quarta-feira, 17 de outubro de 2012

OS MISTÉRIOS DO ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ: QUARTA E ÚLTIMA TEORIA, PRIMEIRA PARTE


Honório de Medeiros
 
Quarta teoria: o ataque a Mossoró resultou de um plano político (primeira parte)
 
QUESTÕES SEM RESPOSTA
 
Essa teoria vem sendo construída lentamente, ao sabor do tempo, pelos estudiosos do assunto, perplexos ante a imensa quantidade de fatos inexplicados alusivos ao ataque a Mossoró, aguardando quem se habilite a relacioná-los e, a eles, dar unidade, ou seja, coerência e completude.
 
Antes, entretanto, é necessário que sejam elencadas algumas indagações, até hoje não respondidas, acerca do episódio, para construir-se o contexto adequado à entrada na questão, melindrosa e complexa por sua própria natureza, tendo em vista os personagens que dela fazem parte direta ou indiretamente.
 
São elas:
 
Primeiro: estamos na última quinzena de abril de 1927. Argemiro Liberato, de Pombal, Paraíba, escreve a seu compadre Coronel Rodolpho Fernandes, e lhe põe a par da pretensão de chefes de bandidos daquela região de atacar Mossoró. Que chefes de bandidos seriam esses?
 
Como Massilon era chefe de bandidos, haja vista o ataque a Brejo do Cruz, no mesmo estado, e ligado aos detentores do poder na Região que incluía Pombal, teria ele essa pretensão[1]? Haveria relação entre essa pretensão de atacar Mossoró e o interesse de coronéis paraibanos, associados a norte-rio-grandenses, em relação a Apodi, Mossoró e o Rio Grande do Norte? Saberia a oposição ao Coronel Rodolpho Fernandes, que era ligada à oposição ao Coronel Francisco Pinto (líder político e Prefeito do Apodi), esta, por sua vez, ligada aos coronéis paraibanos, da existência dessa pretensão?
 
Coronel Chico Pinto
 
Segunda: por qual razão, Massilon não matou o Coronel Chico Pinto quando atacou Apodi, se aparentemente era esse o intuito? Bronzeado[2] não soube explicar.
 
Bronzeado
 
O objetivo de Massilon, acertado com seus verdadeiros chefes e desconhecido de seus parceiros, teria sido apenas desmoralizar o Coronel Chico Pinto, preparando-se o caminho para se criar, na imprensa e população, a noção, a consciência da presença corriqueira do cangaço e cangaceiros no Rio Grande do Norte[3], banalizando possíveis homicídios por eles realizados, algo até então inexistente no estado, como preparativo para alguma ação específica a ser realizada durante o ataque a Mossoró?
 
Terceira: por qual razão o Coronel Rodolpho Fernandes estava em franco dissídio com o Governador José Augusto e seu chefe de polícia Manoel Benício de Melo[4], ao ponto de alertá-lo acerca de sua crescente impopularidade, tendo, inclusive, lhe ameaçado por duas vezes com um rompimento político, e quais as consequências desse litígio na política mossoroense e oestana?
 
Governador José Augusto Bezerra de Medeiros
 
 
Por qual razão foi sustado, na última hora, o embarque de policiais natalenses escalados para defenderem Mossoró[5]?
 
 
Quarta: quem era a oposição ao Coronel Rodolpho Fernandes que, na última quinzena de abril de 1927, em reunião por ele convocada, enquanto Prefeito, para expor o problema da futura invasão da cidade, desfruta do seu receio[6], ridiculariza suas advertências à população, critica suas providências tomadas, chama-o de velho medroso, semeia boatos e intrigas políticas na cidade, principalmente ameaças de que o Governo do Estado cogitava desarmar os civis que lhe eram afeiçoados?
 
Quinta: de quem teriam sido as “murmurações tendenciosas” que se seguiram ao discurso do médico José Fernandes Gurjão, orador que sucedeu Rodolpho Fernandes no dia 12 de junho, em reunião ao meio-dia, no salão da Prefeitura de Mossoró, mencionadas por Raul Fernandes[7], filho do Prefeito?
 
Sexta: por qual razão a edição de 15 de maio de 1927, quase um mês antes do ataque, do jornal “O Mossoroense[8]” insinua, sem rodeios, que a invasão a Mossoró, a ocorrer em dias vindouros, integra empreitada de grande vulto?
 
Sétima: saberia Lampião que sua incursão ao Rio Grande do Norte, Estado onde nunca estivera, a percorrer região plana, descampada, larga e extensa[9], sem elevações importantes desde Luis Gomes até Mossoró, tirante a Serra do Martins, feita com barulho, saques, depredações, tiros, mortes, contrariando toda sua experiência anterior, contaria com a omissão do Governo estadual?
 
Oitava: por qual razão o valor do “pedido” de Lampião ao Coronel Rodolpho Fernandes, quatrocentos mil réis[10], foi irreal, de tão exorbitante, induzindo a crença de que teria sido mera “cortina de fumaça”?
 
Nona: por qual razão Lampião não atacou a agência do Banco do Brasil em Mossoró, onde eram feitos os depósitos em dinheiro grosso de toda a região, e que no dia da invasão contava com mais de novecentos contos de réis em depósitos?
 
Décima: por qual razão Lampião não atacou o rico comércio da cidade, localizado em área razoavelmente distante da residência do Coronel Rodolpho Fernandes[11], conhecido por Massilon desde seus tempos de almocreve?
 
Décima-Primeira: por qual razão a residência do Coronel Rodolpho Fernandes foi o ponto preferencialmente visado pelos cangaceiros[12]?
Residência do Coronel Rodolpho Fernandes, durante a invasão, vendo-se, ao fundo, a Igreja de São Vicente
 
Décima-Segunda: por qual razão Massilon ficou responsável por atacar a residência do Coronel Rodolpho Fernandes pelos fundos (garagem), onde supostamente estava o ponto mais frágil da defesa do palacete, enquanto o grupo de Jararaca distraía, pela frente, os defensores, e Lampião, no cemitério, com o grosso do bando, apenas dava cobertura, ao invés de atacar o centro da cidade, onde se localizava o comércio? 
 
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PARA ENTENDER O QUÊ SE EXPÕE AQUI, É CONVENIENTE LER OS TEXTOS ANTERIORES POSTADOS EM www.honoriodemedeiros.blogspot.com PROCURE Cangaço, DENTRE OS Marcadores, E LEIA TUDO QUANTO FOI ESCRITO ACERCA DO TEMA.


[1] O episódio do ataque de Massilon a Brejo do Cruz, na Paraíba, foi explicado em textos anteriores desta série.
 
[2] “LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; NONATO, Raimundo; sexta edição; Coleção Mossoroense; 2005; Mossoró. No famoso relatório da agência do Banco do Brasil em Mossoró referente ao primeiro semestre de 1927, da lavra de Jaime Guedes, então seu gerente, encontramos um trecho que traduz sua perplexidade com esse fato: “O assalto visava a morte e aplicação de surras em determinadas pessoas que o chefe do grupo, não se sabe por que, não levou a efeito” (“LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; NONATO, Raimundo sexta edição; Coleção Mossoroense; 2005; Mossoró).
 
[3] Em tática de guerrilha esse tipo de ação se denomina “manobra diversionista”.
 
[4] Mirabeau Melo, chefe do telégrafo em Mossoró e irmão de Manoel Benício de Melo, atuava como informante local e porta-voz do governo, e era um medíocre intrigante, nos diz Paulo Fernandes, filho do Coronel Rodolpho Fernandes, em carta a Nertan Macedo, neste livro parcialmente reproduzida. Acerca de Manoel Benício de Melo nos informa o escritor Marcos Pinto: “Amigo HONÓRIO. Bom dia. Garimpando novidades no vetusto jornal "O MOSSOROENSE", edição de 18.03.1914, encontrei os laços da grande amizade entre FELIPE GUERRA (Felipe Guerra era casado com uma irmã de Tylon Gurgel) e BENÍCIO FILHO, sendo certo que o FELIPE foi padrinho de casamento do Benício que ocorreu em 14 de Março de 1914, em Mossoró. Escoimando-se os fatos ocorridos antes e depois do ataque de Lampião à Mossoró, o fato de que o Benício era o Diretor Geral da Segurança Pública do RN (cargo que corresponde ao atual de Secretário de Segurança), depreende-se que o mesmo deveria ter tido todo o empenho para o envio de força policial  para  guarnecer  Mossoró. Não o fez, de sorte que o nosso bravo Rodolfo Fernandes defendeu a cidade convocando amigos e civis voluntários. Ora, se o FELIPE GUERRA era compadre e amigo íntimo do Jerônimo Rosado, e exercia influência sobre o Benício Melo Filho, deve-se atribuir, dentre outros fatores, que o Felipe Guerra, já Desembargador desde 1919 e residente em Natal tenha traficado influência para que o Benício Filho adotasse posição pusilânime e que deixou muito à  desejar, em  relação  à  defesa   de  Mossoró. Qualquer  novidade enviarei pra Vosmincê. Abraço. Marcos Pinto.”
 
[5][5] Gil Soares nos conta esse episódio (“O PASSADO VISTO POR GIL SOARES”; MUINIZ, Caio Cézar; Coleção Mossoroense; Série “C”; V. 1.477; 2005; Mossoró): “Mas Cascardo preferiu manter à frente da Municipalidade o jovem médico Paulo Fernandes, já estudioso de problemas econômicos da região. Nomeado na segunda fase política da Interventoria Aluísio Moura, começara destinando à Associação de Damas de Caridade os subsídios do cargo. Quatro anos antes, seu pai, esse admirável Prefeito Rodolfo Fernandes – depois de sustado inexplicavelmente, à última hora, na estação ferroviária de Natal, o embarque de contingente da Política para enfrentar o numeroso bando de cangaceiros chefiado por Lampião (grifei) – organizara e dirigia, com recursos locais e a decisiva cooperação de numerosos habitantes, a defesa de sua cidade, sendo rechaçada, dentro das ruas, a horda invasora.” Raimundo Nonato: “No dia 13 de junho, Mossoró contava só com 22 soldados” (“LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; Sexta edição; Coleção Mossoroense; 2005; Mossoró).
 
[6] Raul Fernandes em “A MARCHA DE LAMPIÃO”; Paulo Fernandes em carta a Nertan Macedo.
 
[7] Raul Fernandes em “A MARCHA DE LAMPIÃO”.
 
[8] Jornal dirigido por Rafael Fernandes, principal líder político situacionista mossoroense desde o falecimento do Coronel Francisco Pinheiro de Almeida Castro, e primo de Rodolpho Fernandes.
 
[9] Em quatro dias os cangaceiros cobriram aproximadamente 900 quilômetros entre ida e volta. Raimundo Nonato observa: “Constituída, em menor parte, de vasto descampado e larga área de terreno plano, quase sem outras elevações importantes, depois dos prolongamentos subordinados às ramificações e contrafortes das Serras de Luis Gomes e Martins, a região era precariamente escassa de abrigos e desprotegida aos elementos essenciais de amparo, defesa e esconderijos naturais” (“ LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; Sexta edição; Coleção Mossoroense; 2005; Mossoró).
 
[10]  Para se ter uma idéia do valor do montante, em 1927, 1 (hum) mil-réis valia US$ 8.457 (oito mil, quatrocentos e cinquenta e sete dólares). Portanto Lampião exigiu US$ 3.382.800 (três milhões, trezentos e oitenta e dois mil dólares) ao Coronel Rodolpho Fernandes. Esse valor, corrigido pela inflação da moeda americana implicaria, hoje, maio de 2012, em U$ 43.130.700 (quarenta e três milhões, cento e trinta mil dólares). O cálculo foi feito de acordo com a TABELA DE CONVERSÃO DE MIL-RÉIS EM DÓLARES constante de “OS CANGACEIROS” (PERICÁS, Luiz Bernardo; Boitempo; 1ª edição; 20120; Rio de Janeiro) e http://www.dollartimes.com/calculators/inflation.htm
 
[11] Rodolpho Fernandes residia no “Bairro Novo”, distante do centro da cidade, quase deserto, nas vizinhanças da Igreja de São Vicente e próximo ao Cemitério.
 
[12] Jornal “O NORDESTE”, e Jornal “A REPÚBLICA”, este último colhendo depoimento do Professor Eliseu Viana (“LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; NONATO, Raimundo; Sexta edição; Coleção Mossoroense; 2005; Mossoró): “O Sr. Prefeito da Cidade, Cel. Rodolfo Fernandes, a entidade mais visitada pelos bandidos (...)”. O próprio Rodolpho Fernandes assim aludiu ao assunto em correspondência a seu Compadre Almeida Barreto: “Pelos jornais terá lido que a 13 de junho, Lampeão atacou Mossoró, tendo de preferência cercado minha residência pela frente, pelo lado da casa de Alfredo e pelos fundos” (“RODOLPHO FERNANDES”; GASTÃO, Paulo; Coleção Mossoroense; Série “B”; nº 1.637; 1999; Mossoró.
 

terça-feira, 16 de outubro de 2012

ALDO MEDEIROS GANHA APOIO DE PROFESSORES DE DIREITO



 
 
PROFESSORES DE DIREITO DECLARAM APOIO À CANDIDATURA ALDO MEDEIROS/LÚCIA JALES PARA A OAB/RN
 
Os professores e advogados ALEXANDRE PINTO (UNP/IAP), HONÓRIO DE MEDEIROS (UNP), VLADIMIR FRANÇA (UFRN), JULIANA ROCHA (UNIFARN), JOSÉ MARCELO (UNP), FERNANDO GABURN (UERN), SANDERSON MENEZES (UNIFARN) e TACIANA JALES (UNP), além de outros, declararam seu apoio à candidatura Aldo Medeiros/Lúcia Jales, e participam do movimento autônomo de professores universitários que sendo advogados, resolveram se posicionar ante a próxima eleição para a OAB/RN.
Aldo Medeiros e Lúcia Jales têm propostas específicas para os advogados que são professores universitários. Dentre elas se destaca a constituição de uma COMISSÃO composta por advogados professores que terá, além de outras atribuições, a de acompanhar o ensino jurídico e a missão de lutar para a fixação de um piso salarial digno para os docentes dos cursos de Direito do Rio Grande do Norte

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

UMA CERTA FOTOGRAFIA NA PAREDE

 
"American Girl in Italy", 1951, by Ruth Orkin

 
Honório de Medeiros

Eu e a garçonete de olheiras profundas concordamos quanto à fotografia na parede. A noite apenas começava. Mas ela já parecia estar muito cansada. Fiquei tentado a lhe perguntar se dormira nas últimas vinte e quatro horas. “Melhor não”, disse aos meus botões. A fotografia - melhor dizendo, a reprodução dividia com outras, em preto e branco, a atenção dos freqüentadores. “É a que chama mais atenção”, disse-me ela, enquanto me servia uma taça de vinho. “Por que será?”, perguntei-lhe. “Sei lá; porque é bonita”. Furtei-me à tentação de lhe indagar em que ela se baseava para achar uma reprodução mais bonita que a outra.
Olhei novamente a fotografia. Nela, uma americana de mais ou menos vinte anos, na década de cinqüenta, atravessa um grupo de rapazes italianos postados aleatoriamente em uma esquina de Roma. Malgrado o nariz empinado e as passadas rápidas há algo de aflito no seu olhar, causado talvez pela vergonha de tão exacerbada atenção. Bela obra de arte. Ruth Orkin, que a fez, nos contou que não foi difícil convencer a americana que conhecera em uma pensão para turistas a servir de modelo. Tampouco houvera produção. Exceto a idéia apresentada à moça, todo o restante foi espontâneo.
Contei tudo isso à garçonete de olheiras e seios fartos. Ela me pareceu interessada. Comentei como não deveria estar, hoje, a modelo, se fosse viva. “Velha, enrugada, feia...”, me respondeu, “como eu vou ficar, você vai ficar, todos nós ficamos com o passar dos anos”.
A noite começava a ficar febril. Casais entravam, mulheres e homens desacompanhados, a maioria turista. Quando ela me trouxe a massa, já éramos quase amigos. Tínhamos ficado cúmplices observando tudo o que se passava ao nosso redor: a solidão do rapaz da mesa vizinha a dialogar constantemente com seu celular; o casal de “gringos” que nunca trocava uma palavra um com o outro; as amigas que se namoravam às escondidas; o louro quase albino - talvez escandinavo - e sua acompanhante morena quase negra. Cada vez que ela ia, eu perscrutava ao meu redor o próximo capítulo da novela que extraíamos da noite; e ela me chegava com novidades da periferia do restaurante, onde meu olhar não alcançava.
“Você não se preocupa com sua beleza?”, lhe perguntei. “Como assim?” “Essa história de você trabalhar a noite toda”. “Olhe, eu não me considero feia, embora não seja nenhuma “miss”; o problema é que não adianta ficar pensando em levar uma vida de dondoca quando se nasceu pobre. Lógico que eu gostaria de ter tempo pra me cuidar. Mas até acho que beleza hoje é algo muito comum. Todo mundo é bonito. O difícil é ter charme”. “Mulher bonita os homens estão comprando aí fora a preço de banana”.
“Quanto você ganha aqui, por mês?” “Uns mil”. As meninas, aquelas adolescentes das quais os jornais e as teses de mestrado em sociologia e a televisão e o congresso falam, continuam passando em frente ao restaurante. São alegres, palradoras, pelo que se vê e ouve. Ganham em torno de cem reais por programa. E fazem dois ou três por dia. Dá uns quatro mil por mês.
A conta chega.
“Posso lhe perguntar outra coisa?” “Claro”, ela me diz. “Quando você olha para a reprodução da fotografia, qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça?” “Uma sensação de que tudo passa, mas permanece. Ontem, era aquela americana e os rapazes italianos; hoje é qualquer outra... A vida continua, mas é como se fosse sempre a mesma”. Ela não esperou qualquer comentário meu à resposta. Talvez já lhe tivessem perguntado isso. Ou, quem sabe, sequer teve tempo para se perguntar por que eu lhe fizera tal pergunta. Apenas respondeu. Mecanicamente.
Desço a escada e ganho a rua. Procuro o carro lembrando um romance que fez furor quando eu era adolescente: “Sidarta”, de Herman Hesse. Em um certo momento da estória, o protagonista observa para um seu amigo e discípulo mais ou menos aquilo que a garçonete havia me dito, contemplando as águas de um rio. Para ele, Sidarta, assim como para a garçonete, embora as águas estejam sempre indo a busca do oceano, o rio continua no mesmo lugar. A vida passa mas está. O homem vai mas a humanidade permanece. Fim de noite.

sábado, 13 de outubro de 2012

O QUÊ LEVA O JOVEM AO CRIME

Honório de Medeiros

 
Uma das conseqüências possíveis relacionadas com a teoria da Antropóloga Alba Zaluar, Coordenadora do NUPEVI (Núcleo de Pesquisa das Violências), ligado ao Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, de que apenas a pobreza e a desigualdade social não explicam a ida de jovens para a criminalidade, é dar razão ao senso comum do povo quando clama pelo endurecimento da legislação penal.
 
A teoria, exposta em matéria assinada pelo jornalista Antônio Góis, da sucursal da Folha de São Paulo no Rio de Janeiro, apresenta como uma das causas do envolvimento de jovens com a violência a estrutura cultural que induz o surgimento do que ela chamou de “etos da hipermasculinidade”, ou seja, trocando em miúdos, “a busca do reconhecimento por meio da imposição do medo”.
 
É algo decorrente da chamada “cultura machista”: os filhos homens são criados em ambientes que reproduzem condutas herdadas de desrespeito sistemático às mulheres, aos homossexuais, aos negros, às minorias, enfim, e valorização direta ou subliminar dos ícones da masculinidade distorcida; a música, a tradição oral, o lazer, a literatura, a própria postura passiva das minorias contribuem para a construção desse perfil medíocre e ameaçador.
 
A antropóloga lembra que “se a desigualdade explicasse a violência, todos os jovens pobres entrariam para o tráfico. Fizemos um levantamento na Cidade de Deus (conjunto habitacional favelizado na zona Oeste do Rio de Janeiro) e concluímos que apenas 2% da população de lá está envolvida com o crime.” É outra comprovação científica que respalda o senso comum: se apenas a pobreza fosse passaporte para o crime, não haveria Sociedade da forma como conhecemos. Melhor, não haveria tantos ricos criminosos.
 
De posse do trabalho apresentado por Alba Zaluar talvez pudéssemos pelo menos iniciar a discussão em torno da ampliação das penas no Brasil. Quem sabe instaurarmos a prisão perpétua: não outra punição merece uma quadrilha de assaltantes recentemente presa em São Paulo, todos na faixa dos vinte anos, especializados em condomínios, que se tornaram conhecidos por torturarem suas vítimas, fossem elas novas ou idosas. Prisão perpétua com alimentação, saúde, lazer, tudo pago com trabalho – há tantas estradas para ajeitarmos, Brasil afora, tanta terra para ser arada...
 
E o maior empecilho, para aumentarmos a dosagem das penas no nosso país, para criarmos a prisão perpétua, é exatamente esse remorso social – quando não é a defesa em causa própria, como por exemplo, o caso dos nossos congressistas, grande parte respondendo algum tipo de processo – hipócrita que nos corrói a capacidade de enxergar o óbvio agora corroborado cientificamente. Sempre achamos, segmentos da elite, que a criminalidade tinha ligação direta com a pobreza. Recusávamo-nos a perceber, com o povão, que sofre nas mãos da delinqüência e nas mãos da polícia, que não era assim, afinal não se justifica que haja tortura e morte desnecessária em cada assalto realizado: a crueldade é um ritual de passagem na hierarquia do crime, dependente da admiração dos companheiros: quanto mais cruel, mais admirado, quantos mais homicídios, mais enaltecido.
 
Agora é tempo de ir atrás do prejuízo antes que seja tarde demais: contamos nos dedos as casas e condomínios onde não há cerca elétrica e cães, isolamento e medo. Fazemos de conta que não há guerra civil em São Paulo e Rio de Janeiro. Iludimo-nos pensando que o Estado é soberano em algumas áreas das grandes cidades do Brasil.
 

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quarta-feira, 10 de outubro de 2012

OS MISTÉRIOS DO ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ, TERCEIRA TEORIA

Honório de Medeiros

TERCEIRA TEORIA ACERCA DA INVASÃO: O ATAQUE A MOSSORÓ RESULTOU UNICAMENTE DA COBIÇA DE MASSILON
 
 
Restos da casa dos pais de Massilon em Luis Gomes, Rn
 
Quanto às teorias, esta é a mais simples. Sua simplicidade resiste à crítica?
 
Mais uma vez recorramos a Sérgio Dantas[1]:
 
Aurora, Ceará. Há dois dias Massilon já retornara ao esconderijo. Ao mentor Isaías Arruda, prestou contas do assalto. O apurado foi dividido meio a meio, como anteriormente combinado entre cangaceiro e Coronel (O CEARÁ, 1928).
 
A incursão, claro, fora de indizível sucesso. Uma cidade, duas povoações, meia dúzia de sítios tomados sem dificuldade. Fez-se grande, o cangaceiro aprendiz.
 
Tornara-se bandido de sucesso.
 
Desejou, muito provável, alçar voos mais altos. Aconselhou-se com Arruda. Traçou planos. Pensou unir-se a Lampião e por em prática escusos projetos.
 
(...)
 
Lampião, naqueles dias, rumava célere a recôndito coito de Aurora.
 
Ainda:
 
Aurora, penúltima semana de maio. Há dias Lampião já retornara da fracassada incursão à Paraíba. (...) Finalmente alcançara o indevassável coito da Serra do Diamante, de Isaías Arruda.
 
Em dias subsequentes, Lampião recebeu a visita de José Cardoso, parente do Coronel. Deslocara-se o fazendeiro para apresentar-lhe o cangaceiro Massilon Leite.
 
Deve ter sido por esse período, a se crer nessa versão, que Massilon apresentou ao Coronel Isaías Arruda a ideia do ataque a Mossoró.
 
Era a grande oportunidade de sua vida, e ele a agarrou com unhas e dentes. Não foi difícil convencer o Coronel Isaías, como anteriormente dito, por que este nada tinha a perder, e muito a ganhar: venderia armas a Lampião, receberia seu percentual nos saques, sequestros e roubos ou livrar-se-ia do grande cangaceiro, cuja amizade muitos incômodos políticos estava lhe trazendo.
 
O Coronel Isaías Arruda também agarrou a oportunidade com unhas e dentes, como nos conta Sérgio Dantas[2]:
 
Lampião tentava demover o régulo cearense da imprudente empresa. Refutava com veemência a proposta de invasão do Estado e, principalmente, a sugestão de assalto a Mossoró. Temia – por vasta experiência – a “grandeza” da cidade salineira. Compreendia difícil subjugá-la.
 
O cangaceiro Jararaca, testemunha da conversa, lembrou com fidelidade, dias mais tarde, a resistência de Lampião ao assédio ferino do Coronel Arruda:
 
“Lampião nunca tencionara penetrar nesse Estado porque não tinha aqui nenhum inimigo e se por acaso, para evitar qualquer encontro com forças de outros Estados, tivesse que passar por qualquer ponto do Rio Grande do Norte, o faria sem roubar ou ofender qualquer pessoa, desde que não o perseguissem.”
 
(...)
 
Massilon, sentado bem perto, chancelava cada argumento defendido pelo sagaz chefe político.
 
E, assim, a se crer nessa versão, repitamos, por pura cobiça e oportunismo de Massilon, sacramentou-se o destino de Mossoró. Seus projetos grandiosos de ataque à cidade que ele conhecia muito bem, conversados pelo Sertão paraibano, os mesmos projetos que através de Argemiro Liberato chegaram aos ouvidos de Rodolpho Fernandes, finalmente iriam se concretizar.
 
Em relação a Argemiro Liberato, e sua correspondência para Rodolpho Fernandes, é conveniente registrar o comentário de Raul Fernandes em “A MARCHA DE LAMPIÃO[3]”:
 
Afonso Freire de Andrade e inúmeras outras pessoas conheceram a carta. Mossoró (RN), 23.12.1971. – Informações prestadas ao autor. Obs.: Ouvi de meu pai referências à missiva.
 
Acerca dessa carta, comenta Kydelmir Dantas:
 
Esta carta foi levada ao conhecimento dos amigos de confiança do prefeito, por este, que estavam preparando a estratégia para a formação das trincheiras nos pontos principais da resistência. Dentre estes, Joaquim Felício de Moura, Afonso Freire de Andrade e outras pessoas mais chegadas confirmaram tê-la visto nas mãos do ‘coronel Rodolfo’. Para a família, dias após o ataque, Rodolfo Fernandes fez referências sobre esta missiva do amigo paraibano de Pombal. Outra confirmação do envio desta carta está no artigo: “Major” Argemiro Liberato de Alencar: o amigo de Rodolfo Fernandes, escrito pelo seu neto Geraldo Alves de Alencar, hoje residente em São Luiz do Maranhão, que cita o seguinte sobre o avô: “Era fazendeiro, proprietário da Fazenda “Estrelo”, situada em sua cidade natal. Exercia também a profissão de comerciante, trazendo da Paraíba algodão transportado em costas de burros e vendido em Mossoró, estado do Rio Grande do Norte. O principal comprador era a firma cujo maior acionista era seu amigo e compadre o Cel. Rodolfo Fernandes. Em suas viagens como almocreve retornava a Pombal com sal e outros gêneros. Mesmo tendo um sobrinho nas hostes do cangaço, o qual atendia pelo nome de Ulisses Liberato de Alencar, Argemiro era profundamente contra o banditismo rural, chegando inclusive a avisar ao Cel. Rodolfo Fernandes, quando este era prefeito de Mossoró em 1927, que o cangaceiro tencionava atacar a cidade considerada capital do oeste potiguar. Declaradamente anti-Lampiônico, Argemiro Liberato de Alencar nunca chegou a ser perseguido pelo “rei do cangaço” porque Lampião sabia da amizade existente entre ele e o Padre Cícero.” Evidentemente o aviso não era acerca de um futuro ataque de Lampião, mas, sim, de um futuro ataque de cangaceiros. Afora estas cartas, há o registro dos famosos bilhetes trocados antes do ataque, um escrito pelo Coronel Antônio Gurgel, refém de Lampião, e escrito a primeira negativa por Abel Freire Coelho, a pedido de Rodolpho, e o famoso de Lampião, escrito de próprio punho, com a resposta à altura e escrita, desta vez, por Rodolpho. Esta documentação foi, à época, publicada no jornal Correio do Povo, do jornalista José Octávio Pereira de Lima, como um Suplemento especial. Afinal, quem era o coiteiro de Lampião no Rio Grande do Norte? A dúvida continua após mais de 80 anos da resistência.” Fontes de Pesquisas: ALENCAR, Elidete. Informações sobre Argemiro Liberato de Alencar. Natal/RN: Mimeo.(inéd.), 2003. 2 p; FERNANDES, Raul. A Marcha de Lampião. Coleção Mossoroense. 6ª edição. 2005; MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: O banditismo no Nordeste do Brasil. Recife/PE: Ed. A Girafa, 2004 (texto sublinhado pelo Autor).
 
 
Raul Fernandes, ainda, logo na Parte 2[4], do Capítulo1º, de seu livro “A MARCHA DE LAMPIÃO” nos conta, com a autoridade de quem é filho do Coronel Rodolpho Fernandes, o seguinte:
 
 
Gentilmente cedida por Orlando Martins
 
Em dezembro de 1926, Joaquim Felício de Moura, sócio da firma Monte & Primo, em Mossoró, viajava pelo interior da Paraíba. Na cidade de Misericórdia, encontrou-se com o destacado comerciante e fazendeiro, Antônio Pereira de Lima, que lhe falou da acirrada perseguição do bandido Virgulino Ferreira a sua família. Sem maiores rodeios, contou-lhe o plano de Jararaca, Sabino, Massilon e Lampião de assaltarem com quatrocentos homens. Adiantou ser impossível reunirem tanta gente. Advertiu-o, porém, sobre o costume de mandarem espiões disfarçados de feirantes, mendigos e cantadores, aos lugares previamente escolhidos. Conversou sobre a possibilidade de defesa da cidade e pediu-lhe levar esses fatos ao conhecimento do Prefeito Rodolfo Fernandes.
 
Daí por diante, os boatos se sucederam. Na última quinzena de abril, de 1927, a notícia veio a luz de modo concreto. Argemiro Liberato, de Pombal, escreve ao compadre Rodolfo Fernandes sobre a pretensão dos chefes de bandidos.
 
Joaquim Felício estava errado quanto a José Leite de Santana, o Jararaca.
 
Como nos assevera Frederico Pernambucano de Mello[5], a área de atuação do cangaceiro eram as ribeiras do Moxotó e Pajeú, em Pernambuco. E o próprio Jararaca[6], declarou, quando preso em Mossoró, que Lampião nunca pensara em atacar esta cidade.
 
Quanto à Sabino Gomes de Góis, embora atuasse nos arredores do município de Cajazeiras, Paraíba, já estava integrado ao bando de Lampião desde o ataque à Souza, no mesmo Estado, do qual não se separará até sua morte, em fevereiro de 1928, após o conhecido tiroteio de Piçarra, em Porteiras, Ceará.
 
Ora, e se Sabino tinha intenção de atacar Mossoró, e não havia razão para tal, é evidente que Lampião seria o primeiro a sabê-lo. Repita-se, entretanto: Lampião nunca teve a intenção de invadir o Rio Grande do Norte, como já sabemos.
 
Não é de se duvidar, se for verdadeira essa teoria, repita-se mais uma vez, que Massilon tivesse pensado, realmente, desde há muito, em se unir ao maior de todos os cangaceiros.
 
Túmulo dos pais de Massilon em Luis Gomes, Rn
 
Apodi servira, para ele, de “teste”, para firmar seu “currículo”. O episódio de Brejo do Cruz, relatado adiante, não poderia ser considerado mais do que uma jagunçada. Apodi, não. Uma vez conquistada a cidade norte-rio-grandense Massilon podia, com razão, atribuir a si a denominação de “chefe cangaceiro”.
 
Por pura sorte – ou azar – aconteceu, sem que ele procurasse, seu encontro com Lampião. E Mossoró, aquela cidade rica, por onde ele andou tantas vezes, como almocreve, na qual ele poderia conquistar sua independência financeira definitivamente, estava finalmente ao seu alcance.
 
Teria realmente acontecido dessa forma?
 
Contra essa versão há, entretanto, um sério óbice: o fato de na invasão de Apodi, por Massilon, o projeto de atacar Mossoró já existir, como noticiou o jornal “O Mossoroense”, em 15 de maio de 1927[7], insinuando, sem rodeios, que a invasão à cidade, a ocorrer em dias vindouros, integrava empreitada[8] (grifo do Autor) de grande vulto, e dele dera conhecimento, ao Coronel Rodolpho Fernandes, a carta de Argemiro Liberato.
 
Observemos que essa edição de “O Mossoroense”, jornal dirigido por Rafael Fernandes, primo e correligionário de Rodolpho Fernandes, veio à lume cinco dias após a invasão de Apodi por Massilon.  Façamos, então, a necessária conexão entre essa matéria do jornal e a anterior correspondência de Argemiro Liberato encaminhada ao Prefeito.
 
Não foi, portanto, resultado da cobiça de Massilon tal projeto, ao saber da presença de Lampião em Aurora. Foi oportunismo. Ele tinha uma “empreitada” a realizar em Mossoró. Caso contrário não se explica o ataque. Afinal, porque Mossoró, se o móvel do crime era pura cobiça? Porque não Souza? Cajazeiras? Patos? Catolé do Rocha? Caicó? Campina Grande? Massilon conhecia todas essas cidades.
 
Outra questão: se a causa foi cobiça, porque o bando não atacou o Banco do Brasil ou o comércio de Mossoró, que se alcançavam seguindo o leito do rio, como sabia Massilon, preferindo atacar a residência do Coronel Rodolpho Fernandes? Que estratégia foi essa?
 
Não faz sentido que esse ataque tenha resultado meramente da cobiça de Massilon. Muito pelo contrário, como veremos a seguir. Tudo leva a crer que havia uma “empreitada”, cujo “teste” foi o ataque a Apodi, e a questão passa a ser a seguinte: que projeto foi esse de invadir Mossoró cuja face visível é Massilon, mas teria uma face oculta, haja vista a impossibilidade deste cangaceiro desconhecido, de voo curto, empreender, sozinho, algo tão ousado e grandioso quanto à invasão da segunda maior cidade do Rio Grande do Norte?
 
Continua...
 
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[1] “LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE”; DANTAS, Sérgio Augusto de Souza; Cartgraf – Gráfica Editora; 2005; Natal; RN. 
 
[2] Idem
 
[3] Nota 5, p. 40, Coleção Mossoroense, 6ª edição, 2005.
 
[4] 2ª edição; Editora Universitária – UFRN; 1981; Natal, RN.
 
[5] “GUERREIROS DO SOL”; 2a. edição; A Girafa; 2004; São Paulo, SP.
 
[6] No “Auto de Perguntas” feitas a Jararaca consta, também, a seguinte declaração sua: “que saíram em dias do mês de maio findo, do Pajeú, estado de Pernambuco, e que acompanhava Lampião há pouco mais de um ano”. Antes de Lampião Jararaca, ainda segundo seu depoimento, estava no Primeiro Regimento de Cavalaria Divisionária, tomando parte na revolta de São Paulo a favor da legalidade, com a Coluna Potiguara (“LAMPIÃO EM MOSSORÓ”; NONATO, Raimundo; sexta edição; Coleção Mossoroense; 2005; Mossoró).
 
[7] Sérgio Dantas, em “LAMPIÃO E O RIO GRANDE DO NORTE”, obra citada
 
[8] O termo utilizado foi exatamente esse.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

SÃO PAULO, RUA SÃO JOÃO COM IPIRANGA: UMA DESPEDIDA


passapalavra.info
 
 
Honório de Medeiros
 

“Para se conhecer uma cidade, é necessário viver nela três dias ou trinta anos. Ao final dos trinta anos, verifica-se que o julgamento apos os três dias é que é o bom” (Jean Cocteau, citado em “A BIBLIOTECA E SEUS HABITANTES", de Américo de Oliveira Costa). 

À noite, todos as nuances da escuridão são ameaças, no centro de São Paulo. O passo de quem lá aporta, por esse ou aquele motivo, desenham incompreensíveis percursos aos olhos de quem os observa. Mas não é embriaguez (ou é); não é o resultado de alguma droga (ou é). É a distância calculada que se toma de qualquer outro transeunte - esse desconhecido, o perigo. 

Os bares da São João. Pequenos. Quase todos lotados apenas de homens. O cheiro de fritura no ar. Os habitantes: bêbados, drogados, prostitutas, traficantes, decaídos, mendigos, travestis, menores, andarilhos, e a polícia, sempre a polícia. Os hotéis e sua aparência. Qual aparência? De decadência. 

No meio da rua, noite alta, o adolescente franzino, dentre muitos outros, de cabelos lisos e compridos incessantemente afastados dos olhos, vestido com uma irreal calça “jeans” extremamente folgada, cujos bolsos dianteiros e traseiros batiam-lhe nos joelhos, revoluteava, borbolético, entre um bar e uma casa de diversão de jogos eletrônicos. No dia seguinte, pela manhã, e já tarde da noite, novamente, lá estava ele, ininterrupto, como se ali fosse seu mundo ou então fizesse ele parte da paisagem local. Onde moraria? Quem seriam seus pais? Teria irmãos? Ninguém sequer lhe aprisionava o olhar. 

“Recanto dos Amantes”. Um nome em contraste com a cinza selva de pedra em plena transversal da São João. Lá, ela me disse, olhando para algum ponto indefinido, enquanto segura o copo de conhaque: “talvez não nos vejamos nunca mais”. O “nunca” me soou estranho. Havia uma melancolia calculada nas suas palavras. 

Eu me dispus a lhe contar como encarava esses encontros e desencontros da vida: um imenso pátio, vazio, folhas secas pelo chão, uma rajada de vento, a dança delas no ar, o encontro, logo desfeito, casual, entre uma e outra folha - eis como tudo ocorria. Não o fiz. Como ela engordara muito, esse tom não combinava com sua nova estampa. 

A São João, à noite, causa medo aos que não lhe são íntimos. Além de curiosidade e repulsa durante o dia. Quando o sol se põe a São João vira uma selva, onde cada um com o qual se cruza pode ser um predador - aquele que o destino lhe reservou. São os frequentadores de bares suspeitos, inferninhos, prostíbulos disfarçados, pontos de droga... É o submundo vindo à tona. 

Com a luz do sol, a vida surge frenética. Há um vai-e-vem intermitente, irritante. Uma profusão de cores, barulhos e os incontáveis odores de frituras e churrascos infestando cada espaço da rua. Tipos exóticos fazem “performances”. Há desde o comuníssimo tocador de viola, até o singular dançarino imensamente feio que ostenta, como insígnia de sua estranheza, duas inacreditáveis marias-chiquinhas. 

Nada diferente, ao que consta da realidade de toda grande cidade, mundo afora: Nova Iorque, Tóquio, Cidade do México... Nada diferente, em menor escala, em cada pequena cidade? 

Digo-lhe adeus. Fico parado observando sua imagem se desvanecer aos poucos enquanto caminha no rumo da Praça da República. Enquanto observo, imagens do passado insistem em surgir. Nelas, uma mulher esguia, morena, de cabelos longos, dança na praia de Genipabu, os pés chapinhando na água, pleno pôr-do-sol, encantada com tanta beleza e contraste com sua terra natal. 

Mas não há dor, há vazio. Aliás, há a dor do vazio.

sábado, 6 de outubro de 2012

DE UM PROCESSO CIVILIZATÓRIO


jusquantum.blogspot.com

 

Honório de Medeiros

 

                   Talvez seja falsa a noção de que é possível, coletivamente, e conscientemente, construirmos valores que norteiem um processo civilizatório semelhante àquele com o qual nos deparamos quando voltamos nossos olhos para a história em busca de entendimento e orientação: a civilização grega, o senso de “Arete” (virtude) que perpassa a vida do cidadão ateniense, sua “Paidéia” (cultura), como magnificamente nos mostra Péricles, em sua “Oração aos Mortos na Batalha de Maratona”, preservada por Tucídedes.
 
                   O olhar crítico acerca desse preâmbulo há de apontar, de início, duas falhas: a fragilidade e complexidade da “Paidéia” ateniense que não resistiu aos seus conflitos internos, bem como a Alexandre, o Grande; e a impossibilidade daquela experiência sublime se repetir, por não ter sido resultado de qualquer planejamento, senão de fatores tão circunstanciais quanto, por exemplo, para o surgimento da filosofia na Grécia, a especificidade da língua grega.
 
 A tais críticas é possível responder afirmando que não se trata de repetir, por igual, tamanho feito. O quê, na nossa civilização ocidental, não repousa nos gregos? Isso seria impossível, talvez. Trata-se, no entanto, de colocar o aparato tecnológico construído pelo homem ao longo dos séculos à disposição de uma política da Sociedade, aliás, da Humanidade – nunca de governo, tampouco de Estado – que deliberadamente, envolvendo todos, construa, firme e convicta, esses pilares sobre os quais se firme uma civilização da qual tenhamos orgulho e respeito. Não se sentem assim, em uma justa medida, hoje, os escandinavos?
 
                   Caso contrário as piores previsões possíveis de serem construídas irão se concretizar e nós, ao contrário do que pensa Karl Popper, que tanto e tão tenazmente combateu a idéia de determinismo histórico ao qual estaríamos subjugados mesmo que com certa liberdade limitada, estaremos marchando a passo batido para o caos – esse limite último da entropia – ou para o quê nos aponta a seleção natural, que como sabemos, não tem finalidade moral em si mesma, a ser encontrado em um planeta Terra esgotado pelo que dela se arrancou sem qualquer cuidado: o fim da espécie humana.
 
                   Catastrófico? Talvez. Possível? Com certeza. Coincidentemente, cientistas e abnegados voltam seus olhos, apavorado, para a Terra e os transtornos climáticos e catástrofes naturais que estão acontecendo cada vez mais freqüentemente. Já há trabalhos científicos demonstrando ser insuportável continuar extraindo, do nosso planeta, e da forma como é feita a extração, sua riqueza natural.
 
 Desmatamentos, degelos, extinção de espécies, extração de riquezas do subsolo, dizimação de florestas, aquecimento global, guerras, fome, pestes – parece não haver limite para tudo quanto o homem possa fazer nessa empreitada de autodestruição. Se não abrirmos os olhos, não construirmos um novo pacto civilizatório que deixe para trás o modelo ao qual temos nos aferrado ao longo de nossa existência, não haverá por que não dar razão aos pessimistas, esses profetas milenaristas, e suas crenças de que nossa aventura de existir, no Universo, é apenas o sonho fugidio de um Deus impaciente com sua criação.