sexta-feira, 13 de setembro de 2013

DO JUIZ ENQUANTO INTÉRPRETE DA NORMA JURÍDICA

Honório de Medeiros


Há cinco tipos de juízes-intérpretes da norma jurídica: o onisciente, o populista, o técnico, o cortesão, e o camaleão.
 
O onisciente se pretende intermediário entre uma verdade absoluta - o Justo, o Certo, o Bom, etc. - e os reles mortais, que a ela não têm acesso. Deles escutamos afirmações tais quais: a norma jurídica (a Constituição Federal) é o que nós dissermos que ela é.
 
O populista se pretende intermediário entre os anseios da Sociedade e os reles mortais. Deles escutamos afirmações tais quais: a norma jurídica (o Direito, a Constituição Federal) deve, concretamente, ser instrumento de transformação social.
 
O técnico se pretende intermediário entre o universo das normas jurídicas positivas e a realidade dos fatos, inatingíveis pelos reles mortais. É o rei da subsunção, da filigrana jurídica. Supõe que somente é possível o todo pelo conhecimento minucioso de cada parte; desconhece que o todo é algo além da soma de todas as partes. Deles escutamos afirmações tais quais: uma coisa é minha vontade, outra é a disposição da norma jurídica.
 
O cortesão anseia ser o intermediário entre a vontade da elite governante e os reles mortais. É o rei do sofisma, da omissão consciente, da deturpação, da manipulação dos fatos e normas jurídicas. Deles escutamos afirmações tais quais:  a interpretação da norma jurídica deve levar em consideração os princípios da Sociedade.
 
O camaleão não se pretende. Pretende. Busca, sempre, a zona de maior conforto. Adequa-se à circunstância. Cambiante, pode encarnar qualquer dos tipos acima, dependendo da necessidade. Deles escutamos afirmações tais quais: as circunstâncias exigem de nós, intérpretes da norma jurídica, que...
 
É claro que podem existir outros tipos. Toda classificação é cavilosa. Não se esgota em si mesma. Sofre sempre nas mãos da realidade, que vive lhe destroçando sua arrogância.
 
E, claro, existe o bom juiz... 

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O MUNDO É UMA ALDEIA GLOBAL

Honório de Medeiros



                        Dia desses, estando em Martins, aproveitei uma madrugada para caminhar. Saí da “Morada dos Ventos”, no Sítio Canto, e peguei a estrada de barro que o liga à cidade. Um pouco mais à frente dois moradores do Sítio, de cócoras, tomavam canecas de café e conversavam. Quando passei ao lado deles, e antes de cumprimentá-los, escutei um fragmento de diálogo:

                            - E ele comprou como?

                            - Foi pelo computador. Pediu na internet.

                            Imediatamente evoquei minha adolescência em Natal, meados da década de 70,  recém-chegado de Mossoró e maravilhado com a biblioteca de minha tia, Elza Sena, professora da Ufrn, na qual encontrara dois livros muito estranhos, tanto em relação à forma com a qual foram escritos quanto ao seu conteúdo: “O Meio é a Mensagem”, e “A Galáxia de Gutemberg”.

                            Eu os li várias vezes. Não compreendia o alcançe de suas hipóteses, mas intuía que eram extremamente significativas. Nunca os esqueci. Já cinquentão pude comprovar, pessoalmente, quão revolucionário era o pensamento do seu autor.

                            Pois foi McLuhan, o autor dessas duas obras, escritas sob a forma de apotegmas e inseridas em um meio gráfico sofisticado e diferenciado, que pela primeira vez tratou dos meios de comunicação enquanto extensões do Homem. Não somente isso. De sua lavra também é, entre outras, a hipótese de que em algum momento uma “rede mundial de ordenadores tornará acessível, em alguns minutos, todo o tipo de informação aos estudantes do mundo inteiro.”

                            Estava lançado o conceito de “Aldeia Global”. Dele decorre o ousado corolário de que com o surgimento da energia elétrica – leia-se, hoje, “internet” - as relações sociais passam, necessariamente, a ser tribalizadas, em decorrência da maior interação entre os indivíduos.

                            A compreensão de que os meios de comunicação são extensões de Homem ainda não foi plenamente assimilada, mesmo quando tratada à luz da Teoria da Seleção Natural. McLuhan chamava essas extensões de “próteses técnicas”. Um computador, por exemplo, seria uma extensão do cérebro. As consequências dessa concepção constituem campo fértil para epistmologias evolucionárias.

                            Quanto à idéia de “Aldeia Global”,  McLuhan entende que é/será um “topos” de convergência, no qual  se permitiria, em qualquer circunstância a comunicação direta e sem barreiras.

                            Ou seja, trocando em miúdos, a “internet”. O mundo é/será uma imensa “Aldeia Global”, graças à possibilidade de comunicação instantânea entre seus moradores.

                            Esse evocar se desdobrou, enquanto eu caminhava, em uma série de conexões com leituras de outras obras, tal como “A Biblioteca de Babel”, uma metáfora acerca da Sociedade de informação, genial texto de Jorge Luis Borges, a Teoria de Sistemas de Ludwig von Bertalanffy, e a relação entre a Sociologia de Marx e a Teoria da Seleção Natural, de Darwin. Tudo quanto torna fascinante o mundo dos livros e dos seus leitores, essa eterna tentativa de entender o que somos, e para onde vamos...

                            Mas essa já é uma outra história.

                            Curioso, mesmo, é constatar o quanto anda esquecido McLuhan. 

terça-feira, 10 de setembro de 2013

A INVENÇÃO DO INIMIGO IMAGINÁRIO


“Nenhuma classe da sociedade civil pode desempenhar este papel sem provocar um momento de entusiasmo em si e nas massas, momento durante o qual confraterniza e funde-se com a sociedade em geral, confunde-se com ela, sendo sentida  e reconhecida como sua representante geral; momento em que suas exigências da própria sociedade, em que é realmente a cabeça e o coração da sociedade. Somente em nome dos direitos gerais da sociedade pode uma classe especial reivindicar para si a dominação geral. Para a tomada de assalto desta posição emancipadora e, portanto, para a exploração política de todas as esferas da sociedade no interesse de sua própria esfera, não bastam apenas a energia revolucionária e o orgulho espiritual. Para que coincidam a revolução de um povo e a emancipação de uma classe especial da sociedade civil, para que um estamento seja reconhecido como o estamento de toda a sociedade, é necessário, ao contrário, que todas as falhas da sociedade se concentrem numa outra classe, que um determinado estamento seja o estamento do repúdio geral, que seja a soma da limitação geral; é necessário que uma esfera social particular seja considerada como o crime notório de toda a sociedade, de tal modo que a libertação desta esfera apareça como a autolibertação total. Para que um estamento seja par excellence o estamento da libertação, é necessário, inversamente, que outro estamento seja o estamento declarado da subjugação. O significado negativo geral da nobreza e do clero franceses condicionou o significado positivo geral da classe primeiramente delimitadora e contraposta, a burguesia” (Marx, "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel").

domingo, 8 de setembro de 2013

UMA PAIXÃO DA ADOLESCÊNCIA

Honório de Medeiros



A segunda paixão literária da minha vida, da infância para a adolescência: os três mosqueteiros, que na realidade eram quatro: D'Artagnan, Atos (o Conde de La Fère), Aramis (o Abade D'Herblay) e Porthos. Longa vida à genialidade de Alexandre Dumas! A primeira foram os personagens do também genial Monteiro Lobato: Pedrinho, Narizinho, Emília de Rabicó, o Visconde de Sabugosa, o próprio Rabicó, Dona Benta, Tia Nastácia. A terceira foram os personagens de Karl May, hoje tão esquecido, "Mão-de-Ferro" e Winnetou e, ao mesmo tempo, Edgar Rice Burroughs e seu imortal Tarzan. Finalmente Jean Valjean, "O Homem que Ri", todos de Victor Hugo. As duas primeiras graças à biblioteca de Jaci Rêgo, a terceira e quarta graças à biblioteca do Colégio Diocesano Santa Luzia, e a última graças à biblioteca de Seu Luís Fausto, que o bom Deus o tenha, a ele e a Jaci, em seu regaço.

sábado, 7 de setembro de 2013

PROGRAMAÇÃO CARIRI CANGAÇO 2013

 
Cariri Cangaço
17 Setembro 2013
Terça-Feira
JUAZEIRO DO NORTE
 19:00 h - Juazeiro do Norte
Abertura - Memorial Padre Cícero
19:30 h - Conferência: PADRE CÍCERO E O TEMPO CONTEMPORÂNEO
Luitgarde Cavalcante Oliveira Barros
MESA: Honório de Medeiros, Ângelo Osmiro, Leandro Cardoso

18 Setembro 2013
Quarta-Feira
BARRO
11:30 h -Visita ao Coité - Casa do Padre Lacerda - Mauriti-CE
12:30 h - Visita à Fazenda do Cel Domingos Furtado- Milagres-CE
15:10 h - Visita à Casa de Sinhô Pereira - Barro -CE
PLACA HOMENAGEANDO O LOCAL
16:30 h - Homenagem à Dona Chiquinha Pereira
PLACA EM HOMENAGEM À FAMÍLIA PEREIRA
Presenças dos Filhos de Luis Padre:
Hagahús Araujo e Wilson Póvoa
Átrio do Santuário de Santo Antônio - Barro -CE
17:00 h -Visita à Casa das André - Barro - CE
Fazenda do Major Zé Inácio -Barro - CE
19:20 h - Conferência: SINHÔ PEREIRA
Leandro Cardoso Fernandes
Mesa: Napoleão Tavares Neves , Professor Pereira e Sousa Neto

19 Setembro 2013
Quinta-Feira
Juazeiro do Norte
9:00 h - Juazeiro do Norte
INGRA PREMIUM HOTEL
HOMENAGEM A ALCINO ALVES COSTA
Lançamento DVD Alcino o Caipira de Poço Redondo
Ivanildo Silveira
Homenagens ao Decano, por:
Luitgarde Cavalcante Oliveira Barros
Inácio Loyola Damasceno
Juliana Pereira Ischiara

11:00 h - Posse do Conselho Curador Cariri Cangaço
CONSELHO ALCINO ALVES COSTA
ALMOÇO LIVRE
PORTEIRAS
13:30 h - Saída para Porteiras
14:45 h - Visita à Fazenda Piçarra - Porteiras-CE
15:00 h - Roda de Conversa:  A VIDA DE ANTÔNIO DA PIÇARRA
Wilton Santana Filho (Vilson da Piçarra)
16:00 h - Visita à Fazenda Guaribas - Porteiras-CE
16:20 h - Roda de Conversa:  O FOGO DAS GUARIBAS
Manoel Severo Barbosa
18:30 h - A Chegada de Lampião no Inferno
Aldo Anísio
Ginásio de Esportes
18:40 h - Conferência: CONSELHEIRO E A GUERRA DE CANUDOS
Múcio Procópio
Mesa: Sabino Bassetti, Luitgarde Barros, Wescley Rodrigues

20 Setembro 2013
Sexta-Feira
Missão Velha
8:30 h - Missão Velha
9:00 h - Visita à Casa do Cel Isaías Arruda 
9:30 h - Visita ao prédio da Prefeitura Municipal
Aposição da Foto do Cel Isaías Arruda no Rol de Ex-Prefeitos
Presenças:
Familiares de Isaías Arruda e José Gonçalves e Coronéis de Missão Velha
10:00 h - Jamacarú
10:30 h - Conferência: ISAÍAS ARRUDA - O CORONEL MENINO 
João Tavares Calixto Júnior
Mesa:João Bosco André, Archimedes Marques, Kiko Monteiro
12:00 h - Visita a Gameleira de São Sebastião
Serra do Mato - Fazenda Cel. Santana

AURORA
15:00 h - Visita ao Tipi – Fazenda de Marica Macedo 
16:00 h – Visita à Fazenda Ipueiras – do Cel. Isaías Arruda
17:30 h – Visita à Estação Ferroviária da RVC e a sede da Secult.
Escola Técnica Federal do Araçá
19:30 h - Conferência: MARICA MACEDO DO TIPI
Vicente Landim de Macedo
Mesa:José Cícero, Juliana Ischiara, Aderbal Nogueira

21 Setembro 2013
Sábado
Barbalha
8:30 h - Visita ao Alto do Leitão
9:30 h - Patrimônio Histórico
Exposição do Pau da Bandeira
Balneário do Caldas
10:30 h - Conferência: A ANTROPOLOGIA CRIMINAL DAS CABEÇAS
Dr. Lamartine Lima
11:15 h - Conferência: A ETNOFARMACOBOTANICA A PARTIR DA VISÃO PANORÂMICA DE UMA TURISTA APRENDIZ, PELOS CAMINHOS QUE CRUZAM O GEOPARK ARARIPE
Dra. Maria Thereza Camargo
Mesa:Paulo Gastão, Leandro Cardoso, Narciso Dias
14:00 h - Conferência: ROTEIROS INTEGRADOS DO CANGAÇO
João de Sousa Lima
14:30 h - Conferência: ROTA DO CANGAÇO DE XINGÓ
Jairo Luiz Oliveira
Mesa:Geraldo Ferraz, Kydelmir Dantas, Carlos Elydio

CRATO
Largo da RFFSA
17:00 h - Tarde de Lançamentos e Relançamentos
DÉ ARAUJO, de Geraldo Ferraz
COMO CAPTURAR LAMPIÃO, de Luiz Ruben
LAMPIÃO, CANGAÇO E CORDEL, de Rubinho Lima
QUEM É QUEM NO CANGAÇO, de Paulo Gastão
ASSIM ERA LAMPIÃO de Ângelo Osmiro
LAMPIÃO EM PAULO AFONSO, de João de Sousa Lima
A OUTRA FACE DO CANGAÇO, de Antônio Vilela
O AUTO DE ANGICO, de Luiz Zanotti
A CÂMARA MÁGICA DE BENJAMIM ABRAHÃO, de Vilma Maciel
SITIO DOS NUNES DE FLORES, de Ana Lúcia e Paulo Gastão
ASSIM MORREU LAMPIÃO, de Antônio Amaury
TIPI, DE ARBUSTO A DISTRITO, de Vicente Landim Macedo
Largo da RFFSA
SEDIÇÃO DE JUAZEIRO

19:00 h -Apresentação e Debate sobre o Filme
Jonasluis DA SILVA, de Icapuí

Sábado, dia 21 e Domingo, dia 22 em Crato...
MOSTRA DE DOCUMENTÁRIOS
LÁ PRAS BANDAS DE MARIA, de Louise Farias
SOBRE CABRAS, MACACOS E CANGACEIROS, de Camilo Vidal
CANDEEIRO, de Aderbal Nogueira
FEMININO CANGAÇO, de Manoel Neto
QUERÊNÇA, de Iziane Mascarenhas
MENTIRAS E MISTÉRIOS DE ANGICO, de Aderbal Nogueira
SILA, de Aderbal Nogueira
CANGACEIRO GATO, de João de Sousa Lima
NA CABEÇA DO POVO, de Helena Pereira
FIDERALINA AUGUSTO LIMA, de Ana Célia de Oliveira
FATOS, de Aderbal Nogueira

Cariri Cangaço 2013
Onde o Brasil de Alma Nordestina se Encontra...


Espero que todos possam se unir a esta 
Grande e Maravilhosa Família,
a Família Cariri Cangaço; 
sejam todos muito bem vindos !

Manoel Severo
CURADOR DO CARIRI CANGAÇO

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

E O TRIBUNAL DE CONTAS?

Honório de Medeiros
 
 
O espantoso, nisso tudo, ou seja, no que diz respeito à situação financeira do Estado do Rio Grande do Norte, é o comportamento do Tribunal de Contas.
 
Se sabia que a situação do Estado estava nas condições em que se encontra, fosse porque vem de muito, fosse porque é de agora, deveria ter tomado alguma providência além de produzir relatórios que ninguém lê ou dá atenção, principalmente o próprio Governo.
 
Se não sabia é de uma incompetência absurda. Aliás, se sabia ou sabe e nada fez, ou se não sabia e não sabe, portanto nada pode fazer, em qualquer dessas situações, cabe questionar acerca da necessidade de um Tribunal de Contas a sorver dinheiro, a rodo, do Tesouro Estadual. Dinheiro nosso, suado, que poderia estar alavancando a saúde, educação ou segurança pública.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

DE COMO PROCEDEM OS RATOS


Honório de Medeiros
 

Certo comensal do Poder, da estirpe dos ratos escolados, percebendo que o barco "Governo do Rio Grande do Norte" está fazendo água, e juntando os cacarecos para cair fora - segundo ele - antes do naufrágio, denomina de "absurdamente incompetente" o desempenho da tripulação.

Pondero-lhe que desde o início a tripulação teve que lidar com sérias dificuldades financeiras ao herdar uma imensa dívida da gestão anterior, agravadas pela queda acentuada na arrecadação que mantém o barco. 

O comensal desdenhou de minha ponderação retrucando que "essa dívida deveria ter sido escancarada em todos os portos e entregue imediatamente à Justiça para as providências legais que evitariam tudo quanto aconteceu; e as medidas para saneá-las deveriam ter sido tomadas desde o início, quando a tripulação tinha credibilidade para fazê-lo". 

"O resultado disso tudo", continuou ele, "é que hoje a tripulação não conta com ninguém: nem os passageiros, tampouco a Justiça, incluindo aí Tribunal de Justiça, Tribunal de Contas e Ministério Público, sequer a Assembleia Legislativa, por fim até mesmo seus parceiros nos negócios  que os levaram ao comando do barco a abandonou." 

Pergunto-lhe porque sabendo de tudo isso demorara tanto a cair fora. "Ainda havia algum queijo no porão", respondeu. 

"A tripulação não tem como resolver todas essas dificuldades em um passe de mágica", tento ainda. 

"Então que caia fora. Saia. Peça licença e se retire. Deixe o espaço para outros." 

E com seu andar nervoso de rato escolado subiu a bordo do escaler e se foi, sem sequer olhar para trás, para ver o banco adernando.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A CANÇÃO DE AMOR DE J. ALFRED PRUFROCK




Thomas Stearns Eliot (1888-1965)
Prêmio Nobel de literatura em 1948



S'io credesse che mia risposta fosse
A persona che mai tornasse al mondo,
Questa fiamma staria senza piu scosse.
Ma perciocche giammai di questo fondo
Non torno vivo alcun, s'i'odo il vero,
Senza tema d'infamia ti rispondo.
Dante Alighieri. Ladivina Commédia
Inferno, XXVII, 61-66 (N. do T.)
 
 
 
Sigamos então, tu e eu,
 Enquanto o poente no céu se estende
 Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
 Sigamos por certas ruas quase ermas,
 Através dos sussurrantes refúgios
 De noites indormidas em hotéis baratos,
 Ao lado de botequins onde a serragem
 Às conchas das ostras se entrelaça:
 Ruas que se alongam como um tedioso argumento
 Cujo insidioso intento
 É atrair-te a uma angustiante questão . . .
 Oh, não perguntes: "Qual?"
 Sigamos a cumprir nossa visita.
 
No saguão as mulheres vêm e vão
 A falar de Miguel Ângelo.
 
A fulva neblina que roça na vidraça suas espáduas,
 A fumaça amarela que na vidraça seu focinho esfrega
 E cuja língua resvala nas esquinas do crepúsculo,
 Pousou sobre as poças aninhadas na sarjeta,
 Deixou cair sobre seu dorso a fuligem das chaminés,
 Deslizou furtiva no terraço, um repentino salto alçou,
 E ao perceber que era uma tenra noite de outubro,
 Enrodilhou-se ao redor da casa e adormeceu.
 
E na verdade tempo haverá
 Para que ao longo das ruas flua a parda fumaça,
 Roçando suas espáduas na vidraça;
 Tempo haverá, tempo haverá
 Para moldar um rosto com que enfrentar
 Os rostos que encontrares;
 Tempo para matar e criar,
 E tempo para todos os trabalhos e os dias em que mãos
 Sobre teu prato erguem, mas depois deixam cair uma questão;
 Tempo para ti e tempo para mim,
 E tempo ainda para uma centena de indecisões,
 E uma centena de visões e revisões,
 Antes do chá com torradas.
 
No saguão as mulheres vêm e vão
 A falar de Miguel Ângelo.
 
 
 E na verdade tempo haverá
 Para dar rédeas à imaginação. "Ousarei" E . . "Ousarei?"
 Tempo para voltar e descer os degraus,
 Com uma calva entreaberta em meus cabelos
 (Dirão eles: "Como andam ralos seus cabelos!")
 - Meu fraque, meu colarinho a empinar-me com firmeza o
 queixo,
 Minha soberba e modesta gravata, mas que um singelo alfinete
 apruma
 (Dirão eles: "Mas como estão finos seus braços e pernas! ")
 - Ousarei
 Perturbar o universo?
 Em um minuto apenas há tempo
 Para decisões e revisões que um minuto revoga.
 
Pois já conheci a todos, a todos conheci
- Sei dos crepúsculos, das manhãs, das tardes,
 Medi minha vida em colherinhas de café;
 Percebo vozes que fenecem com uma agonia de outono
 Sob a música de um quarto longínquo.
 Como então me atreveria?
 
E já conheci os olhos, a todos conheci
- Os olhos que te fixam na fórmula de uma frase;
 Mas se a fórmulas me confino, gingando sobre um alfinete,
 Ou se alfinetado me sinto a colear rente à parede,
 Como então começaria eu a cuspir
 Todo o bagaço de meus dias e caminhos?
 E como iria atrever-me?
 
E já conheci também os braços, a todos conheci
- Alvos e desnudos braços ou de braceletes anelados
 (Mas à luz de uma lâmpada, lânguidos se quedam
 Com sua leve penugem castanha!)
 Será o perfume de um vestido
 Que me faz divagar tanto?
 Braços que sobre a mesa repousam, ou num xale se enredam.
 E ainda assim me atreveria?
 E como o iniciaria?
 
.......
 
Diria eu que muito caminhei sob a penumbra das vielas
 E vi a fumaça a desprender-se dos cachimbos
 De homens solitários em mangas de camisa, à janela
 debruçados?
 
Eu teria sido um par de espedaçadas garras
 A esgueirar-me pelo fundo de silentes mares.
 
.......
 
E a tarde e o crepúsculo tão .docemente adormecem!
 Por longos dedos acariciados,
 Entorpecidos . . . exangues . . . ou a fingir-se de enfermos,
 Lá no fundo estirados, aqui, ao nosso lado.
 Após o chá, os biscoitos, os sorvetes,
 Teria eu forças para enervar o instante e induzi-lo à sua crise?
 Embora já tenha chorado e jejuado, chorado e rezado,
 Embora já tenha visto minha cabeça (a calva mais cavada)
 servida numa travessa,
 Não sou profeta - mas isso pouco importa;
 Percebi quando titubeou minha grandeza,
 E vi o eterno Lacaio a reprimir o riso, tendo nas mãos meu
 sobretudo.
 Enfim, tive medo.
 
E valeria a pena, afinal,
 Após as chávenas, a geléia, o chá,
 Entre porcelanas e algumas palavras que disseste,
 Teria valido a pena
 Cortar o assunto com um sorriso,
 Comprimir todo o universo numa bola
 E arremessá-la ao vértice de uma suprema indagação,
 Dizer: "Sou Lázaro, venho de entre os mortos,
 Retorno para tudo vos contar, tudo vos contarei."
- Se alguém, ao colocar sob a cabeça um travesseiro,
 Dissesse: "Não é absolutamente isso o que quis dizer
 Não é nada disso, em absoluto."
 
E valeria a pena, afinal,
 Teria valido a pena,
 Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio,
 Após as novelas, as chávenas de chá, após
 O arrastar das saias no assoalho
 - Tudo isso, e tanto mais ainda? -
 Impossível exprimir exatamente o que penso!
 Mas se uma lanterna mágica projetasse
 Na tela os nervos em retalhos . . .
 Teria valido a pena,
 Se alguém, ao colocar um travesseiro ou ao tirar seu xale às
 pressas,
 E ao voltar em direção à janela, dissesse:
 "Não é absolutamente isso,
 Não é isso o que quis dizer, em absoluto."
 
Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo.
 Sou um lorde assistente, o que tudo fará
 Por ver surgir algum progresso, iniciar uma ou duas cenas,
 Aconselhar o príncipe; enfim, um instrumento de fácil
 manuseio,
 Respeitoso, contente de ser útil,
 Político, prudente e meticuloso;
 Cheio de máximas e aforismos, mas algo obtuso;
 As vezes, de fato, quase ridículo
 Quase o Idiota, às vezes.
 
Envelheci . . . envelheci . . .
 Andarei com os fundilhos das calças amarrotados.
 
Repartirei ao meio meus cabelos? Ousarei comer um
 pêssego?
 Vestirei brancas calças de flanela, e pelas praias andarei.
 Ouvi cantar as sereias, umas para as outras.
 
Não creio que um dia elas cantem para mim.
 
Vi-as cavalgando rumo ao largo,
 A pentear as brancas crinas das ondas que refluem
 Quando o vento um claro-escuro abre nas águas.
 
Tardamos nas câmaras do mar
 Junto às ondinas com sua grinalda de algas rubras e castanhas
 Até sermos acordados por vozes humanas. E nos afogarmos.
 
 
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Belíssima tradução de Ivan Junqueira