sábado, 28 de fevereiro de 2015

É A CERTEZA DA PUNIÇÃO, A CURTO E MÉDIO PRAZO, E NÃO A EDUCAÇÃO, QUE NOS CONTÉM



* Honório de Medeiros

Somos levados a crer na capacidade redentora, quanto à moral, da educação. E isso decorre de nossa ligação histórica com o ideário iluminista, que pregava a superação dos males inerentes à condição humana através do dom que Deus supostamente havia dado aos homens – a razão.

Esses males, não há necessidade de os nominar. Lembremo-nos, apenas, da selvageria que, ao contrário do que supunha Rousseau, ao pregar a bondade inerente do ser humano, e mais em conformidade com o “homo lupus homini” de Hobbes, espreita e assume o controle todas as vezes que a camada de verniz que nos contém é rompida, e isso acontece sempre, em todos os lugares, com todos nós.

A verdade é que somos selvagens contidos pela dor que a reação ao nosso desvario pode causar. Nesse sentido, quanto mais “civilizado” um País, ou seja, quanto mais existir lei, ela for dura e, principalmente, cumprida, maior a possibilidade de haver essa contenção que nos impede de cedermos à animalidade. Não é demais recordarmos a dualidade existente no homem apontada por Robert Louis Stevenson em “O Médico e o Monstro” para percebermos o quanto temos consciência dessa bestialidade contida a dura força.

É por essa razão que campanhas educativas como as do trânsito ou do desarmamento são fadadas ao fracasso se, enquanto contrapartida, a impunidade historicamente grassa pelo território nacional. Acaso alguém supõe que aqueles contumazes desrespeitadores das leis do trânsito, que dirigem embriagados, atravessam velozmente sinais vermelhos, deixarão de faze-lo ao verem uma propaganda educativa? Acaso alguém supõe que as pessoas violentas e educadas na impunidade deixarão de agredir suas esposas, filhos, vizinhos, quem quer que seja, com barras de ferro, facas, correntes, bastões de madeira, as próprias mãos, como conseqüência de uma campanha de desarmamento ou passeata “pela paz?”.

É sob o âmbito dessa questão que deve ser analisada a monstruosidade do crime cometido por um juiz de Sobral, Ceará, contra um inofensivo e desarmado vigilante de Supermercado. O juiz, que no mesmo dia já dera demonstração de prepotência e abuso, que era conhecido na cidade por sua arrogância e despreparo, é membro da elite brasileira e, como tal, recebeu educação aprimorada, fez concurso público, e foi guindado a um cargo público respeitável, dentro da estrutura do Estado brasileiro.

Não adiantou. Irracionalmente convencido de sua impunidade, agiu como um animal ensandecido que tivesse tido seu domínio territorial ameaçado por um inimigo feroz. Assim agiam, e agem, aqueles que somente vêem o mundo através da ótica da força bruta: os líderes traficantes, mafiosos, assaltantes, terroristas, anônimos torturadores, violadores ineventuais dos direitos humanos básicos do cidadão.

Esse ato do juiz seria uma exceção? Não. Nós é que fazemos de conta que sim, por que nos acovardamos. Mas cada um de nós sabe por que viveu diretamente ou através de parentes e amigos um gesto de opressão de algum medíocre detentor de uma parcela de poder. Autoritários, prepotentes, arrogantes, desumanos, na justa medida da impunidade, nunca da falta de educação que lhes foi dada de alguma forma, ao longo de sua vida, mas insuficiente, sem o temor da revanche do Estado, para manter sob controle sua bestialidade.

* Republicação

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

BÁRBARA LIMA DE MEDEIROS


Dezessete anos atrás, em um 27 de fevereiro, ela nasceu. Um presente de Deus. Se ainda posso pedir algo, é que Ele faça sua vida sempre muito leve... 

QUE TIPO DE GOVERNO TEMOS?

* Honório de Medeiros

Não nos iludamos: governo, governança, gestão, administração pública, tudo isso significa a mesma coisa, ou seja, como aqueles que estão no Poder o exercem sobre nós, os comuns dos mortais. Vamos usar o antigo termo “governo”, a partir de agora, pois é aquele com mais possibilidade de ser entendido por todos.

Como podemos rapidamente julgar um governo sem temermos cair no mero “achismo”? Um dos meios utilizados é analisar se esse ou aquele governo pode ser definido como “reacionário”, “conservador”, “reformista” ou “revolucionário”. Aqui convém lembrar que não cabe discussão bizantina acerca do significado de cada termo citado. Partimos de uma definição do senso-comum. O que importa é o problema em questão: saber como podemos definir o governo analisado a partir dessas posições do senso-comum.

No caso de governo reacionário, o senso-comum entende que é aquele que promove a volta ao passado, por entender que o que existe hoje não atende às expectativas de quem está no Poder. Seria o caso dos saudosistas do governo militar, que querem a volta da ditadura implantada a partir de 64. Esses dizem sempre: “tempos bons foram aqueles...”

O governo conservador quer que tudo permaneça como está. Tem horror a mudanças, embora talvez tenha sido eleito prometendo algumas e sempre diga, quando na mídia, que está promovendo uma “reforma profunda” ou uma “verdadeira revolução” através de sua administração. Nesse tipo de governo, as coisas mudam para não mudar, ou seja, tudo quanto já existia permanece com outro nome. Para sabermos se um governo é conservador ou não, basta pensarmos se alguns dos eixos fundamentais da vida em sociedade sofreram modificação para melhor ao longo do tempo: a saúde pública melhorou? E a educação? E a infra-estrutura, ou seja, as estradas, o trânsito, a meio-ambiente? E a segurança pública?

O governo reformista estabelecerá políticas públicas que modificarão fundamentalmente a situação por ele encontrada ao chegar ao Poder. Foi o que aconteceu e ainda acontece, por exemplo, no Chile pós Pinochet. Foi o que aconteceu e ainda acontece, por exemplo, nos países escandinavos, nos chamados “tigres asiáticos”, no Japão e Alemanha pós-guerra. Essas reformas podem existir, também, em estados-membros e municípios. Foi o caso do governo Cortez Pereira, aqui no Rio Grande do Norte, que o Poder pós 64 impediu a continuidade inclusive no plano das idéias.

Por fim o governo revolucionário é aquele que faz mudanças radicais em curto espaço de tempo, sem qualquer preocupação quanto aos meios que conduzirão aos fins almejados. Foi o que ocorreu através da revolução americana de 1777, francesa de 1789, russa de 1917, e aí por diante.

Agora, pensemos: que tipo de governo temos no país, no nosso Estado, no nosso município?

* Republicação.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

"LA CLASE POLÍTICA", GAETANO MOSCA


Gaetano Mosca


* Honório de Medeiros


Recebi, dia desses, pelo correio, comprado através da “Estante Virtual” (www.estantevirtual.com.br) – esse desaguadouro para o qual todos os bibliômanos brasileiros convergem, a obra “La Clase Política”, de Gaetano Mosca, com seleção e introdução de Norberto Bobbio, edição popular (livro de bolso, trocando em miúdos) do “Fondo de Cultura Económica” de 1984, México, após procura na qual se alternavam períodos de calmaria e outros de busca frenética.

Desconfio, claro, muito embora sejam reais as dificuldades de encontrar esse texto – tomo como prova o fato de somente agora conseguir encontrá-la nesse imenso sebo virtual mencionado acima, ao qual recorri em muitas oportunidades – que era para ser assim mesmo, ou seja, não me seria fácil adquirir, manusear, analisar e criticar metodicamente, em seus detalhes, a obra que Gaetano Mosca, já octogenário, classificava como “seu trabalho maior”, “seu testamento científico”, e à qual dedicara suas melhores energias durante quarenta anos, como nos lembra Norberto Bobbio em sua introdução.

Isso por que dou como certo que os livros têm vida, e muito mais que adquiri-los, somos, por eles, adquiridos, tal como nos leva a crer Carlos Ruiz Zafón em seu “A Sombra do Vento”, quando nos apresenta ao “Cemitério dos Livros Esquecidos”, localizado em misterioso lugar do centro histórico de Barcelona, uma fantasia, bem o creio, nascida de suas leituras do imenso Jorge Luis Borges e de seu maravilhoso conto “A Biblioteca de Babel”, em “Ficções”.

E, em tendo vida, e vontade própria, houve por bem “A Classe Política” brincar comigo de gato e rato, sem dúvida por considerar que meus arroubos juvenis criticando Marx, nos corredores da Faculdade de Direito, firmado em leituras ainda pouco digeridas, de Popper e Aron, não mereciam o suporte final de uma metódica construção teórica da qual resultava a hipótese – que assombrava meus pensamentos em seus contornos imprecisos – de que há uma elite dominante presente em todas as sociedades, sejam quais sejam elas, seja qual seja a época. É como nos diz a apresentação do livro, em sua contracapa: “Mosca considera que hay uma clase política presente em todas las sociedades. Gobiernos que parecen de mayoría están integrados por minorias militares, sacerdotales, oligarquias hereditárias y la aristocracia de la riqueza o la inteligencia”.

Percebo, portanto, que “A Classe Política” aguardou o momento certo: quando fosse possível, na medida de meus esforços, compreender que há uma relação entre sua idéia central, a Teoria da Evolução de Darwin - naquela vertente anatematizada da Sociobiologia – e a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, que me permitisse não somente iniciar, para mim mesmo, a descrição fenômeno jurídico em sua totalidade, seja como conjunto de normas jurídicas, seja como fato social, ela se tornaria, então, disponível.

Assim, resta ler, ler de novo, e reler o que escreveu, acerca da “elite política” esse italiano nascido em Palermo, em 1º de abril de 1858, falecido em Roma em 8 de novembro de 1941, aos oitenta e três anos. Foi professor de “História das Doutrinas Políticas” na Universidade de Roma e Docente Livre em Direito Constitucional na Universidade de Palermo. Ensinou, também, na Universidade de Turim, Deputado, Senador do Reino, Subsecretário das Colônias, e colaborador do Corriere della Sera e La Tribuna. Em 19 de dezembro de 1923 se retirou da vida política ativa e se dedicou exclusivamente a seus estudos, em particular no campo da história das doutrinas políticas.

Ler, com especial atenção, um capítulo denominado “Origens da doutrina da classe política e causas que obstaculizaram sua difusão”, no qual Mosca credita o pouco conhecimento da “teoria da elite política” à hegemonia do pensamento de Montesquieu e Rousseau. Hegemonia essa, ouso dizer, que serve como uma luva feita à mão na estratégia adaptativa de aquisição e manutenção do poder empreendida pelas elites dirigentes após a Revolução Francesa de 1789. E que culminou, no campo do Direito, na inserção, em Constituições Federais, de princípios jurídicos difusos que se prestam a serem interpretados de acordo com as conveniências de quem os interpreta.

Curioso é que muito embora eu, finalmente, tenha conseguido pôr minhas mãos nessa obra, ela ainda não me veio por inteiro. Trata-se, no caso, de uma seleção de textos feita por Bobbio. Tanto que, no final, há um capítulo no qual se apresenta o resumo dos capítulos omitidos. Nestes, há uma refutação das doutrinas do materialismo histórico e da concepção segundo a qual deveriam chegar ao governo os melhores, tema retomado por Karl Popper em “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, onde critica Karl Marx e Platão.

Ou seja, a busca continua.


* Republicação

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

BÁRBARA DE MEDEIROS CONVIDA. EU TAMBÉM!


Caros amigos:

Minha Bárbara de Medeiros vai fazer 17 anos. E, no dia do seu aniversário, lança seu segundo livro. Este pai orgulhoso convida os amigos para o lançamento. Será na Saraiva do Midway, dia 27 de fevereiro, às 18 horas. Plena sexta, um dia lindo. Estaremos lá lhes esperando.




sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

OBTER O CONTROLE, ESTAR NO CONTROLE, MANTER O CONTROLE.

* Honório de Medeiros

Obter o controle. Estar no controle. Manter o controle. Faz parte da parafernália ideológica que é a tal da estratégia militar ou de combate. Está em Chomsky, basta lê-lo. Quem tem o controle tem o Poder, dizia, para um dos seus escravos, o extraterrestre que governava a terra no romance de L. Ron Hubbard, aquele autor americano de ficção científica que ficou mais famoso como criador da Cientologia, estranha seita preferida por 10 entre 10 atores famosos americanos.

O controle está para o Poder como a célula está para o tecido, o átomo para a matéria. É através do controle que se estabelece a hierarquia, seja qual seja o ser vivo, parodiando Popper e sua Teoria Evolucionária do Conhecimento, ou seja, da ameba ao humano. Lula, que não é lido, mas não é burro, deixou bem claro ao analisar Pedro Simon e sua quixotesca candidatura a Presidente do Senado: “ele não é confiável”. Confiável ou controlável? Dá no mesmo nesse contexto sórdido da política pátria.

Na raiz desse controle está a tendência inata do ser humano de explorar, absorver, extrair, para si, tudo quanto, naquilo que o cerca, amplie sua possibilidade de sobrevivência e a de sua espécie. Dawkins – esse mesmo que desencadeou uma cruzada contra Deus a partir de Darwin – afirmaria que fazemos isso manipulados pelos nossos genes. Para ele, nós somos nossos genes. O resto é invólucro. Ou seja, o resto é resto. Há controvérsias. Alguns acham muito radical essa teoria.

Trazer para o mais íntimo de nós, no aspecto físico, o que está por trás – mesmo que remotamente – das ações humanas deu um corpo de vantagem a Darwin sobre o velho Marx. Este, como se sabe, coloca a divisão do trabalho na raiz do problema do controle. A divisão do trabalho vai fazer surgir a propriedade privada, ou vice-versa, as relações de produção, a infra-estrutura material, a superestrutura ideológica, enfim, ufa!, a luta de classes e a exploração do homem pelo homem.

Mas o que estaria por trás do surgimento da propriedade privada? O que está no começo da exploração do homem pelo homem? Marx não disse. Talvez seu companheiro Engels tenha esboçado algo a respeito a partir da análise dos estudos de Morgan, um antropólogo e etnólogo americano que andou estudando os nativos de seu país no final do século XIX, em uma obra que é muito citada nos meios acadêmicos e pouco lida. Pois Darwin disse. Disse claramente. E com ele, começou um novo capítulo das ciências sociais e, mais especificamente falando, da Psicologia Social Evolutiva.

Pois bem: voltamos ao ponto de partida. Somos levados, instintivamente, a controlar para explorar. Isso tanto em nível pessoal quanto social. Quem controla estabelece hierarquia. O povo, que não é besta, há muito denuncia, como pode, a arrogância da elite que põe o dedo em riste e pergunta ao Zé Mané: “você sabe com quem está falando?”, para tentar controla-lo.

E não há limite para a intenção de controle. O céu é o limite. “Quanto mais temos, mais queremos ter.” O povo diz, o povo sabe. O senso comum é o ponto de partida para o conhecimento. Quanto mais queremos ter, mais nos tornamos predadores.

Claro que os controladores dão nomes bonitos a tudo isso. Faz parte do jogo, é, essa atitude, uma estratégia de controle. Chamam a esse impulso predatório de ambição social, luta para deixar o legado na história, defender os interesses da sociedade, luta para ascender na escala social... Tudo lorota. Na essência, é o ruim e velho capitalismo de guerra e sua teia de argumentos justificatórios. No âmago do âmago, como diriam os exagerados, está esse egoísmo inato cujas vísceras Darwin expôs.

E os santos, alguém perguntaria. O altruísmo, diria eu, é sempre uma espécie do egoísmo.

* Republicação.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

AGORA VOU TOMAR MEU RUMO...



* Honório de Medeiros

Estamos de partida. Na bagagem, alguns livros e duas garrafas de Serra Limpa. Essas duas danadas vão para combinar com os finais-de-tarde lá nas terras de Gil, Annica, Gabriel e Ana Maria, a Fulô da Pedra, quando estivermos escutando o canto dos passarinhos, a toada do vento, o farfalhar das folhas nas árvores e o barulho dos grilos enquanto a noite chega. Vez por outra o relinchar dos cavalos e o mugido de um ou outro boi. E vendo as luzes das estrelas se acendendo no céu e sentindo o cheiro de mato invadir o alpendre da Casa-Grande. Nada de celular, televisão, computador, ar condicionado, paredão de som ou som-ambiente. Nada. Vez por outra um pouco de silêncio logo interrompido pelas risadas ocasionado por algum dito gaiato ou o converseiro de todos irmanados pelos antigos laços de fraternidade que somente a mãe-terra proporciona de mão-beijada a quem lhe ama. Mais tarde, depois da refeição simples, mas substancial, uma fogueira para chamar estórias de trancoso e estreitar cumplicidades de almas enquanto o sono não vem. Quando vier, virá acalentado pelo ruído do vento nas frestas das telhas e se haverá de dormir o sono dos inocentes até o chamado do galo, na hora do sol nascer.
Até mais ver...

A POLÍTICA E A LENDA DE DIÓGENES, O CÍNICO


Diógenes, o cínico

* Honório de Medeiros
"Aqueles que atravessaram
de olhos retos, para o outro reino da
morte
nos recordam - se o fazem - não como'
violentas
almas danadas, mas apenas
como os homens ocos
os homens empalhados".
"Os Homens Ocos"
THOMAS STEARN ELLIOT


Li, certa vez, há muito tempo, a lenda de Diógenes, O Cínico.

Refiz imprecisamente na imaginação a cena: ao ver Diógenes uma criança se dessedentar na margem de um riacho utilizando o côncavo da mão, desfez-se de sua caneca e, a partir de então, somente passou a ter, de seu, o manto com o qual ocultava sua nudez e o tonel onde dormia.

A caneca era desnecessária. Acreditava Diógenes que em nada possuindo, seria um homem livre. E o era, em certo sentido. Há muito de Diógenes na ira de Proudhon ao dizer “toda a propriedade é um roubo!” Instado por Alexandre, O Grande, seu admirador, a lhe dizer o quê desejava, Diógenes respondeu de pronto pedindo que não fosse obstruída a passagem do sol com o qual se banhava.

Heróicos tempos, aqueles, nos quais homens como Empédocles preferiam descobrir uma só lei causal a governarem o mundo; assim era Atenas, a Hélade, berço da civilização ocidental, aurora da democracia cuja essência repousa no conceito ético de "homem público virtuoso".

Qual a ligação existente entre a ingênua concepção de mundo de Diógenes e esse homem público virtuoso cujo perfil Péricles tão bem delineou em sua célebre "Oração aos Mortos de Maratona?"

Entre outras uma dicotomia aparente: a virtude privada, de um lado, e, do outro, a virtude pública. Para Diógenes, o homem somente se realizava através do rompimento com os grilhões que a vida em sociedade impõe; para Péricles, o homem somente se realizaria na medida em que esses grilhões, ou seja, as leis, os costumes, a moral, estabelecidos voluntariamente a partir de uma cultura comum, transformassem o homem em "cidadão", e em o transformando, concretizassem um ideal de sociedade virtuosa.

Ou seja, esse “cidadão” deveria ter altruísmo social, subordinando sua ambição pessoal ao projeto de construção de uma sociedade democrática tal qual a delineada pela "Paidéia" ateniense.

Hoje, ao observarmos o cenário político no qual vivemos, não podemos deixar de nos lastimar. Os políticos pouco ou nada fazem para ocultar a ambição pessoal que origina suas ações políticas, e suas aparições públicas são de um ridículo atroz. Pior: as agressões pessoais, a lavagem de roupa suja em público, a indigência oratória, a ignorância generalizada, o cinismo deslavado, atingem os eleitores e permitem a continuidade de um processo eleitoral que lembra, a todo instante, para os observadores mais avisados, quão atrasados estamos...

São tais políticos os homens ocos aos quais se refere Elliot.
Em ambientes políticos como o que vivemos, florescem as mais exóticas e nocivas plantas. Trata-se, segundo os cientistas políticos herdeiros do liberalismo, do ônus da democracia. E, assim, por sermos democratas, somos obrigados a conviver com alpinistas sociais, corruptos, mentirosos, hipócritas, arrivistas, aventureiros...

O homem comum, por não entender a complexidade das forças que dispõem acerca de tal estado de coisas, passa a ansiar pela concretização de fantasias esdrúxulas: alguém que lhe traga ordem, segurança, que restabeleça o "status quo" anterior, o passado mítico... Torna-se, assim, presa fácil de messiânicos, manipuladores, ilusionistas.

Como aconteceu na eleição de Fernando Collor de Mello. Na de Jânio Quadros. Como pode acontecer novamente se nossas instituições continuarem frágeis como o são. Como pode acontecer novamente se não forem realizadas as reformas econômicas, políticas e sociais das quais tanto necessitamos, e o Brasil se enrodilhe, mais uma vez, na teia de interesses escusos que a ambição de alguns, neste presente momento, com certeza, está tecendo para nossa angústia.

E, em se enrodilhando, em se alienando nessas armadilhas todas, ao longo do tempo amplie, na Sociedade, um sentimento funesto de desencanto com a democracia.

Argumentos contra a Democracia não faltam. Sempre existiram, existirão sempre. Inteligentes, sutis, perigosos... Não faz muito tempo que Jorge Luis Borges a chamou de mera "ficção estatística".

Argumentos como esses, em ambiente construído e manipulado pelo capitalismo selvagem, no qual a ótica do lucro se impõe à ética do altruísmo social, são apropriados para aventuras tais como censura à imprensa, desprezo às leis e juízes, aplicação do “olho por olho, dente por dente”, corrupção de Estado...

Aventuras nas quais todos perdem, inclusive quem as provoca e delas supõe usufruir!


* Republicação.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

OS DOIS TIPOS DE SERVIDORES PÚBLICOS

* Honório de Medeiros

Hoje, no Brasil, existe dois tipos de servidores públicos: a elite, constituída por aqueles que recebem aumentos remuneratório regulares, e o restante, constituído por aqueles que não recebem aumento. A elite é formada por juízes, procuradores, promotores, deputados, senadores, conselheiros dos tribunais de contas, e quejandos; o restante é o resto mesmo, incluídos, aí, médicos, professores, policiais e assim por diante. 

"DEMIAN", DE HERMAN HESSE


Caim e Abel

* Honório de Medeiros


Aqueles que são de minha geração e gostam de ler, conhecem a obra de Herman Hesse, principalmente “Sidarta”, no qual ele romanceia a vida de Gautama Buda.

Quem, no entanto, se deixou verdadeiramente fascinar pelos livros do escritor - e foram muitos na década de 60/70 -, leu praticamente tudo que foi traduzido para o português: “O Lobo da Estepe”; “O Jogo das Contas de Vidro”; “Demian”; “Gertrud”; “Pequenas Histórias”; “Narciso e Goldmund”...

Dentre eles é possível que “Demian” seja considerada um livro menor. Na verdade, a crítica faz loas a “O Jogo das Contas de Vidro” e, em menor escala, a “O Lobo da Estepe”, embora o mais conhecido seja, sem qualquer sombra de dúvida, “Sidarta”.

Em “Demian”, Hesse nos apresenta a um adolescente que fascina um seu colega de escola – o relator da história – principalmente graças a sua mãe, mulher bela e misteriosa, e de sua iniciação em uma seita religiosa denominada “Cainismo”.

O que seria esse “Cainismo”? Quando essa questão aparece na convivência entre “Demian” e seu interlocutor aquele lhe apresenta, como ponto-de-partida para o conhecimento do Cainismo, uma longa relação de personagens condenados pela história oficial: é o caso de Caim, o irmão de Abel, cujo nome batiza a seita; é o caso de Eva; é o caso de Judas Iscariotes.

Vale ressaltar que o “Cainismo” foi resgatado da total obscuridade, no século XIX, por Lord Byron, mas hoje voltou a mergulhar, até onde se sabe – é bom frisar -, nos subterrâneos profundos do Père Lachaise, e é possível que somente exista, enquanto referência histórica, em obras emboloradas de historiadores praticamente desconhecidos, a grande maioria compondo, também, o “Cemitério das Obras Esquecidas”, que fica em Barcelona.

A pergunta que “Demian” faz a seu interlocutor durante todo o transcorrer da trama é se haveria Abel sem Caim; o Homem, sem Eva; Jesus, sem Judas. Evidentemente, a pergunta implícita e fundamental por trás de sua doutrinação é se haveria Luz sem Trevas; se haveria o Ser, sem o Nada. O que nos remete, cada vez mais longe no tempo, até o Maniqueísmo do qual foi seguidor, por um bom tempo, ninguém mais, ninguém menos, que Santo Agostinho.

E que não se livrou de sua doutrinação inicial: que é a Civitas Dei senão a contraposição àCivitas Terrena, Deus versus Demônio? Luz versusTrevas?

Não seria essa percepção dualística da realidade o cerne do Catarismo, professado pelos Perfeitos, que a Inquisição, no Século XIII, varreu da face da França mandando matar todos naquela que seria a Primeira Cruzada e que foi liderada por ninguém menos que São Luis?

Questões como essa suscitaram ecos sólidos durante os famosos e psicodélicos anos 60/70, quando se questionava o modelo de vida que a sociedade materialista ocidental impunha a seus integrantes e ao resto do globo.

Havia o fascínio pelo Oriente e seu estilo de vida, enquanto contraponto ao capitalismo, mas não aceitava o marxismo. Desse fascínio e suas conseqüências somos todos herdeiros, de uma forma ou de outra, principalmente daquilo que seus maiores representantes, os “hippies”, nos deixaram de legado, e não foi somente sexo, música e drogas.

Ainda hoje há, em alguns espaços diminutos, uma preocupação esotérica com a vida que parece muito distante do feijão-com-arroz cotidiano da luta pela sobrevivência: discutem-se óvnis, vida após a morte, holística, e assim por diante.

Mas também há espaços diminutos que resultam de preocupações que têm raízes solidamente firmadas no concreto, no real, e que são voltadas para a compreensão, por exemplo, dos efeitos da existência da antimatéria.

Tal questão poderia ser, em uma perspectiva descrita por Hesse, nada mais, nada menos, que o dualístico embate entre Luz e Trevas, para o qual o “Cainismo” foi, antes de tudo, em linguagem cifrada, uma descrição da realidade.


* Republicação.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

COMO AVALIAR UM GOVERNO

* Honório de Medeiros

Em “Desenvolvimento Como Liberdade” (Companhia das Letras; 2004; 4ª reimpressão; São Paulo), Amartya Sen, Premio Nobel de Economia, ex-membro da Presidência do Banco Mundial, ex-professor da Universidade de Harvard, esposo de Emma Rothschild – autora, por sua vez, de “Sentimentos Econômicos”, um denso ensaio acerca de Adam Smith, Condorcet e o Iluminismo – nos convida a percebermos o contraste entre “um mundo de opulência sem precedentes” e “um mundo de privação, destituição e opressão extraordinárias.”

Trocando em miúdos Amartya Sen nos convida, isto sim, a entendermos o desenvolvimento como “um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”, e, não, como algo a ser identificado com o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB), aumento de rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social.

Ao se referir à expansão das liberdades reais Amartya Sen se refere, por exemplo, aos serviços de educação e saúde – e aqui eu acrescento segurança pública – e aos direitos civis (a possibilidade de participar efetivamente do governo e das discussões e averiguações públicas em relação ao dinheiro do povo).

Aceitar esse ideário como premissa implica em compreender que somente podemos considerar desenvolvido ou em desenvolvimento um País, Estado ou Município no qual, à título de esclarecimento, e em termos bastante simplificados, o dispêndio com obras públicas, tais como calçamentos, praças, ruas, estradas, asfaltamento, prédios, pontes, açudes, barragens, estádios de futebol, somente ocorra como conseqüência necessária e comprovada da implantação de políticas públicas voltadas para o avanço em áreas como educação, saúde e segurança. Políticas públicas essas estabelecidas claramente através de programas e projetos que tenham metas, prazos, alocação de recursos humanos e financeiros delineados claramente e possam ser acompanhados e questionados pela sociedade como um todo.

Óbvio que, no Brasil, a lógica é outra. As obras públicas são sempre “vendidas” à sociedade como sendo essenciais para o desenvolvimento “sustentável”. Essa lógica, consciente ou inconscientemente, busca privilegiar quem há de se beneficiar direta e imediatamente com ela, ou seja, aqueles que detêm o capital em suas mãos e querem o retorno imediato do investimento realizado: comprova essa afirmação a relação estreitíssima, no Brasil, entre os governos, sejam estes federais, estaduais e municipais, e empreiteiros, construtores, empresários da construção civil, enfim, os quais, depois de realizadas as eleições, pressionam os candidatos aos quais apoiaram financeiramente a investirem em obras.

A constatação, também, daquilo que se afirma aqui pode ser feita por qualquer um: basta que nos perguntemos se com todo o investimento em obras ocorrido no Brasil, digamos, desde Fernando Henrique Cardoso, passando por Lula, até hoje, houve diminuição sensível na miséria, e melhoria significativa na educação, saúde, e segurança pública. Façamos o mesmo quanto ao Rio Grande do Norte, Natal e/ou Mossoró.

É claro que não. Muito ao contrário. O que nós percebemos, nitidamente, é que o avanço, se é que houve, é um verniz que não resiste a uma visita individual ou coletiva a postos de saúde ou hospitais, escolas públicas e delegacias de polícia.

Portanto a conclusão é óbvia: desconfiemos de qualquer obra que não esteja atrelada, comprovadamente, a uma política pública na área de educação, saúde ou segurança. Uma comprovação que salte aos olhos, indiscutível.

Para começo de assunto.

* Republicação.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

LULA ACIRRA OS ÂNIMOS: CONTINUA A LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA

* Honório de Medeiros

É mesmo uma situação esquizofrênica, essa: enquanto se avolumam as denúncias de corrupção envolvendo o PT, ao ponto de atingirem seu Secretário de Finanças e Planejamento, e a Sociedade é surpreendida com uma primeira e modesta avaliação do quanto foi desviado da Petrobras - os três principais jornais do País apresentam um valor em torno de 200 milhões de dólares - a Presidente da República e Lula, na festa do aniversário do Partido dos Trabalhadores, falam em resistir ao golpismo e ao oportunismo, e conclamam os companheiros à resistência.

Lula chega ao cinismo de dizer que tudo quanto está sendo visto e ouvido quanto à luta contra a corrupção é decorrente do Governo do PT, ao longo desses doze últimos anos. Como se a crônica de resistência do Partido dos Trabalhadores ao avanço dessa luta pudesse ficar oculto aos olhos de quem a observa. Pois a estratégia é a mesma, sempre: publicamente ressalvar que o Governo criou e mantém condições de combater a corrupção; privadamente combater incessantemente, taticamente, cada avanço alcançado. É o transplante, para a luta política, do conteúdo das cartilhas de luta clandestina.

Enquanto isso uma força-tarefa comandada pelo Procurador-Geral da República se dirige aos EUA em busca de firmar acordos de cooperação que permitam avançar na investigação da corrupção na Petrobras.

E, enquanto isso, a imprensa internacional começa a despertar para o que está acontecendo por aqui e vai entendendo quem é o verdadeiro Lula, aquele que se esconde por décadas de mistificação e manipulação...

Claro que as ações de Lula são decorrentes da necessidade de sobrevivência.  O manual que ele segue é o mesmo utilizado por todos os políticos na mesma situação em todos os lugares do mundo. Não há como ser diferente. Inclusive no que diz respeito a açular a massa de inocentes úteis que acreditam piamente em cada palavra que ele diz. E inclusive no que diz respeito a mentir sempre, mesmo em relação ao indiscutível: sempre há um tolo que vai acreditar.

Esse "status quo" conduz ao que já se viu - basta lembrar do que foi postado na rede social ao longo da última campanha presidencial - e há de ser ver ainda mais, daqui para a frente: o aguçamento da tensão entre críticos e defensores.

Quanto mais as investigações avançarem, mais podridão há de ser encontrada; quanto mais podridão, mais açulamento da massa de inocentes úteis com bordões tais quais "golpismo", "oportunismo", "elite contra o povo", "imprensa golpista", "judiciário de direita"; quanto mais açulamento, mais reação; quanto mais reação, mais tensão; quanto mais tensão...

Esse quadro de tensão política interessa ao PT e Partidos companheiros: no momento certo, na melhor tradição brasileira, é negociada uma saída "no interesse da sociedade", aparentemente consensual, da qual a Sociedade foi alijada, e os crimes cometidos são sepultados por camadas imensas de papel e interpretações convenientes da legislação, pelas elites dominantes.

Ou não. E aí, nesse caso, somente Deus sabe o que poderá acontecer... 

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

ESQUERDA versus DIREITA

* Honório de Medeiros

Ronda por aí a idéia de que “esquerda” e “direita”, no Brasil, e mesmo no mundo, não mais seriam conceitos distintos um do outro, principalmente no que diz respeito à economia.

Nada tão distante da realidade, mas é fácil entender a razão dessa ideia: hoje, graças a um colossal, persistente e antigo processo midiático, o capitalismo, enquanto visão do mundo, se tornou praticamente hegemônico. Isso mesmo: quase não há ninguém que sustente, com alguma consistência, um ideário de esquerda.

Tal se deve a vários fatores, mas dois são fundamentais e ambos estão entrelaçados pelo mesmo núcleo. Dizem respeito à queda do “Muro de Berlim” e, no Brasil, ao aviltamento do PT. O que os une é o fato de ambos, tanto a URSS quanto o PT, jamais terem sido de esquerda. Quando muito abrigavam, por falta de opção, pessoas de esquerda.

A esquerda é, ontologicamente, fulcrada no valor “solidariedade”, enquanto a direito se firma na competição. Subjacente à noção de que somos essencialmente competitivos, não solidários, está o corolário do lucro e da ambição. Para a esquerda, devemos solidarizar o lucro; para a direita devemos e podemos lucrar com a solidariedade.

A esquerda é, ontologicamente, anticapitalista. Isso significa dizer que, para ela, os meios de produção devem ser socializados. Ou seja, não deve haver muito na mão de poucos, mas, sim, um pouco na mão de todos no que diz respeito à produção e ao gozo do lucro. Ao invés da produção de capital financeiro, o socialismo quer a produção do capital social.

Nesse sentido, tanto faz opor-se ao capitalismo de Estado intervencionista quanto ao capitalismo de Estado Mínimo – este uma verdadeira utopia retórica criada nos laboratórios dos economistas à soldo do grande capital para engabelar os inocentes úteis e os inúteis, igualmente.

A esquerda é, ontologicamente, anti-autoritária. Ela denuncia, se posiciona contra, rebela-se e não aceita qualquer imposição do Estado sobre a Sociedade à reboque de uma miragem tal qual um futuro idealizado, como nos apresentam os tecnopolíticos de plantão que pensam serem possuidores dos remédios milagrosos necessários para catapultar este ou aquele país à redenção sócio-econômica destruindo, pela base, as conquistas sociais dos últimos anos.

Por ser anti-autoritária, a esquerda tem um compromisso imediato e direto com a Sociedade, nunca com o Estado, este um instrumento de opressão cujos fundamentos ontológicos, sob os quais repousa sua suposta legitimidade, são flatus vocis.

A verdade é que do ponto de vista da propaganda o capitalismo, ou seja, a direita, apregoa que ganhou a guerra. Não mesmo. 

Quando menos se espera a Sociedade resiste, e o colossal processo de exploração através do qual cada dia um número maior tem menos, fica exposto a olho nu. Nesse momento mesmo alguns, até então desavisados, mas puros de intenção, percebem onde estão metidos e apontam as fragilidades e inconsistências de um modelo que se firma no que pode arrancar, enquanto mais-valia, do grosso da população.

São os arautos de uma nova era, a da aldeia global da qual nos falou Marshall McLuhan, onde qualquer informação é, sob todos os ângulos que se possam imaginar, do domínio de todos.

* Republicação.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

AVE DE RAPINA

* Honório de Medeiros

Como bem diz a mídia, o silêncio de Lula dá a medida de sua coragem. Quando o Brasil mais precisa de seus líderes políticos ele cala, fica de longe vendo o circo pegar fogo, distante do povaréu que sofre, para se aproveitar da sobra. Ave de rapina.

O DIÁRIO DE SEBASTIÃO GURGEL

* Honório de Medeiros

Acabo de reler as “MEMÓRIAS DE UM COMERCIANTE E BANQUEIRO (DIÁRIO)" de Sebastião Gurgel, abrangendo o período entre 1900 a 9 de agosto de 1955.

São cinco volumes – do 1290 ao 1295, 2ª. Edição, 2002 – da COLEÇÃO MOSSOROENSE, SÉRIE “C”, esse incomparável legado que Vingt-Un Rosado deixou para o futuro, sob patrocínio da PETROBRÁS e GOVERNO DO ESTADO – LEI CÂMARA CASCUDO.

Chegaram elas – as Memórias – às nossas mãos, segundo Raimundo Soares de Brito, que lhe faz o prefácio da edição, graças ao memorialista Obery Rodrigues e Ronaldo Gurgel, neto de “Seu Tião Gurgel”.

É uma obra incomparável sob muitos aspectos. Nela podemos encontrar desde o registro obsessivo do preço dos produtos vendidos pelo comércio, ano a ano, como a menção aos males –´e seu tratamento - que acometem a saúde do autor no espaço de tempo que dura o diário, além das anotações relativas às estiagens e invernadas. 

Não contivesse outros temas esses bastariam para um estudo de caráter sociológico. Mas há mais, muito mais, como por exemplo o registro da vida social, econômica e política de Mossoró na primeira metade do século XX. E, por que não dizer, um vasto e portentoso material para uma análise psicológica do autor e da época.

Ou seja: para encurtar a conversa, é todo um excelente material à espera de futuros mestres e doutores.

Não contive minha curiosidade e, antes de começar a lê-las pela ordem cronológica, busquei o volume alusivo à 1927. É o III. Vai de 01 de fevereiro de 1916 a 08 de junho de 1936. O que nos diz Sebastião Gurgel em relação à invasão de Mossoró pelo bando de Lampião? Infelizmente “Seu Tião” foi avaro nos comentários.

Aliás não vamos encontrar textos longos em relação a qualquer tema. São registros secos, esboços às vezes até mesmo toscos em relação aos fatos. Mas há um comentário seu, a respeito de sua conduta durante o episódio, que vale a pena ser contado pela auto-ironia nele contida: “Eu, já se sabe, nestas ocasiões, sou sempre o herói da retirada.”

Sebastião Gurgel não deixa claro para onde fugiu quando da invasão de Mossoró. Deixa claro, entretanto, que como conseqüência da onda de boatos acerca da volta dos bandidos, após o ataque, pegou a família no dia 10 de julho e a levou para Natal, onde alugou casa, somente voltando no dia 8 de setembro do mesmo ano.

Na mesma data – 31 de julho – na qual informa essa saída de Mossoró, comenta que no dia 24 de julho houve “um acontecimento sensacional”: trata-se do casamento do Monsenhor Almeida Barreto com Maria Nazareth de Oliveira, algo que realmente deve ter causado bastante impacto na época, haja vista a publicação – COLEÇÃO MOSSOROENSE, Série “B”, Número 1637, 1999 - pelo pesquisador Dr. Paulo Gastão, de plaquete na qual transcreve carta de Rodolpho Fernandes ao citado sacerdote, de quem era compadre, noticiando o recebimento de correspondência "confidencial" sua na qual expõe as razões do seu gesto.

Comove o leitor o apreço que Sebastião Gurgel teve por sua esposa e companheira de toda uma vida – Dna. Elisa – com quem teve oito filhos. Suas demonstrações de apreço por ela e agradecimento a Deus pela escolha que fez são notáveis, principalmente se levarmos em conta que o casamento foi, de acordo com os moldes da época, “arranjado”.

Como chama a atenção, também, a religiosidade simples de “Seu Tião”: missa dominical, envolvimento nas ações da Igreja, uma legião de “afilhados”, uma devoção prática a um Deus provedor e justiceiro ao qual se dirige de cabeça baixa para aceitar, sem questionamento, a “pena” por Ele imposta a sua família através de José, seu filho, seminarista, acometido de lepra. Nada mais medieval.

Quanto não há para se escrever acerca desse País de Mossoró e seus habitantes!

* Republicado.


segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O INVESTIMENTO NO SERVIÇO E SERVIDOR PÚBLICO DEVE SER UMA POLÍTICA DE ESTADO


* Honório de Medeiros

Há uma nítida distinção, em termos ontológicos, entre serviço público e iniciativa privada.

No primeiro caso, o paradigma que norteia a ação pública (iniciativa pública) é cumprir as expectativas da Sociedade, definidas constitucionalmente; no segundo, a ação privada é impulsionada pelo objetivo do lucro.

A própria Constituição Federal, embora estabeleça como princípio constitucional a livre iniciativa e o modelo capitalista de organização da economia, ressalva o caráter social da propriedade. Essa característica, segundo a melhor hermenêutica, referenda o primado de que o público está acima do privado, como o corrobora, também, a própria legislação infraconstitucional: assim são as previsões de intervenção do Estado na Ordem Econômica sem que, entretanto, se anatematize o lucro.

Quando tratamos de ações voltadas para a Sociedade, do primado do público sobre o privado, temos que convir que dada a especificidade dessa demanda de natureza essencialmente complexa, não somente quanto ao aspecto ético, político e social, mas, também, quanto a quantidade (a Sociedade) e a qualidade, elas necessariamente são, no mínimo, de médio prazo, não obstante as demandas emergenciais, enquanto as ações privadas, por serem pautadas pelo lucro são, essencialmente, instáveis e voláteis.

Se a ação pública se desenvolve, o mais das vezes, a médio e longo prazo, torna-se fundamental a preservação da sua memória, ou seja, qual o recurso humano nela envolvida e a conseqüente experiência advinda no trato com a questão trabalhada. Sem a preservação dessa memória não é possível a continuidade das políticas públicas, e a conseqüência é o comprometimento das ações estatais.

E somente é possível a preservação da memória aludida com o respeito ao serviço público, ao servidor público e a sua carreira diferenciada, assegurando-se-lhe o direito de ser credor do investimento de Estado em sua vida profissional, através de aposentadoria distinta, remuneração razoável e estabilidade na carreira. Trocando em miúdos: o serviço e o servidor público devem ser um investimento do Estado, dadas as peculiaridades do exercício da função pública, que exige sacrifícios indiscutíveis.

Por quê essas políticas públicas – aquelas consistentes – demandam tempo para serem implementada? Porque envolvem parcela significativa da Sociedade durante um longo tempo. É o caso, por exemplo, da erradicação do analfabetismo. As ações públicas que ao longo do tempo efetivamente originaram melhoria na qualidade de vida da Sociedade foram desenvolvidas sob o prisma da permanência, para além dos humores político-partidários.

Podemos comprovar essa afirmação analisando o segmento da Saúde e Educação em países comprovadamente desenvolvidos. Acresça-se outra assertiva: o desenvolvimento – não o econômico, mas, sim, o da qualidade de vida - desses países foi decorrente de políticas públicas, nunca privadas (lembremos a Escandinávia).

Mesmo no Brasil, onde faltam políticas de Estado, embora abunde as de Governo, muitos avanços foram obtidos graças a políticas públicas permanentes. Na área de saúde, citemos, o Brasil é referência mundial não somente no que concerne à erradicação definitiva de algumas moléstias como, também, em relação ao combate preventivo à AIDS.

Parece óbvio que, no caso do Brasil, os parâmetros estabelecidos pelo Consenso de Washington que originaram o cânone neoliberal encontraram solo fértil na tradicional ojeriza da Sociedade à utilização do serviço público e burocracia como instrumentos de obtenção e manutenção de privilégios de classe. É certo, também, que faz parte da cultura brasileira – embora a raiz possa ser rastreada até Portugal, como lembra Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder” – a construção dessa histórica instrumentalização do aparelho estatal por parte do estamento burocrático. É certo, ainda, que o capital internacional considera a presença do Estado na economia como um obstáculo à sua desenvoltura, bem como anatematiza a concepção de desenvolvimento econômico por ele impulsionado. A conclusão, portanto, errada, do senso comum e das elites atrasadas, é a crença de que o servidor e o serviço público, são alavancas do atraso.

Entretanto, a verdade é bem outra. Podemos desconsiderar o diagnóstico apresentado pelo senso comum da sociedade e teóricos do neoliberalismo em relação ao serviço público brasileiro em seus fundamentos; podemos e devemos criticar veementemente a causa por eles encontrada dos descaminhos específicos do Brasil. O Estado não é um mal em si mesmo. Com efeito, condenar o Estado, o serviço e o servidor público na sua totalidade, pelos desacertos da elite governamental, seria como propor igual condenação do Capital pelas falências e concordatas inerentes à iniciativa privada.

Contra esse ideário quase consensual que se tornou lugar comum no Ocidente, e que nos legou a permanente fragilidade de nossas instituições, e a favor da compreensão do papel fundamental do serviço e servidor público na obtenção do bem-estar social almejado pela Sociedade, argumenta Jânio de Freitas, em seu artigo intitulado “O Bolso e a Vida”, publicado na Folha de São Paulo de 19 de janeiro de 2003: “A iniciativa privada não faz um país, no sentido de vida social e econômica organizada. Só o serviço público pode fazê-lo. Os estudos sobre a recuperação da Europa, da devastação do pós-guerra ao bem-estar de hoje, sem igual no mudo, demonstram que o êxito não se explica pelo Plano Marshall, mas pelo papel decisivo do serviço público e pela função atribuída ao Estado naqueles novos ou restaurados regimes democráticos”. 

Não levar em consideração tal princípio pode nos levar a passarmos por cima do legado histórico de políticas públicas que foram extremamente úteis à Sociedade brasileira e que, com certeza, não poderiam ser implementadas pela iniciativa privada: um exemplo banal é a informatização das eleições no Brasil. As políticas públicas foram possíveis graças à preservação, governo após governo, qualquer que tivesse sido seu matiz, da memória das instituições. Esta somente é possível quando o servidor público tem respeitada sua diferença com o privado e a exclusividade de suas atribuições, tal como não trabalhar em nada além daquilo para o qual foi investido (seu cargo) – o que seria um desvio de função -, e que é uma garantia de Estado.

Por fim, da mesma forma como deve ter acontecido ao longo do processo histórico pelo qual passaram países altamente desenvolvidos e nos quais a participação do Estado foi fundamental - lembremo-nos da Dinamarca, Suécia, Canadá, França, Noruega, Japão -, para que o serviço e o servidor público sejam devidamente respeitados, necessário é combater a burocracia, a corrupção, e a ineficiência. Em o fazendo, asseguramos passaporte para um futuro melhor, capitaneado por um Estado que reflita os anseios da Sociedade.

Pois, afinal, o Estado não é um mal em si mesmo.

* Republicado.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

DISTORCER PARA MANIPULAR

* Honório de Medeiros

Em "On Liberty", de 1859, Sir John Stuart Mill sugere que "A única liberdade que merece esse nome é a de perseguir nosso próprio bem, à nossa própria maneira, desde que não tentemos privar os outros de seus bens, ou impedir seus esforços para alcançá-los... O único propósito pelo qual o poder pode ser exercido de forma correta sobre qualquer membro de uma sociedade civilizada contra sua vontade é impedir o mal aos outros. Seu próprio bem, físico ou moral, não é justificativa suficiente."

Não é preciso salientar a importância dessa obra para a construção do pensamento liberal. Mas é preciso ressaltar que esse ideário é um dos mitos fundantes do Estado contemporâneo fulcrado em uma Democracia tal qual encontrada nos países ocidentais.

Tampouco há necessidade de enumerar as críticas existentes a essa Democracia nos moldes ocidentais. São muitas. Algumas corretas. Entretanto vale a pena lembrar Sir Winston Churchill, e sua famosa "boutade": "A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Também vale a pena lembrar os países ocidentais como aqueles que detêm os melhores índices de desenvolvimento humano.

Entretanto as elites políticas sequiosas de obtenção e manutenção do poder já compreenderam, de há muito, o ponto fraco na argumentação de Sir John Stuart Mill, e o distorceram para manipularem e manterem seu "status quo" de dominação. A chave é "impedir o mal aos outros". 

Hoje em dia esse argumento retórico foi substituído por outro mais sofisticado e condizente com os tempos atuais: "a predominância do público sobre o privado". Ou seja, tudo quanto for oriundo do Estado (daqueles que detêm os aparelhos do Estado em suas mãos) deve ser respeitado e obedecido, já que implica, necessariamente, no interesse do predomínio do público sobre o privado. E a prevalência do público sobre o privado existe única e exclusivamente no intuito de impedir (que se faça) o mal aos outros.

O que está por trás dessa concepção, quando não se trata única e exclusivamente de banditismo, é a crença que as elites dirigente têm em sua capacidade de saber o que é o certo e o melhor para todos. As elites dirigentes creem ser, para isso, ungidas pelos deuses, ou pelo suposto próprio conhecimento, ou pelo destino para imporem, aos comuns dos mortais, as regras que estes devem seguir em Sociedade.

Nada mais autoritário. Nada mais arcaico. Nada mais atual.

OBRA PÚBLICA VERSUS PROGRAMA SOCIAL

* Honório de Medeiros

Há uma lógica perversa que induz a realização da obra pública em detrimento do programa social na administração governamental. Essa lógica é ainda mais perversa por praticamente excluir a opção pelas políticas públicas.

Em primeiro lugar a obra pública é conseqüência de uma demanda específica levada a efeito pelas grandes empresas de construção civil e de serviços – e suas agregadas – que precisam recuperar o montante investido nos candidatos por elas apoiados. Um corolário é que, convenhamos, essa demanda resulta do fato de seus proprietários, o mais das vezes, serem integrantes, através de laços familiares ou de compadrio, das elites governantes.

Em segundo lugar a obra pública é conseqüência de outra demanda específica: a necessidade de encher os cofres raspados das elites políticas vencedoras dos pleitos eleitorais, bem como a necessidade de construírem reservas financeiras para as futuras demandas político-partidárias.

Em terceiro lugar a obra pública é conseqüência de mais uma demanda específica: a de gerar condições de manutenção ou aquinhoamento financeiro dos quadros responsáveis pela gestão governamental, sob a alegação (interna) de que eles não suportariam sobreviver com a remuneração miserável que lhes paga o exercício de seus cargos.

Esse círculo vicioso – a elite política ser financiada pelas obras públicas e, como conseqüência, induzir seu surgimento – consome o que sobra, no orçamento, quando pagos o custeio da máquina e a folha de pessoal. Na maioria das vezes praticamente não há sobra para investimento em políticas públicas de longo prazo e, não por outro motivo, a Lei de Responsabilidade Fiscal vem sendo sistematicamente desrespeitada.

Tal círculo vicioso engendra, também, uma custosa propaganda com o objetivo de persuadir a Sociedade acerca dos bons propósitos de toda obra pública que esteja sendo feita. Assim, toda e qualquer obra pública surge, após passar pelo crivo da propaganda, como decorrência de uma “demanda social” e destina-se ao “desenvolvimento sustentado”.

Obras públicas através das quais circula o capital financeiro das elites para perpetuar a apropriação da força de trabalho da classe média, que é quem paga, na verdade, os tributos nossos de cada dia. Quem muito tem, pouco se importa com tributos; quem nada ou muito pouco possui, tampouco se importa.

Tudo isso soa como palavras ao vento... E as políticas públicas, tais como a luta pela erradicação do analfabetismo, a luta pela queda nos índices de mortalidade infantil, a luta pela melhoria na qualidade do ensino e na segurança pública, que não dão retorno financeiro – embora dêem retorno eleitoral (e como dão) – são deixadas de lado e nosso Brasil, este imenso Brasil que sobrevive às vezes milagrosamente apesar do Estado, continua um dos líderes mundiais da exclusão social.

* Republicado.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O PT DESTROÇOU A PETROBRAS

 * Honório de Medeiros

O PT dizia que o PSDB queria privatizar a Petrobrás. Antes isso. Bem melhor que destroça-la. Somente ontem a Petrobras encolheu para lá de 14 bilhões de reais.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

DA FALA PRESIDENCIAL

* Honório de Medeiros

O Brasil aguardava angustiado o discurso da Presidente Dilma. A Presidente Dilma falou. O Brasil ficou ainda mais angustiado.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O SERVIDOR PÚBLICO E AS ELITES

* Honório de Medeiros


Costumava iniciar, ano a ano, o curso de Filosofia do Direito, quando ensinava, dizendo a meus alunos que filosofar é desvendar a realidade, como se esta tivesse véus que a ocultassem e, por assim ser, impedisse os menos persistentes de encontrar a verdade que ela persiste em nos esconder.

Essa imagem inicial guarda débito, óbvio, com a bela elaboração da mitologia hindu, que nos apresenta a deusa MAYA enquanto responsável exatamente pela impossibilidade de enxergarmos a realidade tal qual ela é, bem como percebermos que tudo quanto nos cerca nada mais é que pura ilusão, um devaneio infindável a nos impedir o verdadeiro conhecimento.

Um desses véus mais persistentes é – se pudermos usar essa imagem para melhor explicarmos – aquele que despersonaliza a ação concreta do ser humano e a atribui a uma abstração, como é o caso da ideia de Estado.

Ouvimos e vemos sempre que o Estado não se faz presente, no caso do Brasil, desde épocas passadas, na luta contra a desigualdade e exclusão social – algo inquestionável, por sinal, pois podemos constatar que, de fato, evoluímos quanto ao aparato tecnológico com o qual o capital se instaura, mas não conseguimos solucionar questões comezinhas como a da eliminação do analfabetismo. Não é o Estado que não se faz presente. Somos nós mesmos que estamos ausentes. Despersonalizar a ação de quem detém o poder, mascarando-a com esses artifícios, dificulta sua responsabilização.

Outro véu onipresente é aquele que nos impede de percebermos como se instaura uma determinada lógica na ação daqueles que detém o Poder. Uma vez instaurada, essa lógica passa a fazer parte do nosso cotidiano sem que, em qualquer momento, passemos a questioná-la em seus fundamentos básicos. É o caso da persistente e programada despersonalização da ação da elite, através de artifícios que pretendem legitima-la, haja vista o caso do atual conceito vigente de Estado que deixa de ser o “topos” onde ocorre a ação, para ser o instrumento burocrático atrás do qual se esconde o processo de instauração dos mecanismos do Poder.

Podemos considerar que a despersonalização é conseqüência coerente da necessidade de ocultar o real. Seria como uma manobra diversionista, se utilizássemos a linguagem da guerra. E qual é esse discurso real? Lembremo-nos que, no Brasil, desde a ocupação portuguesa, o espaço público foi privatizado. Não é desconhecida a carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei solicitando regalias para sua família. Tampouco o é o episódio das Capitanias Hereditárias.

O fato é que, desde o início, e até o presente, esse espaço público pertence à elite e esta tem se revelado de um atraso inigualável. Raymundo Faoro demonstra, em sua obra “Os Donos do Poder”, criando o conceito de “estamento”, o quanto, ao longo dos anos, até o presente, a elite privatiza o público e o utiliza em proveito próprio. Ou seja, segundo Faoro, no capitalismo brasileiro não há, necessariamente, uma apropriação dos meios de produção por parte da elite, mas, sim, uma privatização do espaço público em proveito próprio. Assim é que vemos filhos de juízes sucederem aos pais, generais aos avós, deputados aos antepassados e assim por diante.

A vingança dos excluídos tem sido, ao longo do tempo, variada, mas permanente. Não é à toa que na literatura, na música, na arte, de uma forma geral, o “barnabé” é permanentemente motivo de chacota. Mas o resultado é inócuo. Continuamos tendo o espaço público privatizado.

Essa ação da elite tem seu preço: a ampliação do espaço público, o gigantismo, o excesso de burocracia. Burocracia: mais cargos para atender a demanda, mais ações para atender a procura. Com a globalização, essa burocracia passou a ser um entrave para o grande capital internacional legitimado pela doutrina do “Consenso de Washington”. A ordem passou a ser: devemos nos render ao Estado mínimo.

Chegamos, agora, ao ponto fulcral desta análise. A doutrina que passou a prevalecer após o ideário do “Consenso de Washington” exige um Estado mínimo para que não haja dificuldade na circulação do capital. Este tem que vir e voltar logo, bem mais gordo, para os bolsos de quem o possui. Para que não haja dificuldade nessa circulação, é necessário impor a ótica financeira na ação governamental. Essa ótica financeira demanda opções típicas de mercado, como equilíbrio nas contas públicas e pagamento dos juros extorsivos do dinheiro emprestado pelos organismos internacionais. Portanto, as políticas públicas de longo alcance, bem como os serviços e servidores públicos através dos quais elas são realizadas devem desaparecer para que a lógica do capital prevaleça, em detrimento da meta intangível.

Não é à toa que os políticos somente pensam em termos de obras físicas. Acaso o investimento em uma meta real, concreta, significativa, de erradicação do analfabetismo traria retorno em termos de voto e dinheiro para financiamento de campanhas políticas? Construir uma ponte, sob o argumento de que é preciso desenvolver, traz retornos mais concretos, segundo essa ótica, que investir na erradicação da mortalidade infantil.

Então vemos o surgimento da publicidade: o “Governo investiu tantos milhões em obra tal e qual”, e a sociedade esquece que mais importante é alcançar metas mais abstratas, como a diminuição dos índices de violência pública. Sem contar que o discurso para legitimar as obras é impressionante em sua vacuidade: construamos para acelerarmos o desenvolvimento e aumentarmos a riqueza; aumentando a riqueza, todos ganham.

Claro, o capital precisa de rapidez para circular. Então construamos estradas, rodoanéis, viadutos, pontes e outros mais, e esqueçamos o analfabetismo, a mortalidade infantil, a exclusão social, por que a riqueza vai circular mais rápido e tornar mais rico quem detém o capital, mas a desigualdade permanecerá, como o demonstra o crescimento desde Getúlio até os dias de hoje e a permanência dessa mesma desigualdade.

Nesse afã de tornar o Estado mínimo, faz-se a política da terra arrasada: não temos tempo nem queremos distinguir entre o que vale e o que não vale a pena eliminar: todo serviço público é ruim, e todos os servidores são ineptos.

Esse é o discurso da elite a encontrar eco na sociedade nauseada com o mau serviço público e os maus servidores que existem exatamente na justa medida da apropriação do espaço público pela elite ansiosa para se locupletar.

Assim, aquilo que parece óbvio, qual seja a recompensa pela vocação do servidor, uma aposentadoria digna, está desaparecendo e, com ela, o interesse em se devotar ao Estado.


* Republicação.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

DE PERTO NINGUÉM É NORMAL

* Honório de Medeiros

Sempre achei Caetano Veloso um intuitivo, aquele escritor de poemas musicados nos quais encontramos sacadas geniais, como pepitas ocultas em leitos de rios. O contrário de Caetano Veloso, para mim, é Chico Buarque, um cerebral, como vemos em "Construção" e "Roda Viva", ambas muito atentas ao rigor formal.

Pois bem, uma das grandes sacadas de Caetano Veloso está na letra de "Vaca Profana", 1984. Lá para as tantas ele diz:
"Mas eu também sei ser careta
De perto ninguém é normal
Às vezes segue em linha reta
A vida, que é "meu bem, meu mal""

"De perto ninguém é normal." Essa frase virou um meme e inunda as redes sociais ao ponto de muitos atribuí-la a Shakespeare, por exemplo. Não é à toa, a frase é um "insight" profundo acerca do ser humano, e diz respeito, em seu cerne, à dicotomia aparência x realidade.

Mantida a distância encaramos o outro/padrão a partir de critérios que a Sociedade estimula e aceita como sendo de normalidade, fundamentais para a manutenção do "status quo". Mas esse mesmo "outro", ao qual conhecemos à distância, e o percebemos como integrante da zona cinzenta de normalidade aparente, pode ser "outro" - e quase sempre o é - quando percebido em sua intimidade.

Escrevo essas linhas e lembro do maior escritor, na minha opinião, que aborda essa dicotomia: Patricia Highsmith, principalmente em sua série de cinco romances cujo personagem principal é Tom Ripley. A série inicia com "O Talentoso Ripley". Quem os leu, quem leu Highsmith sabe perfeitamente acerca do que me refiro.

Uma espécie de complemento a essa genial intuição acerca do ser humano pode ser apresentada por intermédio de outra frase que também inunda a rede social: "a intimidade gera o desprezo", atribuída a Shakespeare, Baltazar Gracián e Santo Agostinho. Confesso que não sei o autor, mas que ela é outra sacada genial, lá isso é.

Complemento? Sim. Se de perto, ou seja, intimamente (no sentido lato, de convivência pessoal) ninguém é normal, essa anormalidade gera o desprezo, entre outras reações. Pelo menos é assim que eu entendo.

Quem dizer, então, manter distância do "Outro" para não ser surpreendido com sua "anormalidade" vindo, assim, a desprezá-lo, recomendo a polidez. E o encaminho para a leitura de um outro texto meu, encontrável em http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br/2014/05/de-gentileza-cortesia-polidez-e.html.

Et voilà...