sábado, 22 de março de 2014

A FOLHA MORTA E O RIACHO



* Honório de Medeiros

A FOLHA MORTA DA QUIXABEIRA E O RIACHO

Às margens do pequeno riacho, sentado e com as costas repousando no espaldar inclinado de uma grande pedra, gozando a sombra de uma quixabeira, o adolescente, absorto, observava o revolutear de uma folha seca em suas águas.

A água fazia a folha ir e vir, às vezes afundar para reaparecer uma pouco mais à frente, acalmar-se e, pouco depois, irromper velozmente contra as pedras que afloravam ante seu percurso, numa sarabanda caótica de recuos e avanços que, mesmo assim, levavam-na riacho abaixo, para seu destino final.

O adolescente, esgotado por uma longa caminhada que o levou até o riacho, devaneava. No devaneio imaginou que aquela água era como a vida, e a folha, ele. Foi uma fugaz imagem, essa, instantânea. Mas ficou encravada em sua memória para sempre.

Algum tempo depois, já universitário, entre uma aula e outra se deitou com dois amigos de infância à sombra do telhado de um depósito que ficava ao lado de um dos auditórios da Universidade. Estavam começando uma nova fase da vida. Cada um dos amigos expôs o que imaginava ser seu próprio futuro, a partir do curso que estava fazendo. Cismavam, todos. Quando chegou sua vez de falar, antes mesmo de expor seu pensamento, se lembrou repentinamente daquele instante vivido alguns anos antes, às margens do riacho.

Na medida em que relembrava o episódio, contando-o, acrescentava detalhes não ao fato em si, mas à interpretação. Pensava o fato e o interpretava. Agora já não era apenas uma comparação entre sua vida e aquela folha seca que revoluteou nas águas do riacho. Era isso e algo mais: a folha seca, embora tivesse um revolutear caótico, não iria além das margens do riacho, e, caso superasse os obstáculos com os quais se deparava, desaguaria no rio que aguardava suas águas, mas, quem sabe, poderia prosseguir até cada vez mais longe, para destino ignorado.

Ao longo dos anos esse episódio passou a ser como que uma chave simbólica, cada vez mais complexa, para abrir a porta que conduzia à sua metafísica pessoal. Essa metafísica, esse discurso racional de si para si lhe permitia tentar compreender, na medida do possível, como era a realidade, tudo que o cercava e envolvia, incluindo ele mesmo.

A folha era ele; a realidade, a água...

O MESTRE E MARGARIDA

Em uma avaliação muito pessoal considero que os dois maiores romances escritos no século XX foram “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Marques, e “O Mestre e Margarida”, de Mikhail Bulgakov.

Li “O Mestre e Margarida” adolescente. Estávamos em plena ditadura e Aluísio Alves, líder político norte-rio-grandense cassado pelos militares montou uma editora para sobreviver. Dentre os livros lançados por sua editora estava a grande obra de Bulgakov, que ele ofereceu a uma tia minha sua seguidora em cujo entorno se reunia a fina flor da intelectualidade oposicionista e provinciana de minha cidade natal.

A primeira leitura registrou e apreciou a insólita trama, o roteiro absurdo, a parte epidérmica da alegoria do grande escritor ucraniano. A segunda nada acrescentou, exceto mais prazer. A terceira, entretanto, deixou marcas profundas em meu espírito de leitor agora engajadamente crítico, principalmente quando as comparo com “Cem Anos de Solidão” e, em ambas, suponho encontrar o fundamento básico do que se convencionou denominar, nos círculos acadêmicos, de “realismo fantástico”.

Mas não é disso que se quer tratar aqui.

Em certo momento inicial de “O Mestre e Margarida” aquele que vai ser a chave da trama, o desconhecido que se intrometeu na conversa entre Ivan Nikolaievitch e Mikhail Alexsándrovitch Berlioz, e que se apresentou com o nome de Woland, mas que na verdade era Satanás, após ouvir de ambos que eles não acreditavam em Deus, lhes diz o seguinte:

“- Também acho uma pena – confirmou o desconhecido com um olhar cintilante, e prosseguiu: - Mas eis a questão que me preocupa: se não há Deus, então pergunta-se, quem administra a vida humana e, em geral, toda a ordem na terra?”

“- O próprio ser humano – o enfurecido Ivan apressou-se em responder essa questão admitidamente não muito clara.”

“- Perdão – replicou docilmente o desconhecido -, mas para governar, queira ou não queira, é necessário possuir um plano preciso com alguns prazos estabelecidos, nem que seja o mínimo. Permita-me perguntar: como é que pode o ser humano governar, se não apenas não tem condições de fazer qualquer plano, mesmo que seja com um prazo ridiculamente curto de, digamos, mil anos, como também é incapaz de garantir sequer seu dia de amanhã? E realmente – o desconhecido virou-se para Berlioz – imagine, por exemplo, que o senhor comece a governar, dispondo de sua vida e da vida de outras pessoas, e então passe a tomar gosto pela coisa, e de repente o senhor... hum... hum... descobre que está com câncer de pulmão... – o estrangeiro sorriu docemente, parecia que a idéia do câncer lhe dava prazer -, é, câncer – repetiu a palavra sonora e apertou os olhos feito um gato -, pronto, seu governo chegou ao fim! Não lhe interessa o destino de mais ninguém, somente o seu.”

“Os parentes começam a mentir para o senhor. Pressentindo algo errado, o senhor recorre a médicos formados, depois a charlatães e até mesmo videntes. Assim como o primeiro e o segundo, o terceiro não ajuda em nada. Tudo termina tragicamente: aquele que, ainda há pouco, acreditava administrar algo de repente se vê imóvel em um caixão de madeira, e as pessoas que o cercam, compreendendo que não mais nenhuma utilidade naquele que está deitado, o queimam no forno. E existem casos piores: o sujeito pode decidir ir a Kislovôdsk, o estrangeiro olhou para Berlioz com os olhos apertados, uma coisinha de nada, pode-se pensar, mas nem isso ele consegue realizar, assim como não sabe por que ele de repente resolve escorregar e vai parar debaixo do bonde! Será que o senhor dirá que foi ele quem planejou isso para si mesmo? Não seria mais razoável pensar que ele foi governado por alguém? E aqui o desconhecido desatou a soltar estranhas gargalhadas.”

Como sabem os que leram o romance, Berlioz, de fato, escorregou e foi parar debaixo do bonde e teve a cabeça decepada – e esse foi o ponto-de-partida de toda a confusão instalada por Satanás na Moscou da primeira metade do século XX.

Caso se leve em consideração aquilo que Satanás diz, o revolutear caótico da folha seca nas águas do riacho é resultado do planejamento de algo ou alguém que lhe é incompreensivelmente superior. Não seria estranho supor que se trata, ali, da concepção de que nossas vidas obedecem, no geral, a desígnios sobrenaturais além de nossa capacidade de compreendê-los, muito embora mantenhamos uma possibilidade de atuação livre, nos limites desse plano.

Os limites da folha seca são as margens do riacho.

Essa, a grosso modo, é a doutrina de Santo Agostinho, que com matizes diferentes em cada época, ainda constitui o cerne do pensamento oficial da Igreja Católica.

O fluxo no qual nós nos movemos, ou seja, as águas do riacho, essa teoria podemos rastrear até Heráclito de Éfeso. Podemos encontra-la no pensamento oriental – basta ler Sidarta, de Herman Hess. Mas também é, por incrível que possa parecer, guardando os limites óbvios, o núcleo da filosofia marxista, de forte influência hegeliana. Hegel, como sabemos, bebeu exageradamente na fonte heraclitiana.

Assim temos: no primeiro caso, Deus; no segundo, a eterna realidade em fluxo; no terceiro, a luta de classes como motor da história, no âmbito da qual se desenrolam nossas vãs tentativas individuais de extrapolar os limites do determinismo.

Arte: oloboeocordeiro.wordpress.com

sexta-feira, 21 de março de 2014

ESTAMOS FICANDO CADA DIA MAIS LIMITADOS


* Honório de Medeiros

A ciência começa a comprovar algo que o senso comum já constatara: estamos ficando cada dia mais limitados na nossa capacidade de nos concentrar, principalmente em tarefas de natureza abstrata como ler um livro.

Em "A Civilização do Espetáculo" Mário Vargas Llosa especula, a esse respeito, por vias transversas, enquanto descreve a banalização da cultura contemporânea na medida da opção pelo entretenimento ligeiro, de conteúdo pobre e forma atraente, em detrimento da complexidade de nossa anterior herança cultural comum.. Não aponta causa específica para o fenômeno, mas alude, obliquamente, à onipresença imperiosa, por trás dos panos, da incessante necessidade do lucro.

Em outra face da questão o filósofo americano Michael J. Sandel, autor de "Justiça" menciona, em "O que o Dinheiro não Compra", como a corroborar Llosa, o poder avassalador do mercado a dominar tudo e todos, corações e mentes, e suas consequências no universo moral. Quem diz mercado, diz lucro.

Daniel Coleman, o famoso psicólogo americano professor em Harvard, criador do conceito de "Inteligência Emocional", pondera acerca de outra face desse poliedro social, ao apontar o déficit de atenção cada vez mais profundo, decorrente da escravidão às redes sociais , em nossa civilização, a originar uma demanda, no futuro, pelo próprio mercado, de todos quanto sejam capazes de se concentrar em tarefas de médio e longo prazo. Perguntamo-nos se quando o mercado reagir a catatonia (alienação) já não estará estabelecida de vez.

Acerca do fenômeno da volatilidade das coisas, causa e consequência desta atual fase do capitalismo, discorre Baumant com excepcional clareza em sua obra de caráter mais filosófico que sociológico. Somos uma sociedade evanescente, crê ele, na qual a transitoriedade de tudo, cada vez mais acentuada e veloz, seria o único fator permanente.

Ou seja, mercado, lucro, redes sociais potencializadoras, volatilidade, déficit de atenção, tudo interconectado.

Em outra face - são mesmo muitas, para a mesma realidade - Moisés Naím especula acerca da fragmentação do poder, tal qual o conhecemos, como consequência dessa realidade volátil, evanescente, permanentemente transitória, em decorrência, entre outras coisas, dos instrumentos que a alimentam e ampliam, ou seja, a rede social e a interconectividade, por exemplo.

O que estaria por trás de tudo isso? Como chegamos a esse patamar? Que teoria explicaria esse fenômeno em sua inteireza?

A menção, feita por Llosa, Sandel, Michel Henry e Debord, estes aqui ainda não citados, mas que também especulam acerca de faces do mesmo poliedro, qual seja o dinheiro, o lucro, o mercado, poderia, obliquamente, dar razão ao Marx sociólogo, não aquele do materialismo dialético. Ou à teoria da seleção natural, do qual o capitalismo seria um epifenômeno.

Nesses casos bem vale o dito atribuído a Proust: "o tempo é senhor da razão."

Ressalve-se, apenas, que as tentativas para conter a alienação, quando e se acontecerem, promovidas seja pelo próprio mercado, seja pelo Estado, poderão encontrar um status quo irreversível. Isso acontecendo, tendo como causa um brutal nivelamento por baixo em termos de capacidade de apreensão, cognição, pensar em termos complexos, perdemos todos.

Concretamente viveremos a realidade da Academia no Brasil, hoje: cada dia mais alunos, cada dia menos conhecimento...

quarta-feira, 19 de março de 2014

À MEMÓRIA DOS ESCRITORES ESQUECIDOS


* Honório de Medeiros                           
Na Rue de Lutèce, entre o Boulevard du Palais e a Rue de La Cité, em algum lugar conhecido por muitos poucos, o “La Mémoire de L'homme” cumpre sua missão de preservar a história abandonada da humanidade, assim como, na Barcelona arcaica, o Cemitério dos Livros Esquecidos, do qual nos deu conta Carlos Ruiz Zafón em “A Sombra do Vento”, arquiva, em seus infinitos desvãos, tudo quanto a loucura e a sanidade de cada um de nós ousou escrever ao longo do tempo e terminou encaminhado às traças ou, em lugar incerto e não sabido, a Biblioteca de Babel, descrita por Jorge Luis Borges em “Ficções”, de 1944, que nos fala da realidade constituída por uma biblioteca sem fim, abriga uma infinidade de livros possíveis e impossíveis...

Histórias tais quais aquelas vividas pelo velho militar a quem deu tempo e voz Alain de Botton, em “Nos Mínimos Detalhes”:

“Ele não tinha nenhum biógrafo para recolher suas palavras, para mapear seus movimentos, para organizar suas lembranças; ele estava vazando sua biografia para o interior de inúmeros receptores, que o ouviam por um momento, e então lhe davam uma pancadinha no ombro, e partiam para suas próprias vidas. A empatia dos outros era limitada às exigências do dia de trabalho, e assim ele morreu deixando fragmentos de si dispersos casualmente em meio a uma caixa de cartas esmaecidas, fotografias sem legenda reunidas em álbuns de família e histórias contadas a seus dois filhos e a um punhado de amigos que marcaram presença no funeral em cadeiras de rodas.”

Ou aquela acerca de todos os poemas e fragmentos que Robert Walser, ao qual aludiu tão belamente Enrique Vila-Matas em um dos seus romances-ensaios, escreveu e dispersou ao vento, sobre as neves por onde caminhou durante vinte e três anos, em sua Suíça natal, ansiando pela morte, interno em um manicômio.

A eles, a todos eles, a todos os esquecidos de ontem, hoje e amanhã, ao fim do livro de papel, da leitura densa, do pensar crítico, da profundidade do argumento, da propriedade do estilo, da beleza da forma, da imanência do conteúdo, da elegância do texto, do prazer da leitura cultivada, a homenagem de todos os que resistem,na Rue de Lutèce, nessa missão de preservar a história do Homem.

terça-feira, 18 de março de 2014

MP DO RN X GOVERNO DO RN

* Honório de Medeiros

Quanto à ação do MP/Rn contra o Governo do Rn, para que este use os milhões destinados à publicidade na Saúde e Segurança Públicas: jornal desta província apresenta opinião de um doutor advogado - como os há - na qual expressa que "essas ações não possuem fim público. Apenas midiático. Basta observar os precedentes jurídicos e ver que elas não deveriam ter sido mais propostas".

Ora, Doutor, se novas ações não arremeterem contra velhos vícios, não haverá novos precedentes. Esqueceu que a realidade não é estática?

sábado, 15 de março de 2014

A BANALIDADE DA CULTURA ATUAL

Llosa



* Honório de Medeiros

Fecho o livro de Llosa, Mário Vargas Llosa, “A Civilização do Espetáculo”, cujo título foi calcado no “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord, um dos mais originais pensadores do século, e me percebo confortável por ter encontrado um texto, da melhor qualidade, que desse corpo a essa sensação permanente de estranhamento e solidão vivenciada por mim e alguns poucos, originada pelo descompasso entre a “cultura” na qual fomos criados e a realidade que encontramos nos dias de hoje.

Não é, portanto, “saudosismo”, o que sentimos. Há, de fato, um progressivo, solerte e profundo processo de banalização dos valores fundantes da cultura, entendida esta como o pressuposto da construção do processo civilizatório. Cultura como a pensou, por exemplo, T. S. Elliot, citado por Llosa, em “Notas para uma definição de cultura”, de 1948, tão atual, posto que, por exemplo, lá para as tantas, expõe: “E não vejo razão alguma pela qual a decadência da cultura não possa continuar e não possamos prever um tempo, de alguma duração, que possa ser considerado desprovido de cultura.”

É bem verdade que em ensaios tais como “A civilização do espetáculo”, e “Breve discurso sobre a cultura”, Llosa não nos aponta as causas do surgimento desse epifenômeno muito embora aluda, de forma enfática, à “necessidade de satisfação das necessidades materiais e animada pelo espírito de lucro, motor da economia, valor supremo da sociedade”, como a força que está por trás das rédeas que conduzem o processo de destruição da cultura tradicional. Não nos é oferecido, de sua lavra, uma macroteoria, que nos explique tudo.

Para Llosa, por exemplo, civilização do espetáculo é "a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigentes é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal."

Como não lembrar do personagem de "O lobo da estepe", de Hesse, em seu permanente solilóquio: "O que chamamos cultura, o que chamamos espírito, alma, o que temos por belo, formoso e santo, seria simplesmente um fantasma, já morto há muito, e considerado vivo e verdadeiro só por meia dúzia de loucos como nós? Quem sabe se nem era verdadeiro, nem sequer teria existido? Não teria sido mais que uma quimera tudo aquilo que nós, os loucos, tanto defendíamos?"

Entendo, embora possa estar enganado, que mesmo Zygmunt Bauman e sua obra acerca da “vida líquida”, “modernidade líquida”, na qual mergulhei durante algum tempo, também não o conseguiu. Sua preocupação é, também, descrever um fato, ou melhor, um epifenômeno social, o processo civilizatório por nós vividos hoje, um degrau acima, em termos de tempo, com alguns instrumentos intelectuais diferenciados, como tentado pelo excepcional Norbert Elias.

Para Bauman, "a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante"; nas quais "as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos, e as capacidades, em incapacidades."

Eu me pergunto, em relação a Bauman: não há um padrão, uma lei geral que origine esse processo? Não seria essa "vida precária" em "condições de incerteza constante" uma face avançada do processo evolucionário de Darwin?

Aliás, ainda hoje somos devedores, nesse aspecto, dos titãs do século XX, quais sejam Freud, Marx e Darwin, por assim dizer. Mas não é o caso de abordar esse tópico por aqui. O caso aqui é apenas registrar o alívio ao constatar que não estamos errados nós que sentimos que somos, cada vez mais, órfãos de uma cultura que desde os meados do século XX, vem sendo deixada, cada dia mais velozmente, e de forma mais radical, para trás.

Que o digam, como pálido exemplo, a música, o teatro e a literatura contemporânea.

É a banalização da cultura...


Arte em desencarte.blogspot.com

domingo, 9 de março de 2014

QUATRO EX-PRESIDENTES E A DEMOCRACIA NA VENEZUELA


Nós, abaixo assinados, Oscar Arias Sánchez, Fernando Henrique Cardoso, Ricardo Lagos e Alejandro Toledo,concordamos em formular a seguinte declaração conjunta:

Temos observado com preocupação e alarme os acontecimentos que vêm ocorrendo na Venezuela durante as últimas semanas. Manifestações estudantis de protesto pacífico contra as políticas do governo, fato normal em qualquer sociedade democrática, têm sido objeto de uma repressão desmedida por parte das forças de segurança e de ataques por parte de grupos armados ilegais que alguns meios de comunicações vinculam com partidos políticos no governo.

Estes fatos estão na origem de uma alarmante escalada de violência e de uma rápida deterioração da situação dos direitos humanos no país.

A violência já custou a vida de várias pessoas atingidas por balas; estudantes presos declararam publicamente terem sido submetidos a torturas e tratamento desumanos e degradantes por parte das autoridades; a imprensa independente tem sido perseguida e dificuldades foram criados para impedir que os meios de comunicação informem sobre os acontecimentos, incluindo a retirada do ar de um canal internacional de televisão e ameaças de fazer o mesmo com outro, agressões físicas a jornalistas e limitações à aquisição de papel para a imprensa escrita.

Numerosos estudantes presos estão sob a ameaça de processos penais; o senhor Leopoldo López foi sumariamente privado de liberdade

Além disso, o protesto cívico e da oposição democrática tem sido criminalizado. Numerosos estudantes presos estão sob a ameaça de processos penais; o senhor Leopoldo López, líder de um partido de oposição, foi sumariamente privado de liberdade e acusado, por motivos políticos, de diversos delitos. Outros líderes democráticos também têm sido submetidos a perseguições judiciais por razões políticas.

Condenamos estes fatos e instamos o Governo venezuelano e todosos partidos e atores políticos a estabelecer um debate construtivo no marco de referência dos princípios democráticos universalmente reconhecidos, tal como definidos na Carta Democrática Interamericana.

Fazemos um apelo especial ao governo para que contribua para a criação, sem demora, das condições propícias para esse debate, com uma agenda compartilhada e sem exclusões. Para tanto é imperativo que se ponha fim de imediato à perseguição contra os estudantes e os líderes da oposição, colocando em liberdade o senhor Leopoldo López e todos os demais detidos ou perseguidos por razões políticas. Faz-se também necessária a condução de uma investigação independente e transparente sobre as denúncias de torturas e outras violações de direitos humanos. Devem cessar as restrições e hostilidades impostas à imprensa independente, o que inclui o restabelecimento do sinal do canal internacional de televisão bloqueado pelo governo.

É igualmente necessário que as manifestações de protesto dos partidos de oposição e de outras organizações sejam conduzidas de forma pacífica, como ocorre nas sociedades democráticas e com o respeito devido ao mandato das diferentes autoridades do país, nos termos definidos pela Constituição venezuelana.

Na condição de amigos da democracia venezuelana, confiamos que esse país será capaz de superar a extrema polarização e a intolerância que dominaram a cena política nos últimos anos – males que minaram a eficácia dos mecanismos internos de debate democrático e a confiança na independência e imparcialidade de numerosas e relevantes instituições. Ao mesmo tempo, fazemos um chamamento à comunidade internacional para que se junte a um esforço concertado em prol do fortalecimento da democracia e da preservação da paz na Venezuela.

5 de março de 2014

Oscar Arias Sánchez, Fernando Henrique Cardoso, Ricardo Lagos e Alejandro Toledo

* Oscar Arias, Fernando Henrique, Ricardo Lagos e Alejandro Toledo foram presidentes, respectivamente, da Costa Rica, Brasil, Chile e Peru.

sexta-feira, 7 de março de 2014

O "X" DA QUESTÃO NO ATAQUE DE LAMPIÃO A MOSSORÓ



* Honório de Medeiros                               



Aparentemente apenas dois personagens são protagonistas tanto da invasão de Apodi, por cangaceiros, em 10 de maio de 1927, quanto de Mossoró, em 13 de junho de 1927. Trinta e três dias separam uma da outra.

Eles são o Coronel Isaías Arruda, Intendente de Missão Velha, no Cariri cearense, e o cangaceiro Massilon.

Qual a natureza da relação entre o Coronel e o Cangaceiro? Circunstancial ou decorrente de um planejamento?

No que diz respeito ao Coronel sabemos que a invasão de Apodi somente lhe surgiu na mente quando foi procurado por Décio Hollanda para ajuda-lo nesse propósito. Não há qualquer registro de interesse seu quanto ao Rio Grande do Norte anterior a esse contato.

E quanto à invasão de Mossoró, sabemos que essa idéia lhe foi apresentada após o retorno de Massilon da invasão de Apodi, apesar da opinião de Sérgio Dantas, calcado em Raul Fernandes, no sentido de que o Coronel tinha seus olhos voltados para a riqueza da segunda maior cidade do Rio Grande do Norte.

E o sabemos em primeiro lugar porque o Coronel não chamara Lampião às suas terras. Lampião lá apareceu inesperadamente, conforme nos demonstra, com precisão, o próprio Sérgio Dantas. E o sabemos também porque não há registro de qualquer atividade anterior do Coronel em promover essa “indústria” da invasão de cidades em busca de lucro.

Por fim, podemos inferir essa hipótese com base na seguinte cadeia de raciocínio: se ele não tivesse sido procurado para ajudar na invasão de Apodi, não teria conhecido Massilon; se não tivesse conhecido Massilon não haveria o ataque a Mossoró.

Então tudo leva a crer, em uma primeira análise, ao se observar a balança na qual estão postados os argumentos, no fator circunstancial, quanto ao Coronel, enquanto não encontramos qualquer indício que aponte para um planejamento anterior no sentido de atacar Mossoró.

Se circunstancial, então o papel do Coronel nas duas invasões foi de somenos importância, limitando-se a arranjar jagunços, armas, munição e, talvez, animais para as duas invasões, e a convencer Lampião a participar do ataque a Mossoró.

Coube, aqui, para empreender esse raciocínio, usar a Navalha de Ockham.

Entretanto se essa participação do Coronel foi circunstancial cabe, agora, perguntar o seguinte: o ataque a Apodi e Mossoró, no espaço de trinta e três dias, foi, também, circunstancial ou havia um nexo entre eles, anterior ao próprio ataque?

Quanto à existência do nexo existem os seguintes fortes indícios:

(i) a correspondência de Argemiro Liberato avisando previamente do ataque;

(ii) o aviso do Coronel Chico Pinto ao Coronel Rodolpho Fernandes após a invasão de Apodi e antes de Mossoró;

(iii) a menção ao projeto do ataque a Mossoró feito por jornal da cidade;

(iv) a presença, tendo em vista seu passado, nos dois ataques, enquanto protagonista, de Massilon.

Se assim o é, então a idéia de atacar Apodi e Mossoró já existia antes dos ataques serem realizados.

Quanto à invasão de Apodi, não existem dúvidas em relação a sua natureza política. Teria o ataque a Mossoró também a mesma finalidade?

Mais: se o ataque a Apodi tinha natureza política, e o ataque a Mossoró também o tinha, o que se conclui quando sabemos que no primeiro caso o objetivo era o Coronel Chico Pinto? Obviamente que o ataque a Mossoró queria atingir, por sua vez, o Coronel Rodolpho Fernandes.

Se decorrente de um planejamento, então como explicar esse liame entre as invasões?

Se o há, necessariamente passa pelo único personagem cuja presença nos dois ataques não foi circunstancial: Massilon.

Nesse caso somente a história de Massilon anterior aos fatos pode explicar o ataque a Mossoró. Suas relações, seus antecedentes, sua geografia.

Esse é o “x” da questão.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

AQUELAS NOITES DO SERTÃO



* Honório de Medeiros

Em memória de Compadre Adauto Fernandes.



Naquelas noites do Sertão a escuridão tomava conta da entrada do Sítio onde, à luz do lampião, Compadre Adauto Fernandes - eu, menino, o chamava assim, e ele assim me tratava - reunia, no seu entorno, a família e os amigos para uma xícara de café e ouvirem as estórias que constituíam a antiga tradição oral dos nossos antepassados.

Às vezes havia lua e o mar de prata criava ademanes fantasmagóricos nos arbustos lá fora, no terreiro; ao vê-los instintivamente aproximava-mo-nos um pouco mais do círculos dos adultos e somente relaxávamos quando sua risada cristalina pontuava essas estórias; até então, ele nos deixara, a todos, em permanente suspense.

Decerto nunca mais pude fugir de um compromisso alegando uma mentira inocente sem recordá-lo e a um desses "causos" em especial. Dizia respeito a alguém do seu conhecimento que para fugir de um compromisso social jurara, através de bilhete, estar, em casa, de repouso e, ao voltar de um forró onde se esbaldara a noite inteira, em outra localidade, mal apeara do cavalo escutou choro e lamentações, e seu pressentimento foi confirmado pelos fatos - ela, sua esposa, jazia nos braços das filhas nos estertores da morte.

Exposto assim parece pouco, quase nada, mas somente sabe acerca da magia daquelas noites quem as viveu no Sertão, à luz bruxuleante do lampião, céu estrelado, ouvindo, de quando em vez, dentre outros, o canto arrepiante dos rasga-mortalhas...  

Eram estórias de amor, gestas, ódios de família, tesouros enterrados, botijas, estes descobertos por intermédio de sonhos que precisavam de uma sabedoria centenária para serem interpretados corretamente, raptos consensuais ou não, caçadas às onças nas quais somente a habilidade sobrenatural do caçador o fizera escapar com vida, pescarias milagrosas, recuperação da saúde via feitiços e orações de benzedeiras e curandeiros, secas e invernadas desmedidas, justiça divina a corrigir desmandos humanos, feitos com armas, aventuras de parentes e amigos nas terras desconhecidas da Amazônia, para a qual tantos tinham ido e não mais voltado, os segredos da Serra das Almas...

Na forma arrastada com a qual meu compadre contava suas estórias havia uma magia que segurava a atenção: uma cadência hipnótica na voz, uma lógica precisa no encadear das frases buriladas com palavras que Luis da Câmara Cascudo não hesitaria em classificar como egressas do puro português colonial e que os folgados das cidades grandes alcunhariam de "matutês", por pura ignorância, uma sabedoria antiga de quem herdara e cultivara o dom de contar uma estória.

O desfecho sempre ensinava uma lição de vida e, não raro, eram belíssimos achados a externar uma apropriada observação acerca da natureza dos homens e seu destino de desprezar o caminho certo, a senda justa, a trilha verdadeira, na vida, em troca das facilidades enganosas que o diabo apresentava, enquanto armadilhas, para a perdição da alma dos incautos.

Mas Compadre Adauto Fernandes não era somente um contador de estórias sem igual e um dos últimos integrantes daquela raça de titãs que colonizou o Sertão e que nasceu no começo do século XX. Dotado de arguta percepção a respeito dos homens e das coisas, certa vez me confessou por que não votara no candidato a prefeito que entusiasmava, então, sua numerosa família: "meu compadre, se ele não consegue arrumar sua casa, como vai arrumar a dos outros?" Não deu outra. Foi uma desastre. E quando lhe indagávamos, ansiosos, acerca do inverno, tão esperado todos os anos, respondia calmamente: "isso é com Deus, mas a experiência dos antigos diz que..."; quase sempre acertava.

Compadre Adauto Fernandes também era um poeta, em um certo sentido, alguém com o dom de dizer belamente, em momentos especiais, com tiradas de brilho incomum, algo que nunca brotaria, com facilidade, dos nossos corações e mentes. Dele escutei, certa vez, quando falávamos da morte, rompendo um seu mutismo inabitual, que "a morte, para quem fica, é uma saudade sem esperanças". Acaso alguém poderia ser mais preciso e poético ao descrever esse sentimento? De outra, referindo-se aos caminhos e descaminhos de um amigo comum, saiu-me com essa, aludindo à eterna vitória da esperança sobre a razão: "compadre, quem nos puxa mesmo é a mão da ilusão..."

Tantos anos passados, todos nunca esquecidos. Tantas vidas vividas e sua lembrança não esmorece. As vidas, meu compadre, sem homens como você, íntegro, único, profundo, está cada dia mais parecida com o que lhe ouvi dizer várias vezes a esse respeito - "é uma roca sem fuso!".

Arte: ahoradaprincesa.spaceblog.com 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

TUDO É IGUAL, DE MANEIRA DIFERENTE



* Honório de Medeiros


No centro do redondel, o domador controla o cavalo sem qualquer arreio. É somente ele e o animal. Nada mais. Ao redor, quedamos fascinados, nós todos, derreados na cerca, emoldurados pelas pedras gigantescas que margeiam, um pouco ao longe, aquele pequeno vale, sob um sol já esmaecido de final-de-tarde. Estamos no Sertão. 

A mão esquerda controla a nobre cabeça do cavalo. A direita, terminando no dedo indicador esticado, seus quartos, o "motor". Os olhos do domador captam qualquer nuance na postura do animal. E vice-versa. Há uma perfeita integração entre eles. Faz-se silêncio no final de tarde. Ouvem-se as cigarras. Os passos do cavalo e seus bufidos. Algum estalar de língua. Pássaros que passam fendendo o ar deixando seu registro sonoro. Como se mandasse ondas de energia invisível, a cada ação do domador corresponde uma reação imediata do cavalo. Naquele momento ambos são somente um.

Lembrei-me, então, de um antigo filme em preto-e-branco no qual um idoso "sensei" de alguma dessas artes marciais esotéricas era atacado por todos os lados por alunos, a seu convite. Não havia contato físico entre eles. Antes da chegada, a cada gesto do mestre, os alunos desmoronavam, esbarravam em um muro invisível, ficavam imobilizados. Seria aquilo possível? Eu duvidava, sempre duvidei. Mas ali, naquele instante, o domador não demonstrava um controle suave e eficaz, sobre o cavalo, que eu somente imaginava possível à base de arreios e gritos?

"Uma questão de sinergia", disse-me ele, logo depois. "A noção de unidade, a qual você alude, é a essência de todos os movimentos; não há necessidade de violência; um movimento levemente brusco, de minha parte, é perfeitamente assimilado por ele, contanto que estejamos conectados."

Entendo, mas não compreendo. É complexo. Penso que talvez não seja possível exprimir essa dinâmica com palavras. É algo para além da razão.

Encerrada a demonstração, a noite cai. Jantamos no alpendre da casa principal. Conversamos. É acesa uma fogueira. Longas toras rústicas cercam as chamas, em forma de círculo. São os assentos sobre os quais nos acomodamos. Na abertura do círculo, a uma pequena distância, uma tela é postada e, antes dela, um projetor. O domador, agora, é um fotógrafo famoso. Sua obra, pequena e consistente, densa, até mesmo brutal, quase minimalista, internacionalmente reconhecida, será apresentada sob a forma de ensaios fotográficos.

As sequências começam. Primeiro, um ensaio acerca de um lixão, onde o fotógrafo viveu durante três meses para extrair aquela essência que desfila ante nossos olhos; depois, um recorte impressionante do dia-a-dia de uma família sertaneja paupérrima cujo epicentro é uma formidável e expressiva criança tetraplégica; finalmente, em um voo de natureza essencialmente subjetivista, imagens de pedras, as mesmas pedras onipresentes naquele espaço-tempo ancestral no qual estão postadas suas raízes, sugerindo percepções metafísicas.

As imagens, sempre em preto-e-branco, colhidas por uma antiga máquina de origem russa, revelam um primor técnico inalcançável sem uma entrega absoluta. Essas imagens, às vezes, estão levemente desfocadas. Há, nelas, uma suave e proposital distorção, que as tornam quase góticas, induzindo uma ultrapassagem do real. O Claro/escuro, a distorção dos contornos, a fusão dos nuances, a expressividade diluída de cada fotografado, ressaltada, por exemplo, nos seus olhares, os escassos objetos presentes em cada contexto, tudo propõe um leitura pensada, exponencialmente repensada.

Não é possível um olhar descomprometido de apreciador de paisagens...

O que há de comum entre o domador e o fotógrafo? Difícil dizer. Lembro-lhe, no final, Musashi, o samurai japonês, o maior dentre eles, autor de "Go Rin No Sho", o livro de tantas e tantas leituras diferentes: a estratégia, o kenjutsu, a póetica, a pintura... Seus leitores avançados dizem da unidade de tudo quanto há. Musashi aludiu a essa unidade quando nos convidou a perceber que a estratégia para combater um só é a estratégia para combater dez mil. Mas essa é apenas uma das faces de seu singular pensamento. Há a estratégia para a estratégia. Há a compreensão que a realidade ilusória que nos cerca e envolve é fogo, ar, terra, água e nada. O nada...

Antes mesmo que o domador/fotógrafo soubesse de Musashi, ele me dissera, antes: "tudo é igual, de maneiras diferentes..."

Então nos dispersamos. Dias singulares, esses. Cada um de nós percebe de forma muito diferente a sessão de ensaios. Há quem interprete as imagens a partir da arte Naïf. Como assim, me pergunto. A ingenuidade retratista Naïf? Estranhos, nós somos. Conseguiríamos encontrar uma unidade nessas "maneiras diferentes" de perceber as imagens? Ou a unidade é constituída dessas maneiras diferentes de percebê-las?

Fomo-nos. O sereno chegara e pedia uma rede macia e um bom cobertor. Amanhã é outro dia diferente e igual a todos os outros que o antecederam. É hora de ouvir estrelas...

Fulô da Pedra, final de fevereiro de 2014.

Arte: razorfoot.wordpress.com

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

VOCAÇÃO DA OPORTUNIDADE

* François Silvestre

Quando eu entrei na Faculdade de Direito, após ter estudado para o curso de Medicina, larguei o sonho de ser médico. Movido pela inclusão no serviço militar, induzido pelo ódio à Ditadura, deixei minha vocação médica e dediquei-me, como estudante de Direito, à permanente aventura do sonho da liberdade. Mas a Liberdade não é um sonho. É uma obrigação. E quem não se obriga à liberdade não merece viver. Nenhum de nós fomos heróis. Não. Dividimo-nos entre resistentes, cúmplices, omissos e pusilânimes. Os que resistiram, em qualquer e mesmo pequeno gesto. Os que colaboraram, em gesto grandiosamente sujo. Os que mesmo sem concordar, silenciaram, no direito ao sossego. E os que, no estuário da pusilanimidade, tripudiavam ou ainda tripudiam sobre o esquife dos frágeis resistentes. Na Faculdade de Direito, Casa de Amaro Cavalcanti, ali defronte da Praça Augusto Severo, havia, no meio das trevas, as vocações. Os que queriam ser juristas. Outros, Juízes. Advogados de banca famosa. Alguns, escritores de Direito. Raro era o desejoso de ser Promotor. Profissão de primo pobre da vida forense. Salário miserável. Hoje, num lampejo de mágica, a profissão alçou-se à condição de preferência forense. Mudaram os tempos ou melhoraram os contracheques?

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

LA VIE EST BRÈVE...



* George Louis Palmella Busson du Maurier (6 March 1834 – 8 October 1896):



PEU DE CHOSE


La vie est vaine,
Un peu d’amour,
Un peu de haine,
Et puis—Bonjour!

La vie est brève:
Un peu d’espoir,
Un peu de rève
Et puis—Bon soir!

Tradução livre:

COISINHA

A vida é vã,
Um pouco de amor,
Um pouco de ódio
E então: bom dia!

A vida é breve:
Alguma esperança,
Um pouco de sonho
E então: boa noite!

DO OUTONO DA VIDA




- Sinto saudades da minha juventude - responde - ou, melhor, do que essa juventude tornava possível... Por outro lado, descobri que o outono tranquiliza. Na minha idade, é necessário se sentir a salvo, longe dos sobressaltos produzidos pela primavera.
(...)
- Sei a que está se referindo - diz, finalmente. - Também acontece comigo. Um dia me dei conta de que havia mais pessoas desagradáveis nas ruas, os hóteis já não eram tão elegantes nem as viagens tão divertidas. Que as cidades estavam mais feias e os homens mais grosseiros ou menos atraentes...
(O Tango da Velha Guarda; Arturo Pérez-Reverte).

* Arte pinçada em oblogdafabrica.blogspot.com

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

MATURIDADE IMPREGNADA DE DESCRENÇA

* Honório de Medeiros


É muito ruim quando a maturidade surge impregnada de descrença. O Homem fica melancólico, quando não amargo. Embora digam que esse é o preço que se paga pela chegada do outono da vida, prefiro atribuir tal descrença a circunstâncias que fogem ao seu querer, mesmo se contra elas tenha lutado a boa luta, aquela que se supunha não ser vã.

Que circunstâncias seriam essas, caberia a pergunta. Poderia ser diferente, se elas fosse outras? Ou, por outro lado, se essas circunstâncias fossem diferentes seria possível imaginar que a maturidade surgiria sem descrença, mesmo que acompanhada da constatação de que o espírito está preso numa estrutura que o tempo vai comprometendo lenta mas insidiosamente?

Creio que sim. Poderia ser diferente se elas fossem outras. Mas não o são, e aqui estou eu, em plena maturidade, descrente, talvez melancólico, mas não amargo.

No meu caso essa descrença diz respeito ao que concluo quando observo o que se passa em meu País e meu Estado. Espero não estar errado - acredito sinceramente que não estou - mas minha conclusão é que, no geral, estamos muito pior, hoje, se comparado com ontem, ou mesmo anteontem. 

Entendam-me. Não nego avanços, pois os há. Apenas sustento que esses avanços aconteceram espontaneamente, decorrentes da própria lógica do capitalismo primitivo brasileiro. E são poucos. Eu diria que também são superficiais. E ainda digo que a questão é que a descrença não resulta do pouco que avançamos, ou da fragilidade dos nossos avanços, conquistas da Sociedade. Resulta do quanto deixamos de avançar graças às nossas elites políticas predatórias, inconsequentes, criminosas.

O Estado, uma hipostasia, concretamente nada mais é que a expressão financeira, legal e policial dessas elites políticas.  

O resultado desse atraso no avanço, digamos assim, cada um de nós, brasileiro, norte-rio-grandense, pode aquilatar meramente se dando conta - e fazemos isso, dia-a-dia - do que está acontecendo no nosso entorno. Não quero sequer mencionar o descalabro na educação, saúde, infra-estrutura, segurança pública - esta, no meu entender, caso para intervenção federal no Estado. Menciono, e é o bastante, a situação das consequências da seca no resto do Estado, para além dos limites caóticos de Natal.

Pois a seca, a mesma seca que angustiou D. Pedro II há tanto tempo atrás, essa seca dizimou, no interior, a agricultura, a pecuária, a criação, a piscicultura, as feiras, o comércio, a construção civil, nesses últimos anos. Agora a seca está ameaçando a sobrevivência das pessoas, principalmente dos mais humildes, condenados estes a fazerem uso de água misturada com lama para satisfazerem suas necessidades fundamentais; a seca está conduzindo as pessoas para patamares antigos de desrespeito ao ser humano que as novas gerações, se os conhecem, o é por meio da literatura...

Enquanto isso o Governo do Estado constrói um complexo denominado pomposamente "Arena das Dunas" para a Copa do Mundo de 2014 ao mesmo tempo em que o sertanejo e o Sertão potiguar se desfazem em sol, poeira e sede, e alguns privilegiados, para os quais essa questão é algo remoto, se preparam para contemplar e usufruir desse templo do supérfluo, da trivialidade, da falta de respeito com a condição humana.

Ainda por cima há os que creem firmemente que a construção da "Arena das Dunas" é algo defensável. E a defendem. E apresentam estatísticas nas quais se embasam para apresentar essa defesa. E falam e escrevem defendendo o impacto econômico favorável ao Rio Grande do Norte em decorrência do dinheiro federal que está vindo às catadupas. 

Um complexo que será visitado e usufruído pelas elites, um complexo inacessível à base da pirâmide social, um complexo desnecessário para todo o restante do Rio Grande do Norte.

Essa é apenas uma das faces da tragédia. E quanto às mortes que estão ocorrendo no nosso Estado, originando estatísticas semelhantes à de guerras civis?

Há ou não motivos para descrença?

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

COMO AVALIAR UM GOVERNO?


* Honório de Medeiros

Em “Desenvolvimento Como Liberdade” (Companhia das Letras; 2004; 4ª reimpressão; São Paulo), Amartya Sen, Premio Nobel de Economia, ex-membro da Presidência do Banco Mundial, ex-professor da Universidade de Harvard, esposo de Emma Rothschild – autora, por sua vez, de “Sentimentos Econômicos”, um denso ensaio acerca de Adam Smith, Condorcet e o Iluminismo – nos convida a percebermos o contraste entre “um mundo de opulência sem precedentes” e “um mundo de privação, destituição e opressão extraordinárias.”


Trocando em miúdos Amartya Sen nos convida, isto sim, a entendermos o desenvolvimento como “um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam”, e, não, como algo a ser identificado com o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB), aumento de rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social.

Ao se referir à expansão das liberdades reais Amartya Sen se refere, por exemplo, aos serviços de educação e saúde – e aqui eu acrescento segurança pública – e aos direitos civis (a possibilidade de participar efetivamente do governo e das discussões e averiguações públicas em relação ao dinheiro do povo).

Aceitar esse ideário como premissa implica em compreender que somente podemos considerar desenvolvido ou em desenvolvimento um País, Estado ou Município no qual, à título de esclarecimento, e em termos bastante simplificados, o dispêndio com obras públicas, tais como calçamentos, praças, ruas, estradas, asfaltamento, prédios, pontes, açudes, barragens, estádios de futebol, somente ocorra como conseqüência necessária e comprovada da implantação de políticas públicas voltadas para o avanço em áreas como educação, saúde e segurança. Políticas públicas essas estabelecidas claramente através de programas e projetos que tenham metas, prazos, alocação de recursos humanos e financeiros delineados claramente e possam ser acompanhados e questionados pela sociedade como um todo.

Óbvio que, no Brasil, a lógica é outra. As obras públicas são sempre “vendidas” à sociedade como sendo essenciais para o desenvolvimento “sustentável”. Essa lógica, consciente ou inconscientemente, busca privilegiar quem há de se beneficiar direta e imediatamente com ela, ou seja, aqueles que detêm o capital em suas mãos e querem o retorno imediato do investimento realizado: comprova essa afirmação a relação estreitíssima, no Brasil, entre os governos, sejam estes federais, estaduais e municipais, e empreiteiros, construtores, empresários da construção civil, enfim, os quais, depois de realizadas as eleições, pressionam os candidatos aos quais apoiaram financeiramente a investirem em obras.

A constatação, também, daquilo que se afirma aqui pode ser feita por qualquer um: basta que nos perguntemos se com todo o investimento em obras ocorrido no Brasil, digamos, desde Fernando Henrique Cardoso, passando por Lula, até hoje, houve diminuição sensível na miséria, e melhoria significativa na educação, saúde, e segurança pública. Façamos o mesmo quanto ao Rio Grande do Norte, Natal e/ou Mossoró.

É claro que não. Muito ao contrário. O que nós percebemos, nitidamente, é que o avanço, se é que houve, é um verniz que não resiste a uma visita individual ou coletiva a postos de saúde ou hospitais, escolas públicas e delegacias de polícia.

Portanto a conclusão é óbvia: desconfiemos de qualquer obra que não esteja atrelada, comprovadamente, a uma política pública na área de educação, saúde ou segurança. Uma comprovação que salte aos olhos, indiscutível.

Para começo de assunto.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O MEU SERTÃO ESTÁ INDO EMBORA

No meu Sertão, essa Mesopotâmia que fica entre o São Francisco e o Parnaíba como o diz François Silvestre, desaparecem lentamente a parteira, a curandeira (farmacopéia nativa), a rezadeira, o cantador de viola, o cordelista, o xilogravurista, o vaqueiro, o armeiro, o forrozeiro de pé-de-serra, várias plantas e animais. Isso é o que eu me lembro. Tem muito mais. O próprio dialeto do Sertão, se posso chamar assim, está ferido de morte. A noção de honra, tão própria do sertanejo, esvaiu-se na vala comum da ética da malandragem, onde ser esperto é levar vantagem em tudo. Toda uma cultura desaparece lentamente. Um pouco mais à frente seremos todos iguais, todos medíocres, todos alienados...

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

DE TIRANIA E SERVIDÃO

Filipe, o Belo


* Honório de Medeiros                               

Finalmente expulsos da Terra Santa pelos Sarracenos em 1302 d.c., os Templários passaram a ter sua imensa riqueza cobiçada no Ocidente por soberanos e nobres, e seu prestígio e privilégios, assegurados até então pelos papas, invejados pelo clero.

Dentre eles, entretanto, nenhum chegou ao extremo de Filipe, o Belo, neto de São Luis, Rei da França.

Com o tesouro esgotado pelas lutas contra os barões feudais na tentativa de fortalecer seu reino e impor sua vontade, Filipe, para muitos o precursor do Estado-Nação, percebeu que muito próximo de si havia riqueza suficiente para saciar sua ambição e desenvolver seus projetos hegemônicos.

O primeiro grande obstáculo a vencer era a Igreja, no seio da qual fora criada a Ordem do Templo, sob as bênçãos de Honório II. Conta Charles G. Addison, historiador inglês, em seu acurado “A História dos Cavaleiros Templários e do Templo”, que “quando da morte do papa Bento IX (em 1304), ele conseguiu, por meio das intrigas do Cardeal Dupré, elevar o arcebispo de Bordéus, uma criatura sua, ao trono pontifical. O novo papa transferiu a Santa Sé de Roma para a França; convocou todos os cardeais a Lyon e ali foi consagrado (1305 d.c.), com o nome de Clemente V, na presença do Rei Filipe e seus nobres.”

O primeiro passo fora dado. A seguir o papa convoca os cavaleiros templários a Bordéus. Em 1307 o Grão Mestre do Templo e sessenta cavaleiros desembarcam na França e depositam o tesouro da Ordem no Templo de Paris. Jamais sairiam de lá.

Entrementes o Rei francês fazia circular diversos boatos sinistros e notícias odiosas a respeito dos Templários por toda a Europa, acusando-os de terem perdido a Terra Santa por não serem bons cristãos.

Depois, com base no depoimento de um cidadão condenado que viria a receber, posteriormente, o perdão real, mandou capturar, no reino, secretamente, todos os membros da Ordem, ao mesmo tempo em que determinava uma devassa nos bens dos Templários. A seguir Filipe endereçou correspondência aos reis europeus exortando-os a acompanhar seu exemplo.

E, então, os acusou dos mais esdrúxulos e inverossímeis crimes, tais como satanismo, sodomia, depravação herética e outros mais. Esses mesmos Cavaleiros Templários que durante centenas de anos derramaram seu sangue nas areias escaldantes da Palestina a serviço da Igreja, com as bênçãos e reverências dos reis da cristandade... 

O resto pertence à história. Torturados, espoliados, dizimados, os templários desapareceram de cena enquanto Filipe de França, e Eduardo, da Inglaterra, bem como o papa Clemente, passaram a mão em sua riqueza. Saliente-se que o Rei de Portugal, à época, não somente se recusou a fazer o mesmo, como deu guarida aos templários fugitivos que para lá se dirigiram.

Em tempos mais recentes, nos famosos expurgos realizados na União Soviética, a criação de crimes imaginários por parte da máquina do Estado a serviço de Stalin conduziu milhares de russos ao pelotão de fuzilamento ou aos campos de concentração. Quem desejar ler acerca do “modus faciendi” da máquina de acusação recomendo “O Zero e o Infinito”, do hoje esquecido Arthur Koestler, uma crítica contundente ao despotismo estalinista.

Esses fatos demonstram algo: em primeiro lugar, no que diz respeito à luta pelo Poder e sua manutenção, nada é novo, tudo é contemporâneo da existência do Homo Sapiens na face da terra; em segundo, não podemos permitir a concentração de Poder nas mãos de quem quer que seja; e, em terceiro, seja qual seja o credo ou ideologia, se favorecemos a concentração de Poder nas mãos de um,  ou de alguns, muitos irão sofrer as consequências no futuro.

Tais afirmações dizem respeito a qualquer agrupamento no qual o Homem viva em Sociedade. Tanto pode ser em família quanto, por exemplo, em uma Sociedade como a dos Estados Unidos da América, onde os métodos utilizados pelos seus serviços secretos, hoje em dia, aos poucos vão estrangulando as liberdades civis sob o falso argumento de proteção da segurança do País e seus habitantes. 

Na verdade o grande profeta dos últimos tempos acerca do exercício do Poder e suas decorrências foi George Orwell, em “A Revolução dos Bichos”; quanto à falta de legitimidade dos que o exercem, é de se render homenagens a Étienne de la Boétie e seu fabuloso “Discurso Acerca da Servidão Voluntária”.

Quão imensa é a vocação do Homem para a tirania e a servidão...

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

ATÉ PARA FAZER O MAL É PRECISO TALENTO


Honório de Medeiros


Napoleão tinha Fouché, seu sombrio e oblíquo Chefe da Polícia e Serviço Secreto, que morreu Duque de Otranto, após ser regicida; Portalis, seu jurista (o de Getúlio foi Chico Campos, criador da "Polaca", conhecido como "Chico Ciência"); Talleyrand, seu Ministro do Exterior.

O resto era perfumaria.

Alguém, com o Poder nas mãos, nos dias de hoje, precisa ter um também um Financeiro e um Planejador/Operador/Coordenador.

Nada mais.

Napoleão era, ele mesmo, esse Planejador/Operador/Coordenador. E quanto a Getúlio? Seria diferente? Creio que não.

Um Governo, para funcionar de alguma forma, precisa dizer claramente aos que o servem o que dele se quer. Claramente. Fiscalizar, assiduamente. E cobrar, sempre.

Por pior que seja o homem público no exercício do Governo ele não quer, para si, o ônus de ser chamado de incompetente.

Aliás, como bem está posto no "Príncipe", de Maquiavel, até para fazer o mal é preciso talento...

DE ENCONTROS


Honório de Medeiros



Não gosto de marcar encontros.
Deixo ao sabor do acaso, vê-la (o).
Assim, saio quando quiser,
Ou fico, caso queira.
E não lhe magoo.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

DE CINISMO




Honório de Medeiros


Deu-se que não se sabe se as elites políticas são cínicas por ignorância ou ignorantes por cinismo.