entanto, é uma equação simplificadora da questão. Há outras fontes de receita da Previdência que não são computadas nesse cálculo, como a Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira) e a receita de concursos de prognósticos. Isso está expressamente garantido no artigo 195 da Constituição e acintosamente não é levado em consideração.

Jornal da UFRJ: A que números você chegou em sua pesquisa?

Denise Gentil: Fiz um levantamento da situação financeira do período 1990-2006. De acordo com o fluxo de caixa do INSS, há superávit operacional ao longo de vários anos. Em 2006, para citar o ano mais recente, esse superávit foi de R$ 1,2 bilhões.

O superávit da Seguridade Social, que abrange o conjunto da Saúde, da Assistência Social e da Previdência, é muito maior. Em 2006, o excedente de recursos do orçamento da Seguridade alcançou a cifra de R$ 72,2 bilhões.

Uma parte desses recursos, cerca de R$ 38 bilhões, foi desvinculada da Seguridade para além do limite de 20% permitido pela DRU (Desvinculação das Receitas da União).

Há um grande excedente de recursos no orçamento da Seguridade Social que é desviado para outros gastos. Esse tema é polêmico e tem sido muito debatido ultimamente. Há uma vertente, a mais veiculada na mídia, de interpretação desses dados que ignora a existência de um orçamento da Seguridade Social e trata o orçamento público como uma equação que envolve apenas receita, despesa e superávit primário. Não haveria, assim, a menor diferença se os recursos do superávit vêm do orçamento da Seguridade Social ou de outra fonte qualquer do orçamento.

Interessa apenas o resultado fiscal, isto é, o quanto foi economizado para pagar despesas financeiras com juros e amortização da dívida pública.

Por isso o debate torna-se acirrado. De um lado, estão os que advogam a redução dos gastos financeiros, via redução mais acelerada da taxa de juros, para liberar recursos para a realização do investimento público necessário ao crescimento. Do outro, estão os defensores do corte lento e milimétrico da taxa de juros e de reformas para reduzir gastos com benefícios previdenciários e assistenciais. Na verdade, o que está em debate são as diferentes visões de sociedade, de desenvolvimento econômico e de valores sociais.

Jornal da UFRJ: Há uma confusão entre as noções de Previdência e de Seguridade Social que dificulta a compreensão dessa questão. Isso é proposital?

Denise Gentil: Há uma grande dose de desconhecimento no debate, mas há também os que propositadamente buscam a interpretação mais conveniente. A Previdência é parte integrante do sistema mais amplo de Seguridade Social.

É parte fundamental do sistema de proteção social erguido pela Constituição de 1988, um dos maiores avanços na conquista da cidadania, ao dar à população acesso a serviços públicos essenciais. Esse conjunto de políticas sociais se transformou no mais importante esforço de construção de uma sociedade menos desigual, associado à política de elevação do salário mínimo. A visão dominante do debate dos dias de hoje, entretanto, freqüentemente isola a Previdência do conjunto das políticas sociais, reduzindo-a a um problema fiscal localizado cujo suposto déficit desestabiliza o orçamento geral. Conforme argumentei antes, esse déficit não existe, contabilmente é uma farsa ou, no mínimo, um erro de interpretação dos dispositivos constitucionais.

Entretanto, ainda que tal déficit existisse, a sociedade, através do Estado, decidiu amparar as pessoas na velhice, no desemprego, na doença, na invalidez por acidente de trabalho, na maternidade, enfim, cabe ao Estado proteger aqueles que estão inviabilizados, definitiva ou temporariamente, para o trabalho e que perdem a possibilidade de obter renda. São direitos conferidos aos cidadãos de uma sociedade mais evoluída, que entendeu que o mercado excluirá a todos nessas circunstâncias.

Jornal da UFRJ: E são recursos que retornam para a economia?

Denise Gentil: É da mais alta relevância entender que a Previdência é muito mais que uma transferência de renda a necessitados. Ela é um gasto autônomo, quer dizer, é uma transferência que se converte integralmente em consumo de alimentos, de serviços, de produtos essenciais e que, portanto, retorna das mãos dos beneficiários para o mercado, dinamizando a produção, estimulando o emprego e multiplicando a renda. Os benefícios previdenciários têm um papel importantíssimo para alavancar a economia. O baixo crescimento econômico de menos de 3% do PIB (Produto Interno Bruto), do ano de 2006, seria ainda menor se não fossem as exportações e os gastos do governo, principalmente com Previdência, que isoladamente representa quase 8% do PIB.

Jornal da UFRJ: De acordo com a Constituição, quais são exatamente as fontes que devem financiar a Seguridade Social?

Denise Gentil: A seguridade é financiada por contribuições ao INSS de trabalhadores empregados, autônomos e dos empregadores; pela Cofins, que incide sobre o faturamento das empresas; pela CSLL, pela CPMF (que ficouconhecida como o imposto sobre o cheque) e pela receita de loterias. O sistema de seguridade possui uma diversificada fonte de financiamento. É exatamente por isso que se tornou um sistema financeiramente sustentável, inclusive nos momentos de baixo crescimento, porque além da massa salarial, o lucro e o faturamento são também fontes de arrecadação de receitas. Com isso, o sistema se tornou menos vulnerável ao ciclo econômico. Por outro lado, a diversificação de receitas, com a inclusão da taxação do lucro e do faturamento, permitiu maior progressividade na tributação, transferindo renda de pessoas com mais alto poder aquisitivo para as de menor.

Jornal da UFRJ: Além dessas contribuições, o governo pode lançar mão do orçamento da União para cobrir necessidades da Seguridade Social?

Denise Gentil: É exatamente isso que diz a Constituição. As contribuições sociais não são a única fonte de custeio da Seguridade. Se for necessário, os recursos também virão de dotações orçamentárias da União. Ironicamente tem ocorrido o inverso. O orçamento da Seguridade é que tem custeado o orçamento fiscal.

Jornal da UFRJ: O governo não executa o orçamento à parte para a Seguridade Social, como prevê a Constituição, incorporando-a ao orçamento geral da União. Essa é uma forma de desviar recursos da área social para pagar outras despesas?

Denise Gentil: A Constituição determina que sejam elaborados três orçamentos: o orçamento fiscal, o orçamento da Seguridade Social e o orçamento de investimentos das estatais. O que ocorre é que, na prática da execução orçamentária, o governo apresenta não três, mas um único orçamento chamandoo de "Orçamento Fiscal e da Seguridade Social", no qual consolida todas as receitas e despesas, unificando o resultado. Com isso, fica difícil perceber a transferência de receitas do orçamento da Seguridade Social para financiar gastos do orçamento fiscal. Esse é o mecanismo de geração de superávit primário no orçamento geral da União. E, por fim, para tornar o quadro ainda mais confuso, isola-se o resultado previdenciário do resto do orçamento geral para, com esse artifício contábil, mostrar que é necessário transferir cada vez mais recursos para cobrir o "rombo" da Previdência. Como a sociedade pode entender o que realmente se passa?

Jornal da UFRJ: Agora, o governo pretende mudar a metodologia imprópria de cálculo que vinha usando. Essa mudança atenderá completamente ao que prevê a Constituição, incluindo um orçamento à parte para a Seguridade Social?

Denise Gentil: Não atenderá o que diz a Constituição, porque continuará a haver um isolamento da Previdência do resto da Seguridade Social. O governo não pretende fazer um orçamento da Seguridade. Está propondo um novo cálculo para o resultado fiscal da Previdência. Mas, aceitar que é preciso mudar o cálculo da Previdência já é um grande avanço. Incluir a CPMF entre as receitas da seguridade é um reconhecimento importante, embora muito modesto. Retirar o efeito dos incentivos fiscais sobre as receitas também ajuda a deixar mais transparente o que se faz com a política previdenciária. O que me parece inadequado, entretanto, é retirar a aposentadoria rural da despesa com previdência porque pode, futuramente, resultar em perdas para o trabalhador do campo, se passar a ser tratada como assistência social, talvez como uma espécie de bolsa. Esse é um campo onde os benefícios têm menor valor e os direitos sociais ainda não estão suficientemente consolidados.

Jornal da UFRJ: Como você analisa essa mudança de postura do Governo Federal em relação ao cálculo do déficit? Por que isso aconteceu?

Denise Gentil: Acho que ainda não há uma posição consolidada do governo sobre esse assunto. Há interpretações diferentes sobre o tema do déficit da Previdência e da necessidade de reformas. Em alguns segmentos do governo fala-se apenas em choque de gestão, mas em outras áreas, a reforma da previdência é tratada como inevitável. Depois que o Fórum da Previdência for instalado, vão começar os debates, as disputas, a atuação dos lobbies e é impossível prever qual o grau de controle que o governo vai conseguir sobre seus rumos. Se os movimentos sociais não estiverem bem organizados para pressionarem na defesa de seus interesses pode haver mais perdas de proteção social, como ocorreu em reformas anteriores.

Jornal da UFRJ: A previdência pública no Brasil, com seu grau de cobertura e garantia de renda mínima para a população, tem papel importante como instrumento de redução dos desequilíbrios sociais?

Denise Gentil: Prefiro não superestimar os efeitos da Previdência sobre os desequilíbrios sociais. De certa forma, tem-se que admitir que vários estudos mostram o papel dos gastos previdenciários e assistenciais como mecanismos de redução da miséria e de atenuação das desigualdades sociais nos últimos quatro anos. Os avanços em termos de grau de cobertura e de garantia de renda mínimapara a população são significativos. Pela PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), cerca de 36,4 milhões de pessoas ou 43% da população ocupada são contribuintes do sistema previdenciário. Esse contingente cresceu de forma considerável nos últimos anos, embora muito ainda necessita ser feito para ampliar a cobertura e evita que, no futuro, a pobreza na velhice se torne um problema dos mais graves. O fato, porém, de a população ter assegurado o piso básico de um salário mínimo para os benefícios previdenciários é de fundamental importância porque, muito embora o valor do salário mínimo esteja ainda distante de proporcionar condições dignas de sobrevivência, a política social de correção do salário mínimo acima da inflação tem permitido redução da pobreza e atenuado a desigualdade da renda.

Cerca de dois milhões de idosos e deficientes físicos recebem benefícios assistenciais e 524 mil são beneficiários do programa de renda mensal vitalícia. Essas pessoas têm direito a receber um salário mínimo por mês de forma permanente.

Evidentemente que tudo isso ainda é muito pouco para superar nossa incapacidade histórica de combater as desigualdades sociais. Políticas muito mais profundas e abrangentes teriam que ser colocadas em prática, já que a pobreza deriva de uma estrutura produtiva heterogênea e socialmente fragmentada que precisa ser transformada para que a distância entre ricos e pobres efetivamente diminua. Além disso, o crescimento econômico é condição fundamental para a redução da pobreza e, nesse quesito, temos andado muito mal. Mas a realidade é que a redução das desigualdades sociais recebeu um pouco mais de prioridade nos últimos anos do que em governos anteriores e alguma evolução pode ser captada através de certos indicadores.

Jornal da UFRJ: Apesar do superávit que o governo esconde, o sistema previdenciário vem perdendo capacidade de arrecadação. Isso se deve a fatores demográficos, como dizem alguns, ou tem relação mais direta com a política econômica dos últimos anos?

Denise Gentil: A questão fundamental para dar sustentabilidade para um sistema previdenciário é o crescimento econômico, porque as variáveis mais importantes de sua equação financeira são emprego formal e salários. Para que não haja risco do sistema previdenciário ter um colapso de financiamento é preciso que o país cresça, aumente o nível de ocupação formal e eleve a renda média no mercado de trabalho para que haja mobilidade social. Portanto, a política econômica é o principal elemento que tem que entrar no debate sobre "crise" da Previdência. Não temos um problema demográfico a enfrentar, mas de política econômica inadequada para promover o crescimento ou a aceleração do crescimento.

Fonte: Jornal da UFRJ

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

A OMISSÃO É UMA FORMA DE AÇÃO POLÍTICA

* Honório de Medeiros

Três anos. Três. No próximo domingo completará três anos que o STF está sentado sobre um processo contra Renan, o Presidente do Senado. O STF sequer recebeu a denúncia da Procuradoria, decerto para que não o chamem formalmente de réu. Lewandowsky - sempre ele - se sentou em cima dos autos durante um ano e sete meses. A omissão, claro, é uma forma de ação política. E as vítimas somos nós.

Lewandowsky no STF, Eduardo Cunha na Câmara, Renan no Senado, Dilma na Presidência, Del Nero na CBF, que fazer? 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

DE QUAL MASSA SÃO EXTRAÍDOS OS FUNDAMENTALISTAS

* Honório de Medeiros


Aquele diálogo de Sócrates com um escravo de Ménon, relatado por Platão, no qual ele demonstra que seu método de questionamento e reminiscência pode fazê-lo aprender um complexo problema de geometria, pressupõe o interesse integral de quem é ensinado. Somente assim é possível o avanço no conhecimento. 

O ensino, hoje, massificado, informa e não permite o questionamento instigante, fomentador. Não há tempo para isso, e o sistema precisa cumprir seu ciclo burocrático. Alguém precisa por um carimbo virtual na ficha do aluno e atestar que ele passou de ano e desocupou a vaga para outro, nessa linha de produção "educativa" que caracteriza o Estado, depois de ter estudado em livros cuja essência é a doutrinação ideológica visando sua inserção "produtiva" no mercado de trabalho.

As informações, não ansiadas pelos alunos, tampouco questionadas, se recebidas com atenção, quando o são, puramente decorativas, têm destino certo: a lata de lixo da memória. Anos depois é trágico, não fosse cômico, presenciar ex-alunos se divertindo em relatar nomes, ideias e disciplinas "esquisitas" pelas quais passaram ao longo de sua vida estudantil, cujo sentido lhes escapa completamente. Decoram para passar por etapas burocráticas que visam lhes assegurar um nicho na cadeia reprodutiva do sistema. Nichos construídos para assegurar a estabilidade do status quo.

Outra face dessa destruição contínua da mente das pessoas pelo Estado é a impossibilidade, cada dia mais concreta, de fazê-los compreender o processo lógico. De levá-los a pensar. Não há mais o interesse que o escravo de Ménon apresentou na frente de Sócrates. A não ser de natureza técnica, como, por exemplo, em um curso de solda ou mecânica de automóvel. Desde criança preparam nosso cérebro para nos aferrarmos a ideias-standards, que serão utilizadas durante a vida inteira. Tanto o é que a literatura e o oferecem exemplos de exceções que por uma razão ou outra, ainda um mistério, transformam-se em outsiders, rompendo os grilhões dessas amarras. Gandhi, por exemplo.

Não por outra razão, confrontada com argumentos pacientemente construídos com uma aluna reticente, em uma tentativa canhestra de imitar Sócrates, por um professor de lógica que tentava estabelecer conjuntamente a distinção fundamental para o exercício de pensar, qual seja a diferença entre juízos de valor e juízos de fato, este ouviu: "não adianta; essa é sua forma de pensar. A minha é diferente. Cada um tem a sua." Como se tal diferença fosse questão de opinião. 

É dessa massa que são extraídos os fundamentalistas. Fazer o quê?

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

ATIVISMO JUDICIAL OU HIPERGARANTISMO

* Honório de Medeiros 

Um dos mitos fundantes que norteiam a nossa concepção liberal de Estado é a do contrato social. Por esse mito cedemos a liberdade que supostamente nos é inerente para que o Estado impeça que nos destruamos uns aos outros.
 
Homo homini lupus, escreveu Thomas Hobbes, o homem é o lobo do homem, o primeiro dos grandes contratualistas. Frase de Plauto, em “Asinaria”, textualmente Lupus est homo homini non homo, expõe a causa-síntese, a constatação que impele o Homem a optar pelo pacto social: em o assegurando, a sociedade regula o indivíduo, o coletivo se impõe sobre o particular, e fica, assim, assegurada a sobrevivência da espécie.
 
Caso não aconteça o pacto social, bellum omnium contra omnes, guerra de todos contra todos até a auto-aniquilação no Estado de Natureza, é o que ocorreria se imperasse a liberdade absoluta com a qual nasciam os homens, diz-nos, ainda, Hobbes, no final do Século XVI, início do Século XVII - recuperando a noção de contrato social exposta claramente por Protágoras de Abdera, a se crer em Platão.
  
Essa noção, de pacto ou contrato social, até onde sabemos, foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias, como podemos ler na “Política”, de Aristóteles (cap. III):
 
De outro modo, a sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização, e na extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições a Lei se torna um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, “uma garantia mútua de direitos”, incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que o Estado deve fazer.
 
E muito embora um estudioso outsider do legado grego tal qual I. F. Stone defenda que a primeira aparição da teoria do contrato social está na conversa imaginária de Sócrates com as Leis de Atenas relatada no “Críton”, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à hipótese Licofronte estar correta. É o que se depreende da leitura de “Os Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker.
                                     
Entretanto é com Jean Jacques Rousseau, após Hobbes e John Locke, que se firma o mito fundante do contrato social, influenciando diretamente as revoluções Americana e Francesa, bem como o surgimento da idéia de Estado conforme a concebemos ainda hoje. Em “O Contrato Social”, Rousseau põe na vontade dos homens, da qual emana o Estado após o pacto social, a origem absoluta de toda a lei e todo o direito, fonte de toda a justiça. O corpo político, assim formado, tem um interesse e uma vontade comuns, a vontade geral de homens livres.
 
Quanto a esse corpo político, José López Hernández em “Historia de La Filosofía Del Derecho Clásica y Moderna”, observa que Rousseau atribui o poder legislativo ao povo, já que esse mesmo povo, existente enquanto tal por intermédio do contrato social, detém a soberania e, portanto, todo o poder do Estado.
 
As leis, inclusive a do contrato social, que emanam do povo, assim as vê Rousseau: são atos da vontade geral, exclusivamente; “é unicamente à lei que todos os homens devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a elas”.
 
O ideário acima exposto, no qual a lei a todos submete por que decorrente da vontade geral do povo, que detém a soberania - pode ser encontrado em obras muito recentes, como o “Curso de Direito Constitucional”, primeira edição de 2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes e outros. Às páginas 37 do Curso, lê-se:
 
Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade geral; (...)
 
Assim como é encontrado, expressamente, enquanto cláusula pétrea, imodificável, na Constituição da República Federativa do Brasil, no parágrafo único do seu artigo 1º:
 
Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
 
Ou seja, o exercício do poder é do povo, que em não o exercendo diretamente, o faz por intermédio de representantes seus eleitos. Eleitos, sublinhe-se. De onde se infere algo absolutamente trivial: enquanto, digamos assim, os parlamentares são o povo, os juízes são servidores do Estado, essa emanação da Sociedade.
 
Há algo de absurdo, portanto, nessa doutrina do “ativismo judicial” que viceja célere nos tribunais do Brasil, principalmente no nosso Supremo Tribunal Federal.
 
Entenda-se, aqui, como “ativismo judicial”, o “suposto” papel constituinte do Supremo, reelaborando e reinterpretando continuamente a Constituição, conforme afirmação sutil do Ministro Celso de Mello em entrevista ao “Estado de São Paulo”, criando normas jurídicas, seja através da “mutação constitucional”, na qual a forma permanece, mas o conteúdo é modificado, seja por intermédio da identificação de lacunas inexistentes no Ordenamento Jurídico, sempre, em ambos os casos, com fulcro em uma onisciência jurídica que expressa um vaidoso e preocupante subjetivismo, formalizada via uma retórica calcada em princípios abstrusos, confusos e difusos, indeterminados e nada concretos, da nossa Constituição Federal.
 
Não é por razões ideológicas ou pressão popular. É porque a Constituição exige. Nós estamos traduzindo, até tardiamente, o espírito da Carta de 88, que deu à corte poderes mais amplos, disse, arrogantemente, o então presidente do STF Gilmar Mendes, supondo que fora do “habitat” jurídico, estreito por nascimento e vocação, aqueles que têm alguma formação filosófica possam aceitar que em pleno século XXI a Corte Constitucional seja, para os cidadãos, o que a Igreja foi na Idade Média, quando se atribuiu o papel de intérprete do pensamento e da vontade de Deus.
 
Pergunta-se: teria o judiciário legitimidade, levando-se em consideração o que acima se expõe, para avançar na seara do legislativo, passando por cima da soberania do povo em produzir leis através de seus representantes, seja preenchendo lacunas (criando leis), seja alterando o sentido de normas jurídicas, seja modificando, via sentença, a legislação infraconstitucional? Ainda: teria amparo legal o STF para tanto?
 
É autoritário o cerne do argumento que norteia o ativismo judicial. Sob o véu de fumaça que é a noção de que haja um “espírito constitucional” a ser apreendido (interpretado segundo técnicas hermenêuticas somente acessíveis a iniciados – os guardiões do verdadeiro e definitivo saber) está o retorno do “mito platônico das formas e idéias” cuja contemplação e apreensão é privilégio dos Reis-Filósofos.
 
É a astúcia da razão a serviço do Poder. Platão, esse gênio atemporal, legou aos espertos, com sua gnosiologia, a eterna possibilidade de enganar os incautos lhes dizendo, das mais variadas e sofisticadas formas, ao longo da história, que somente “alguns”, os que estão no lugar certo, e na hora certa, podem encontrar e dizer “o espírito” da Lei, o bom e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado.
 
O mesmo estratagema a Igreja de Santo Agostinho, esse platônico empedernido, por séculos usou para administrar seu Poder: unicamente a ela cabia ligar a terra ao céu, e o céu à terra, por que unicamente seus príncipes sabiam e podiam interpretar corretamente o pensamento de Deus gravado na Bíblia, como nos lembra Marilena Chauí em “Convite à Filosofia”:
 
A autoridade apostólica não se limita ao batismo, eucaristia e evangelização. Jesus deu aos apóstolos o poder para ligar os homens a Deus e Dele desliga-los, quando lhes disse, através de Pedro: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as Chaves do Reino: o que ligares na Terra, será ligado no Céu, o que desligares na Terra será desligado no Céu’. Essa passagem do Evangelho de Mateus será conhecida como ‘princípio petríneo das Chaves’ e com ela está fundada a Igreja como instituição de poder. Esse poder, como se observa, é teocrático, pois sua fonte é o próprio Deus (é o Filho quem dá poder a Pedro); e é superior ao poder político temporal, uma vez que este seria puramente humano, frágil e perecível, criado por sedução demoníaca (idem).
 
E, assim, como no Brasil a última palavra acerca da “correta” interpretação de uma norma jurídica é do STF, e somente este pode “contemplar” e “dizer” o verdadeiro “espírito das leis”, aos moldes dos profetas bíblicos, em sua essência última, mesmo que circunstancial, estamos nós agora, além de submetidos ao autoritarismo dos pouco preparados representantes do povo, ao autoritarismo dos ativistas judiciais.