domingo, 17 de abril de 2011

UM MUNDO NOVO

Honório de Medeiros

“Não é tarde demais para buscar um mundo mais novo.”
- Alfred, Lorde Tennison.

                                      “Na adolescência”, disse-me ele, “li O Despertar dos Mágicos. Em certo momento, fala-se em Fulcanelli, o último alquimista. Saboreio, ainda hoje, o relato do narrador quando nos descreve alguém como ele, que jamais foi surpreendido em uma atitude menor”.

                                      “Sei”, disse-lhe, “mas ele estava condenado à solidão. Quem seriam seus companheiros? Decerto não havia muitos como ele.”

                                      “Essa solidão à qual você se refere”, respondeu-me, “ o preço que se paga pela inteligência, pela sensibilidade. Observe que os cientistas, os poetas, os estadistas, são homens solitários. Vivem eles em universos além da compreensão do comum dos mortais. Lembram os companheiros de ‘Demian’, personagem homônimo de Herman Hesse, chamados de Cainitas porque descendentes filosóficos de Caim, aquele personagem maldito porém necessário, como todos os outsiders. Ou mesmo, para continuar em Hesse, o Lobo da Estepe, aquele ser compósito, amalgamado de conhecimento e solidão.”

                                      “Aliás, o conhecimento”, continuou, “que Bachelard entendia somente ser obtido enquanto reforma de uma ilusão, é sempre um caminho óbvio para o distanciamento entre aqueles que o obtêm e os outros.”

                                      “Não sei se os tempos anteriores à minha experiência pessoal foram diferentes. Posso apenas falar daquilo que vivo. E esta época é de uma mediocridade espantosa.”

                                      “Estamos todos nos nivelando pôr baixo, graças aos meios de comunicação - a aldeia global, da qual nos falou Marshall Macluhan. Já não há mais a revolta sincera contra a injustiça, Deus anda esquecido ou, pelo menos, foi mediocrizado - tanto é que nossos santos de hoje parecem mais assistentes sociais extremados (onde andam os místicos?), e o egoísmo passou a ser finalidade de governo, ou seja, os políticos instalaram o darwinismo social como opção ideológica.”

                                      “Homens como Albert Schweitzer já não existem. Cada um de nós parece ter esquecido quão pequena é nossa vida sobre a terra: nos preocupamos tanto em sermos tolos, fúteis, medíocres...”

                                      “E estamos construindo um mundo desprezível para nossos filhos - basta que prestemos atenção ao futuro que os filmes expostos nos shopping centers apresentam: seres humanos ilhados em um núcleo caseiro de conforto e tecnologia, distantes uns dos outros e abissalmente afastados daqueles que não terão condições de participar dessa revolução que a informática está originando.”

                                      “Então saboreio saudoso a narração do autor acerca de Fulcanelli. Homens assim, densos, com uma visão pública da realidade e de si mesmos, envolvidos com a humanidade, esses poucos éticos visionários são pontos de esperança na imensidão do desalento.”

                                      “Homens com os quais poderíamos construir um mundo novo, uma nova ética.”

                                      “Homens, a maioria das vezes, anônimos, porque de desmesurada grandeza, mas - suprema ironia - terrivelmente solitários”.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

QUEM DISSE QUE HÁ ROMBO NA PREVIDÊNCIA?

Propagandear contra a previdência pública e desacreditá-la perante os jovens que ingressam no mercado de trabalho foi e vem sendo o mais significativo dos feitos. Basta atentar para os argumentos um ‘vendedor’ de plano de previdência privada (produto do mercado financeiro)

Por Oswaldo Colombo Filho*
A Secretaria de Tesouro publicou os últimos resultados fiscais do ano de 2010, e assim segue uma breve análise das contas relativas ao Regime Geral da Previdência Social (RGPS). O objetivo é apenas traçar considerações sobre os principais números, pois exame completo seguirá oportunamente ressaltando outras considerações, distinguindo correntes de pensamentos em relação aos resultados e efeitos produzidos aos beneficiários em ambos sub-regimes.

O saldo previdenciário “total” ou consolidado do RGPS (sub-regimes Urbano e Rural), conforme apontado pelo Tesouro foi negativo em R$ 42,9 bilhões. Cabendo ao RGPS Urbano o saldo positivo de R$ 7,8 bilhões – arrecadou R$ 207,2 bilhões (+17% que 2009) e despendeu R$ 199,5 bilhões (+10% que 2009).

No sub-regime Rural, o saldo previdenciário foi negativo em R$ 50,7 bilhões – arrecadou R$ 4,8 bilhões (+ 4% que 2009) e despendeu R$ 55,5 bilhões (+13% que 2009).

O saldo final no fluxo de caixa do INSS, incluindo as taxas de administração sobre outras entidades, apresenta resultado positivo de R$ 4,7 bilhões; evidentemente fruto da resultante auferida no sub-regime Urbano, e isso a despeito de outras considerações que poderíamos tecer sobre a destinação da Cofins, CSLL (que foram criadas como fontes de financiamento ao Orçamento da Seguridade e não ao Orçamento Fiscal) e os consequentes efeitos subtratores da DRU; e que estão sempre em discussão entre as correntes de pensamento socioeconômico voltadas ao do tema Previdência Social no Brasil.

Vale citar sobre essas ‘correntes de pensamentos’ que o “quadro demonstrativo” – resultado primário do governo central - vem sendo apresentado de forma distinta desde fevereiro de 2009, nas receitas, despesas, e saldos previdenciários para cada um dos sub-regimes já citados. Mesmo assim, e diante de total clareza, um “grupo” de economistas, autoproclamados fiscalistas, ou ainda denominados reformistas ou neoliberais, peremptoriamente bancam a cantilena do déficit (resultado final) da “Previdência Social”, citando e publicando números do que é o saldo previdenciário.

Não me estenderei sobre o que seja a diferença linguística ou técnica entre déficit/superávit com o que seja saldo previdenciário, mas friso que este último é uma espécie de ‘subtotal’ na apreciação analítica das contas de um regime ou sub-regime previdenciário e sua expressão numérica pode ser negativa ou positiva. Essa observação é importante, pois os “neoliberais” tratam por déficit aquilo que tecnicamente é o saldo previdenciário, e isso mesmo com o governo evidenciando a correta nomenclatura em seus relatórios tal qual memorial de cálculo a que se dispõe o seguimento lógico do texto constitucional.

Questionar a Constituição é um fato, mas desconsiderá-la e propagandear esse ideário publicamente na composição de contas e determinar erroneamente algo como déficit é no mínimo uma indecência que leva a sociedade leiga a um entendimento difuso e errôneo sobre a questão. A maioria deles sequer seria considerada reformista em lugar algum do mundo; lobistas, ou talvez expressos conservadores do clientelismo e do corporativismo, e assim qualificados pela resultante da Emenda 20/98 que patrocinaram, assim como pela proposta da terceira reforma previdenciária que já ofereceram ao governo anterior.

Qual o intento dessas ações em que pese ou possa alterar o comportamento da sociedade a integrar-se contributivamente ou não ao orçamento da Seguridade Social? Há outra opção no mercado reservada aos nossos cidadãos?

Propagandear contra a previdência pública e desacreditá-la perante os jovens que ingressam no mercado de trabalho foi e vem sendo o mais significativo dos feitos. Basta atentar para os argumentos um ‘vendedor’ de um plano de previdência privada (produto do mercado financeiro).

A abordagem inicia pelas “bombas de efeito retardado” e que foram deixadas pelos “reformistas em 1998”: - # a redução do valor inicial dos benefícios já quando requeridos e que pode chegar a 40% (fator previdenciário); # em seguida, a própria base de cálculo do valor do benefício médio; pois, os valores para base de cálculo, tomados desde 1994 e mesmo ao público que recolhe sobre o teto pouco supera da média de sete salários mínimos; visto que, mesmo sendo possível pela legislação vigente, o governo promulga o teto abaixo do mínimo possível (dez salários mínimos) – atualmente recolhe sobre 6,8. Lembrando que o valor decorrente deste cálculo será oferecido ao fator previdenciário se cabível for. A fixação do recolhimento abaixo do que a legislação faculta, e isto tão somente aos trabalhadores (os mais interessados) posto que os empregadores já recolhem pelo total, versa por mais uma graciosa contribuição governamental ao clientelismo e um dano enorme à seguridade, e que ninguém contesta.

Na sequência, o “vendedor” do produto do mercado financeiro orienta ao seu cliente em potencial, ao obter o vínculo empregatício via pessoa jurídica – “regime fiscal simples”, e assim a execução do recolhimento mensal à previdência pública se efetiva pelo mínimo, e à previdência privada por quantia que ele queira.

No Brasil, o peculiar “regime fiscal simples” versa por uma renúncia fiscal (tal qual existe similar em todo mundo), mas aqui se estende a renúncia previdenciária e que resulta em mais de R$ 10 bilhões/ano aos cofres do INSS. Na Europa, não importa o regime ou vínculo do contrato de trabalho do indivíduo; o recolhimento à Seguridade é compulsório a todos os trabalhadores, regulados ou não por qualquer forma de contrato de trabalho e em qualquer atividade, e a incidência sempre pela maior base disposta e parametrizada sobre os rendimentos mínimos mensais e/ou semanais.

Há países em que o mínimo do empregador (cota patronal) supera inclusive o mínimo pago em salário efetivo. Também por lá ninguém mistura renúncias fiscais com previdenciárias. Não colocam mentecaptos e muito menos lobistas para cuidar da Seguridade Social; isto é aberração, tal qual o é acatar a tese da miscelânea do Orçamento Fiscal com Orçamento da Seguridade; - diriam os nossos experts já supracitados – “é apenas uma questão contábil”. Por lá, crime previdenciário não é apenas imputado ao empregador-sonegador, mas também a trabalhadores que não recolhem sobre atividades autônomas e esporádicas. Sem dúvida nenhuma, este é um dos motivos para que a saúde pública seja gratuita e incomparavelmente melhor do que a nossa.

É assim que desejamos construir um país em bases sólidas? - Uma sociedade justa e próspera a todos? - “Passando a perna no orçamento da Seguridade Social”? Pessoas que assim agem tem moral para contestar a volta ou não da CPMF?

Em síntese, está mais do que em tempo de que a discussão sobre o orçamento da Seguridade Social alce nível realístico em nossa sociedade. Não falamos mais ou somente de números quando insistentemente e irrepreensivelmente pelas autoridades e com clara conveniência contesta-se abertamente Constituição; suprime-se o estado de direito na tramitação de Projetos de Lei; tratam-se direitos pecuniários advindos de crédito contributivo como um sendo um favor do Estado e não uma obrigação a quem concorreu como contribuinte por décadas.

Regendo essa ópera bufa indubitavelmente o clientelismo se favorece e contra isso que a sociedade e seus representantes devem agir em defesa do orçamento da Seguridade Social; ou seja – Previdência e Saúde Pública. Não vimos isso nos últimos 25 anos de governo, quiçá, e assim desejamos que a presidente Dilma Rousseff assuma firme papel no comando dessa cruzada. Certamente, não faltará quem lhe apoie.

*Economista e membro fundador do Movimento Brasil Dignidade.

domingo, 10 de abril de 2011

A VELHA SENHORA


Honório de Medeiros

                                      Formavam um belo casal. Ambos já acima dos setenta, beirando os oitenta, cabelos totalmente brancos, andar pausado, vinham todos os dias, até nos finais de semana, tomar, por volta da hora do “ângelus”, uma sopa de legumes especialmente preparada para eles. Quando os vi pela primeira vez, despontando na esquina da rua onde estávamos, no restaurante, chamei a atenção: “vejam”. Vinham lentamente, de mãos dadas, parecendo um casal de namorados.

                                      Embora ela aparentasse ser mais idosa, estava em melhor estado de conservação. Notava-se claramente seu cuidado para com ele. A sua mão que enlaçava era também a que conduzia, guiando-o e o afastando de possíveis obstáculos, tais como irregularidades no calçamento ou as cadeiras postas no meio do caminho. Mas não era só. Depois de sentados, era ela quem puxava conversa e fazia breves relatos - como querendo entretê-lo - aos quais ele pontuava com monossílabos, ou chamava sua atenção para algo diferente, tal como o olhar cândido e curioso da criança sentada na mesa próxima a sua.

                                      Mesmo após vezes seguidas observando, quase nunca os vi sorrir. Eram muito sérios e somente em uma ou outra oportunidade pude surpreender um carinho eventual de um para com o outro. Não que isso demonstrasse distanciamento, ao contrário. Havia, entre eles, uma transcendência – era perceptível – quanto ao trivial de gestos desnecessários, típica de um relacionamento antigo, onde o entendimento era perfeito e o silêncio comum pleno de compreensão.

                                      Eu e os outros conversamos vezes sem conta sob o casal com quem os atendia. Tinham nascido em outro lugar, dizia ele, uma cidade grande, eram aposentados da Receita e tinham optado por não terem filhos. Agora, no final da vida, desejando mais tranqüilidade, vieram para uma cidade menor onde não possuíam parentes próximos nem conhecidos. “Quem cuida deles?”, perguntei. “Ninguém; há uma moça que faz a limpeza do apartamento e do restante eles mesmos cuidam”. “Quando querem sair”, prosseguiu, “já têm um motorista de táxi de confiança que os leva para onde desejam ir”. “Saem?”, continuei. “Vão à missa, aos médicos...”

                                      Após algum tempo trocávamos cumprimentos, mas jamais passou disso. Havia certa reserva em cada um deles que desestimulava a aproximação para a conversa coloquial. Talvez já não tivessem interesse em construir novas relações e absolutamente não se sentissem solitários; quem sabe gostassem da solidão e do tipo de paz que ela proporciona? Se não fosse assim, por qual outro motivo teriam saído de sua cidade e vindo para esta outra, desconhecida?

                                      No fim, tudo acabou como esperado. Ele teve um infarto fulminante e ela ficou só. No início pensou em continuar no apartamento que dividiam e tocar a vida. Mas um dia, quando cheguei e percebi sua ausência na hora de costume, fui informado que decidira partir e ir morar em um local especializado em idosos. Antes, aparecera para se despedir. Deixara, até mesmo, uma pequena lembrança, um “souvenir”, para cada um dos que trabalhavam no restaurante. Agradecera muito, delicadamente, toda a atenção recebida. Não tocara no assunto de sua viuvez, nem dissera para onde iria. Depois, apertara a mão dos proprietários, desejara felicidade e se fora, com seu passinho miúdo, o vestido elegante, de talhe antigo, deixando, pela última vez, o cálido registro do esvoaçar dos seus finos cabelos brancos e um leve vestígio de “Fleur de Rocaille” no ar...

sábado, 9 de abril de 2011

A LOUCURA DE CADA UM DE NÓS

Por Carlos Santos (www.blogdocarlossantos.com.br)

O noticiário que vejo em redes de TV e na Internet, sobre a morte de 12 crianças e o suposto suicídio, em seguida, do responsável por esse massacre, Wellington Menezes de Oliveira, é muito desencontrado. Está confuso.

Mistura sensacionalismo com passionalidade, numa análise conflitante quanto ao homicida e suas razões. O que parece óbvio é o perfil psicológico-psiquiátrico do assassino: sofria de distúrbios mentais.

Noutra vertente, também se debate a questão da venda e uso de armas de fogo no Brasil, além da segurança obrigatória que o poder público deve oferecer ao seu alunado.

Bom deixarmos a "poeira" baixar um pouco. A distância e o tempo vão nos ajudar a compreender essa barbárie pouco comum, em suas características, no Brasil. Normalmente ouvimos algo do gênero nos Estados Unidos. Pelo menos os casos mais célebres surgem de lá.

Em 2005, através de referendum, o Brasil decidiu que as armas de fogo podem continuar sendo comercializadas, seguindo a critérios relativamente rígidos para seu porte. De lá para cá, a violência não diminuiu em nada. Contudo não é o cidadão comum que tem um revólver na cintura, o principal algoz da própria sociedade.

A bandidagem é que possui pleno "porte de arma", promovendo chacinas, mortes em escala industrial, ano após ano. Mossoró é um exemplo disso.

Temos já mais de 50 assassinatos este ano e em sua quase totalidade a autoria não é do cidadão de bem. O bandido anda armado e mata quem quer, quando quer. Sabe que na enorme maioria dos casos não será preso e se for, logo estará nas ruas em curto tempo.

Nos Estados Unidos, a legislação assegura venda de armas e munição até pela Internet e correios. A população é bem maior e o número de mortes por armas de fogo fica atrás dos números do Brasil.

Em Israel, qualquer cidadão, até por incentivo do Estado que vive em permanente regime militar, incentiva e facilita a aquisição de armas. É tão comum ter uma pistola na bolsa quanto um aparelho celular.

Lá, os índices de homicídios por arma de fogo são ainda menores.

Portanto é frágil a tese - baseada no barulho emocional - de que esse jovem promoveu esse morticínio por ter facilidade em pegar em armas.

O caso que se evidencia é de distúrbio psíquico do autor, que não teria recebido o devido acompanhamento, até chegar nessa erupção. Era um esquizofrênico que matou e feriu várias crianças à bala por entender ser justo. Provavelmente, em sua mente insana, se imaginava um "iluminado".

A esquizofrenia tem como um de suas características, a diminuição do afeto, quando não a sua total retração.

Poderia ter ocorrido em Natal, em Pelotas (RS), em Rio Branco (AC), não importa. Ocorreu no subúrbio do Rio de Janeiro e virou uma dor nacional e talvez planetária.

Mexer com criança é sempre delicado e suscita extremismos. Filhos, em si, sempre são bens preciosos demais, mesmo que muitos entendem como normal zelar apenas os seus próprios herdeiros, olhando o rebento alheio como um zé-ninguém.

Nesse episódio, entendo, a primeira vítima foi o próprio homicida. As crianças fuziladas e seus familiares, cada um de nós com sua comoção, também estamos nesse rol.

Tem muito Wellington Menezes de Oliveira zanzando por aí, à espera de tratamento humanizado e profilático, antes de explodir em fúria.

A escola, militarizada, com detector de metais, rondas armadas internas e externas, pode inibir o trânsito de drogas, a violência física e chacinas como essa. Mas continuará sendo "depósito de crianças" em vez de melhor ajudá-las em sua formação como ser humano de carne, osso e cérebro.

Assim, aqui ou ali, continuaremos testemunhando o "lado B" de alguns indivíduos rosnando contra a vida, ameaçando a dignidade alheia e comprometendo o futuro de milhares e milhões de indivíduos - jovens ou não.

De louco, tenha certeza, todos temos um pouco.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

BANDIDO BOM É FICÇÃO

Por Alex Medeiros (http://www.alexmedeiros.com.br/)

A grande mídia decidiu demonizar a Polícia paulista por causa do caso da dupla de soldados que executou um meliante dentro de um cemitério. A gravação do telefonema da testemunha do crime está sendo repetida como mais um reality show da desgraça.

Diariamente, cidadãos de bem, inclusive velhos e velhas aposentados, são abordados violentamente nas portas e imediações de agências bancárias por assaltantes sem a menor compaixão; jovens são mortos depois que lhes roubam celulares e tênis.

Ninguém em sã consciência social defende que militares saiam por aí, armados até os dentes, a executar qualquer suspeito, baseados apenas nas suas vontades justiceiras. Mas é incrível como um erro policial é explorado na mídia para manchar a tropa inteira.

Estimulada pelo lobby de Ongs com intentos ideológicos e militantes dos direitos humanos sempre equivocados no protecionismo aos criminosos, a imprensa e parte da opinião publicada tendem a estabelecer pesos e medidas diferentes na abordagem.

Dá muito mais audiência explorar a violência praticada por agentes do Estado contra presumíveis inocentes, do que narrar minuto a minuto o sofrimento dos cidadãos de bem nas mãos de bandidos. É o velho clichê do homem mordendo o rabo do cachorro.

Desde que a literatura do Novo Testamento inventou as figuras do bom e do mau ladrão, crucificados ao lado de Jesus Cristo, a cultura ocidental assimilou o equívoco de tal dicotomia, talvez um símbolo para o inconsciente coletivo do perdão dos pecados.

Nas décadas de 60 e 70 do século XX, depois que a ditadura militar no Brasil misturou nas prisões presos políticos com criminosos comuns, em que os primeiros implantaram nos segundos a consciência social, a marginalidade ganhou status de rebeldia juvenil.

Levaram ao pé da letra os estandartes do poeta Hélio Oiticica que pregava “seja herói, seja marginal” e deixaram subir à cabeça a canção de Jorge Ben, “Charles Anjo 45”, que em 1969 insinuava espírito guerrilheiro a um reles ladrão dos morros cariocas.

Junte-se a tendência da esquerda nacional em se compor com bandidos (PDT, PT e PMDB fizeram acordos eleitorais com as quadrilhas do Rio), a compaixão católica das comunidades eclesiais de base, a imprensa, as Ongs e temos o quadro dos dias de hoje.

É impressionante – para não dizer repugnante – a disposição de pseudo-intelectuais e militantes de partidos socialistas e comunistas (unidos no mesmo sectarismo do mofo ideológico) em manifestar-se de imediato quando um assaltante é morto pela Polícia.

Lembrei que há alguns anos, um soldado PM e um bandido foram feridos numa ação policial. Os dois ficaram semanas internados num hospital militar, onde o soldado só teve a visita de uma velha e pobre mãe, enquanto o ladrão era assediado o dia inteiro.

O caso me foi relatado por um secretário de Estado à época, que apesar de também professar preceitos socialistas, confessou sua estupefação com aquele cenário: um soldado abandonado no leito e um marginal rodeado de militantes dos direitos humanos.

Evidente que a histeria novelista das TVs abertas com o caso da execução de um prisioneiro pelos dois policiais tem não somente o estimulo da audiência, como também o fato de expor o sistema de segurança de um estado governado pelos tucanos.

Já se vai uma década que as verbas publicitárias do PT no plano nacional estimulam departamentos comerciais de televisão a ingerir nas editorias e pautas. A petralhada não engole o fato do povo paulista não permitir um governo vermelho em São Paulo.

Mas, voltemos ao picadeiro midiático da compaixão por meliantes. Na semana passada, um assaltante foi morto na BR 101 ao trocar balas com a Polícia e nesta semana tivemos o caso do poeta Plínio Sanderson sendo baleado por um covarde punguista de gueto.

Os dois casos foram bastante comentados nas redes sociais e gerou uma espécie de debate no Twitter, com dezenas de potiguares parabenizando a ação policial no primeiro caso e outras dezenas lamentando a violência contra o poeta e professor Plínio.

Não me foi surpresa perceber nas postagens que se multiplicavam os comentários de militantes esquerdistas, freqüentadores da cena cultural, em defesa do bandido que quis tirar a vida do poeta. Gente que acha que bandido bom é bandido muito vivo.

PERGUNTAS INDISCRETAS?

Juca Kfouri

Coluna do Juca Kfouri


Postado em 7/4/2011 às 07:40:53hs

PERGUNTAS QUE você precisa fazer para você mesmo para não perder a capacidade de se indignar, por mais que sejam repetitivas, e as respostas, insatisfatórias, escandalosas mesmo.

Por que o presidente do Comitê Organizador de Londres-2012 é Sebastian Coe, dos maiores atletas da história da Inglaterra, e, aqui, é Carlos Nuzman, que também preside o Comitê Olímpico Brasileiro, algo inédito na história olímpica, o mesmo cartola comandar os dois órgãos?

Por que, aqui, o presidente do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo é Ricardo Teixeira, o presidente também da CBF, se na França o presidente foi Michel Platini, que não era o presidente da FFF, a Federação Francesa de Futebol?

Por que, aqui, o presidente do COL é quem é, se na Alemanha foi Franz Beckenbauer, que também não era o presidente da federação local?

Por que o conjunto aquático Maria Lenk não será aproveitado para as provas de natação na Olimpíada-2016, se, quando construído para o Pan-2007, foi apresentado como trunfo para a candidatura do Rio de Janeiro?

Por que o Morumbi, há 50 anos servindo o futebol mundial, palco de jogos das eliminatórias de diversas Copas do Mundo, de várias decisões da Libertadores, do Mundial de Clubes da Fifa, não serve para a Copa-2014, um evento que dura um mês, com, no máximo, seis jogos por estádio?

Por que não há, nos dois comitês nacionais, nenhum, rigorosamente nenhum brasileiro que o país admire, alguém que tenha fé pública, credibilidade tal que ninguém o imagine fazendo coisas erradas com dinheiro público? Nenhum!

Por que a OAB não tem um representante? A ABI? As centrais sindicais? O IAB? A UNE, o Corpo de Bombeiros, o raio que os parta?!

Cadê os Ermírio de Moraes, os Gerdau, os Moreira Salles? O capital e o trabalho? Cadê?

E note que não se reclama aqui da ausência de ninguém dos poderes Legislativo e Judiciário, embora seja um absurdo que não haja, também, ninguém do Executivo, noves fora Henrique Meirelles, a APO, Autoridade Pública Olímpica, mas que, lembremos, é indicação do governo federal, não faz parte do comitê organizador da Olimpíada.

Está mais do que na hora de não engolir tanto escárnio, porque quem pagará a conta de um novo estádio em São Paulo, de novos equipamentos no Rio, de tudo, é você, sou eu, somos nós. (Folha de S. Paulo)

segunda-feira, 4 de abril de 2011

A ARENA DAS DUNAS E A TEORIA DO BOLO ECONÔMICO

Honório de Medeiros

Quando os poucos que têm muito comem tudo, deixando os farelos para os muitos que têm pouco.

Desde que Goebbels lançou o mote “de tanto se repetir uma mentira, ela acaba se transformando em verdade”, em contrapartida para alguns poucos argutos observadores da realidade ficou fácil identificar esse lugar-comum na retórica usada pela elite predadora quando concretiza o processo de iludir o “Zé Povinho”.

É o caso, por exemplo, da Teoria do Bolo Econômico – “primeiro crescer, depois repartir”, popularizada nos anos 70 do século passado, aqui no Brasil, por ninguém menos que Delfim Neto.

Aliás, esse processo de iludir é um dos meios por intermédio dos quais o jogo do poder é jogado pela elite predadora configurando, assim, o retrato em negativo da seleção dos mais aptos – em certo momento específico da história – conforme pensado por Herbert Spencer na esteira do pensamento darwiniano, jogo esse bancado via estratagemas, ou seja, idéias que são usadas retoricamente para obter e, uma vez obtida, prolongar a exploração do “Zé Povinho”.

No caso da “teoria do bolo econômico” tal idéia, uma vez surgida, qual “meme” - um análogo cultural do gene na genética -, como descrito por outro darwiniano, Richard Dawkins, terá uma sobrevida útil proporcional à nossa incapacidade em destruí-la. Na verdade esse “meme” vai, por sua vez, se replicar infinitamente em ambiente fértil, qual seja aquele formado por pessoas sem escrúpulos mais os inocentes úteis.

Em outras palavras, mas mantendo o mesmo sentido, assim é que uma idéia econômica – fruto da mais ilegítima elite predadora – nasce, sobrevive e vem constituindo, desde então, o arsenal que a elite predadora usa para explorar, seja porque não tem noção daquilo do qual está fazendo parte, seja por puro cinismo, deliberadamente. É a teoria do bolo econômico. Para os defensores da Teoria do Bolo Econômico, quanto mais ele crescer, mais pessoas comem.

Como essa idéia funciona na prática? Funciona assim: alguns predadores internacionais precisam fazer o dinheiro circular voltando para o ponto de partida mais robusto, bem mais gordo: nasce, então a noção de Uma Grande Obra, constituída obviamente pelo conjunto de várias outras obras menores, quase sempre em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Por exemplo: uma “Copa do Mundo de Futebol” em algum País cuja infra-estrutura física não esteja pronta para o evento, tal como qualquer um do Oriente Médio, África ou mesmo o Brasil. O Brasil, sejamos mais claros, foi escolhido a dedo a partir de parâmetros muito bem definidos, dentre eles a possibilidade da circulação de idéias e capital sem grandes obstáculos que atrapalhem os negócios.

Feito isso começa um imenso e lucrativo trabalho, para toda a elite predatória envolvida no “Grande Projeto”, de arrebanhamento dos “corações e mentes”. É onde entra toda a cadeia alimentar da qual ficarão fora apenas as piabas, por razões ululantes, constituída pela “mídia famélica”, os políticos de sempre, os empreiteiros, ah! os empreiteiros, a arraia-miúda que tal quais os peixes-pilotos se alimentam com as sobras dos tubarões, e até mesmo, pasmemos juntos, os intelectuais orgânicos, aqueles sem espinha dorsal, que vivem se contorcendo para prestarem serviços vendendo argumentos: convencer os basbaques, como no caso do Rio Grande do Norte, acerca da importância indizível, pela magnitude, da tal “Arena das Dunas”, para o progresso econômico do nosso Estado.

Desenvolvimento para quem? O Estado não existe, é uma hipostasia; o Estado sou eu, é você, somos nós. Ninguém fala pelo Estado. Ninguém.

Lê-se, por exemplo, na mídia incauta, que “A Grande Obra” é importante para sanear a malha viária. Qual malha viária? A de Mossoró? A de Caicó? A de Pau dos Ferros? Ora, convenhamos, “a malha viária”, enquanto as delegacias de polícia, no interior e na capital não têm computador, papel, armas, carros, homens... Lê-se, também, na mídia inocente inútil, que “a Grande Obra” vai gerar muitos e muitos empregos. Sabemos que empregos são esses: sazonais. Desaparecem quais pipoqueiros e vendedores de cachorro quente em final de festa de padroeira. O grosso do dinheiro, aquele que realmente importa, esse já foi embora em busca de outros nichos a serem predatoriamente explorados.

Essa é a lógica do capital. Uma vez comprada a idéia, ou seja, o investimento, imediatamente os investidores entram na luta com um discurso uníssono: “a Grande Obra” é fundamental para o desenvolvimento do Estado, e quem for contra ela é contra o Estado. O mote do velho Goebbels entrou em ação.

Não há muito mais a dizer agora exceto que se trata de uma luta vã essa contra o desperdício do nosso dinheiro. Os poucos irridentes contrários à farsa que se desenrola impávida e colossal não dispõem de meios à altura dos adversários para sublevar os “corações e mentes”. Não têm como comprometer os aparelhos do Estado: Legislativo, Judiciário e Executivo, nessa sublevação. Talvez se faça presente a voz solitária do Ministério Público. Duvido. Não podem massificar a informação que a historia oferece gratuitamente a quem souber procurá-la, de que grandes obras não valem por si só, que o digam os milhares de “elefantes brancos” existentes mundo afora. Consultem o Google, aqueles que não crêem. Não podem apontar o exemplo dos países sérios, como os escandinavos. Praticamente não têm como fazer a defesa de investimentos maciços em políticas públicas na educação, saúde e segurança. Em quais veículos de massa irão falar em Amartya Senn e seu trabalho acerca de “Desenvolvimento como Liberdade”? Liberdade esta que se confunde com segurança, saúde, educação...

Infelizmente o exemplo dos países civilizados nos quais a Sociedade escolhe, primeiramente, suas políticas públicas, para em seguida e se for o caso, construir a obra necessária para implementá-la, não tem como ser apresentado aos norte-rio-grandenses imensamente carentes de saúde, segurança, educação. Pois que não haja dúvidas: se consulta popular houvesse era assim que nosso povo disporia seus recursos.

Chega a ser doloroso: muito embora seu dinheiro banque o bolo que poucos, que têm muito, irão comer à farta, para os muito que têm pouco sobrarão apenas as migalhas.

sábado, 2 de abril de 2011

A PEQUENINA FLOR LILÁS


Honório de Medeiros
Havia uma única pequenina flor lilás no nicho de cimento no qual algumas plantas resistiam bravamente. Era um restaurante em um terraço, ao cair da noite cálida de Natal. Bárbara desceu da cadeira onde a tínhamos colocado e enquanto se preparava para se aventurar pelos seus arredores pediu nossa aprovação nos olhando com o silêncio próprio dos seus dois anos e pouco. Em passos trôpegos se dirigiu para o canteiro. Parou. Fixou sua atenção na pequenina flor solitária e, em seguida, estendeu até ela sua mãozinha gorducha. Não a pegou com a mão como seria em sua idade. Com o polegar e o indicador, cuidadosamente, segurou no talo que sustentava a flor e o puxou decidida. Arrancou a flor na primeira tentativa. Manteve a flor na mão e a contemplou durante algum tempo, resolvendo o que fazer. Virou-se para nossa mesa. Olhou para mim, e, atenta ao meu olhar, veio em minha direção bamboleando e estendendo a flor numa oferta silenciosa enquanto meu coração se apertava lentamente.

Essa flor, a pequenina flor lilás, eu, quanto a ela não tive dúvida: em frente ao local onde trabalhava havia um mercado aberto de camelôs e, dentre eles, um operador de máquina de plastificação de documentos. Procurei-o e lhe expus minha história e meu projeto: aprisioná-la entre duas páginas de plástico. Ele entendeu – eu poderia jurar que um ligeiro brilho clandestino formado por um misto de lembrança e saudade surgiu no canto dos seus olhos – a flor foi depositada em cima de uma folha de plástico, recebeu outra por cobertura e a máquina, previamente aquecida, as comprimiu unindo-as para sempre. Depois, foi só recortar e depositá-la, para que ficasse guardada, qual talismã, na minha carteira de documentos onde jaz, a primeira flor, lilás, que minha filha me deu de presente quando tinha dois anos e pouco de idade.

De lá para hoje, várias vezes me pego pensando acerca daquele momento mágico, o da oferta da flor. Tento reproduzir em detalhes toda a cena, desde o início até o final, quando então suspendi minha filha e a cobri de beijos. Os detalhes vão ficando esmaecidos ao longo do tempo e os contornos dos objetos – a mesa, as cadeiras, o terraço, a face de minha esposa, a imagem de Bárbara – vão desaparecendo lentamente, e todo o processo de recordar vai sendo substituído, aos poucos, pelo desejo de compreender algo impossível: o quê se passava na cabecinha dela quando olhou para a flor, resolveu colhê-la e, em seguida, entregá-la a mim? Em que momento decidiu dar esse último passo? Por quê? Como uma criança de dois anos e pouco pode ter em seu ainda pouco povoado universo simbólico, a noção de que a oferta de uma flor é um gesto através do qual se externa um afeto?

Claro que dirão que estou imaginando coisas. Nada teria havido ali de especial. Seria tudo muito simples e fácil de explicar: trata-se de um gesto surgido de uma associação de idéias. Ela viu alguém fazendo isso e se lembrou de fazer o mesmo. Ora, meu Deus! Essas pessoas não crêem. Vêem tudo cinza. Acham que um arco-íris é tão-só gotículas de água atravessadas por um raio de sol. Percebem o mundo apenas através da lógica. São os homens-ocos, dos quais fala o poeta T. S. Elliot em “A Terra Desolada”. Por causa dessas mesmas pessoas eu mesmo poderia não acreditar, hoje, em fadas, mas sei que elas existem, existem sim, sou capaz de jurar, basta, para isso, minha pequenina flor lilás.

quinta-feira, 31 de março de 2011

QUAL O SEGREDO DA MAGIA DE "CASABLANCA"?


Honório de Medeiros

Aqueles que o assistiram e se apaixonaram não perdem a oportunidade de fazê-lo novamente quando algum desses canais de televisão o programa para a madrugada.

Aliás, nenhum outro horário é tão propício.

Qual o segredo de "Casablanca"?

Talvez seja o de nos falar daquele amor imaginário, arrebatador, impossível, que cada um de nós gostaria de viver pelo menos uma vez na vida.

Um amor como o do filme, no qual os personagens são levados a um heroísmo comovente, que ao mesmo tempo os redime e os separa.

Um amor que, se vivido, nos distanciaria do comum, do trivial, da nossa realidade imediata, e nos transportaria para uma dimensão onde seríamos aquilo que projetamos ser, e, não, essa amarga construção do dia-a-dia, o que de fato somos.

terça-feira, 29 de março de 2011

CRISE DO ESTADO OU CRISE NO ESTADO?


Honório de Medeiros

Há muito tempo falamos em crise do Estado no Brasil. Desde a República Velha, pelo menos. Poderíamos indagar: crise do Estado Burguês/Liberal brasileiro? Como a queda do muro de Berlim ainda está próxima os paradigmas marxistas, não os leninistas poderiam ser os instrumentos teóricos através dos quais analisaríamos esta atual circunstância histórica . Alguns marxistas, por exemplo, que ainda posam de leninistas, asseguram ser a América Latina o elo fraco do sistema internacional capitalista no momento, haja vista a presença fantasmagórica do populismo, conseqüência imediatas das contradições de classe tornadas agudas pelo neoliberalismo. Como ainda é avassaladora a presença do marxismo enquanto aparato intelectual para a descrição da realidade social, parece não haver mais espaço, no mundo acadêmico, para o pensamento de Freud e uma possível psicanálise com fulcro em uma “teoria do vínculo social”, nem para uma “teoria do campo social” de cunho darwinista que o substitua ou complemente.



Do ponto de vista exclusivamente jurídico a carência é ainda maior, visto não ser mais possível aceitar a herança jusnaturalista, fundamentada em uma teoria das fontes do Direito de conteúdo exclusivamente metafísico, enquanto base para uma análise sócio-política do fenômeno estatal. Também não é possível aceitar o formalismo kelseniano por que associado ao positivismo exacerbado e estreito típico dos modelos lógicos aos quais Goëdel demonstrou não poderem obter coerência a partir de si mesmo. Há algo tão metafísico quanto a norma hipotética fundamental? Carece o positivismo, evidentemente, de um conteúdo explicativo próprio das grandes sínteses ontológicas. Seria Marx ainda hegemônico, mesmo que por exclusão?

Marx nos disse, através dos seus intérpretes, que o Estado nada mais seria que um instrumento de opressão de uma classe sobre outra. Uma superestrutura ideológica resultante das relações de produção específicas de uma circunstância histórica. Poderíamos dizer, então, que essa crise pelo qual supostamente passa o Estado Brasileiro seria típica do acirramento de uma luta de classes, das contradições inerentes ao sistema capitalista, algo tão antigo, no Brasil, quanto sua descoberta por Pedro Álvares Cabral?



Mas caiu o Muro de Berlim e com ele a hegemonia do pensamento marxista como paradigma para as ciências sociais. É bem possível que as suposições quanto a essa queda tenham sido grandes demais. Talvez muito de seu pensamento efetivamente não tenha perdido a consistência teórico/empírica. Penso, principalmente, no Marx sociólogo para distanciá-lo do Marx filósofo. Penso em Friedrich Engels. Penso em paradigmas epistemológico-sociológicos e percebo a presença de Marx e de todo um conjunto de alavancas intelectuais que sobreviveram à queda do Muro de Berlim e ao seu ostracismo intelectual. E muito embora Marx não tenha escrito uma teoria do Estado pronta e acabada, encontro um interessante paralelo entre sua concepção de Estado enquanto resultante da luta de classes, divisão social do trabalho e relações de produção, nessa ordem, e uma possível teoria do Estado a partir das relações de domínio em uma perspectiva darwiniana. Muito embora seja inaceitável, hoje, até mesmo do ponto de vista lógico, o primado de a infra-estrutura material originar a superestrutura ideológica -algo que em lógica é denominado “falácia naturalista” e já identificada por Henri Poincaré - o “insight” básico do Estado enquanto cristalização de forças em conflito, pelo Poder, em última instância é compatível com os paradigmas de um certo tipo de darwinismo. Ou seja, para apreendermos uma noção de Estado que não esteja contaminada pela “antropoformização” – a tendência de considerá-lo agente e não ambiente ou espaço (“topos”) - é plenamente satisfatório recorrer ao marxismo e sua noção, dentre outras, de “aparelho” (na linguagem de Althusser e Poulantzas). Teremos, então que entender aparelho como elemento de um conjunto sistemático desse tipo de estrutura burocrática instaurada por relações de poder que constituem o Estado. Portanto o aparelho judiciário, o governamental, o legislativo, e assim por diante, nada mais são que aparelhos do Estado, ou, em última instância, cristalizações de relações de domínio.



Penso agora em darwinismo por que de todas as grandes sínteses fornecedoras de paradigmas para uma ciência social ele foi o único que sobreviveu à virada do século. Penso em darwinismo por que é impossível compreender qualquer epifenômeno social atual fora de uma perspectiva jusnaturalista, positivista, ou funcionalista sem que para ele recorramos em busca de referencias teóricas que resistam, pelo seu próprio conteúdo, às críticas implacáveis do mundo acadêmico. E penso em darwinismo por que algumas de suas contribuições, aquelas que não estão sendo deturpadas e saturando de leviandade e misticismo a discussão acadêmica – em um interessante paralelo com a física quântica - podem ser bastante úteis na tentativa de explicar nosso mundo social.



Pois bem, para certo darwinismo a idéia de Estado é que este seja uma resposta, uma estratégia adaptativa de sobrevivência para segmentos da espécie humana, ou para coalizão de genes, engendrada a partir das relações de domínio existentes em uma circunstância histórica. Que o Direito seja resultante dessas relações de domínio até mesmo o cauteloso Bobbio assevera. Assim como Pierre Bourdieu. Nicos Poulantzas. Trasímaco da Calcedônia, para começo de assunto. O marxismo diz o mesmo com outra linguagem. Que o Estado tenha surgido de atos de força, ou seja, do Poder, há uma tradição nesse sentido que começa com Platão, passa por Renan, Nietsche, Kautsky, os marxistas, de uma forma geral, Popper, e chega aos nossos dias. Devo observar que esse tipo de conjectura, ou melhor, de teoria do conhecimento, não nos permite construir visões de como será o futuro. Embora possamos encontrar leis gerais explicativas, sempre esbarramos no óbvio: pode haver leis ainda mais gerais, ainda não descobertas, que englobem a anterior e apontem para rumos desconhecidos. Dizendo de forma simples: é impossível a predição. Mesmo que o sol nasça todo dia, talvez não nasça amanhã. É apenas provável que nasça amanhã. Ou melhor: há uma propensão quanto ao seu nascimento amanhã.



Mas essa teoria permite que expliquemos o passado e nossa explicação resista às críticas. Então talvez possamos compreender como surge o Estado, e com qual papel, a partir de um dos corolários da teoria da evolução. A evolução – não no sentido moral – vai do mais simples para o mais complexo. Se visualizarmos a árvore do conhecimento compreenderemos essa afirmação. Imaginemos, por exemplo, a evolução da matemática, desde a aritmética ao cálculo de tensores hiperespaciais. Ou da música. Ou do Direito. Ou da norma jurídica, mais especificamente: concreta e pessoal por que casuísta, antes da formação do Estado, para geral e abstrata, hoje, típica de uma necessidade política complexa. Ou as normas jurídicas das sociedades mecânicas para as normas jurídicas das sociedades orgânicas, como diz Durkheim. Esse corolário, aliado à contribuição de Herbert Spencer acerca da diferenciação e especialização das espécies da qual Popper fez uso em sua teoria do conhecimento é um rico manancial para analisarmos se realmente há uma crise do Estado ou se essa crise é aparentemente fabricada.



Uma conseqüência óbvia da utilização desses paradigmas é identificar estratégias adaptativas: Marx, Darwin e até mesmo a moderna Sociologia, com Pierre Boudieu e a categoria filosófica do Poder Simbólico ajudam a compreender a possibilidade de que a idéia de “Crise do Estado” seja uma manipulação, algo próprio do jogo do Poder Político. Eles ajudam a compreender a “função de ocultação” que um conceito como o de Estado veiculado pela mídia possui. Não precisamos ir muito longe. Basta nos lembrarmos dos EUA fabricando a crise do Iraque para ocupar, estrategicamente, suas reservas de petróleo. Basta nos lembrarmos dos EUA fabricando a crise com o Irã para continuar detendo a hegemonia nuclear na Terra. O modelo é simples: cria-se um inimigo estratégico potencial e abstrato (hoje é o terrorismo, ontem foi o comunismo, antes de ontem foi a heresia, para a Inquisição); cria-se uma crise; mobiliza-se e manipula-se a sociedade através da mídia ; e arranca-se das mesmas vítimas de sempre o ônus da luta (tributos, vidas).



Do ponto de vista concreto a lógica do Poder Político fabrica consensos e gera crises. O Consenso de Washington, um conjunto de propostas teóricas acerca de como deve ser a gestão da economia mundial legitima e impõe uma crise ao Brasil que não é do Estado, vez que os aparelhos estatais continuam funcionando normalmente. Uma das faces da crise imposta ao Brasil é a determinação do superávit primário como meta “de Estado”, não de Governo. E essa determinação nos é imposta sob a ameaça da fuga do capital estrangeiro que está a financiar nossa execução orçamentária. Dinheiro para o superávit financeiro é escassez para infra-estrutura. Para a saúde. Para a educação. Para a segurança pública. Uma crise imposta ao Brasil foi aquela referente à necessidade de despejar dinheiro público no saneamento de bancos privados em “débâcle” financeira por má gestão, no governo Fernando Henrique. A mídia – o chamado “clero secular” para lembrar a expressão de Isaiah Berlin – trabalhou muito e bem, financiada com nosso dinheiro, para que ficássemos apavorados com a possibilidade de todo nosso sistema financeiro ruir por terra e, qual um castelo de cartas, em decorrência, a razoável vida que nós, da classe média, levávamos. O “clero secular”, por ignorância ou má-fé, exerce um papel fundamental nesse processo de gerar crises: não por outra razão setores avançados das elites acreditam piamente que haja um déficit previdenciário. E a idéia de acabar com esse déficit é “vendida” como uma política de Estado. Idéia tão manipulável politicamente que nosso Presidente, no início de 2007, dela abdicou em busca de dividendos eleitorais. Não sabe o “clero secular” que o Governo coloca sob essa denominação não apenas o pagamento das aposentadorias, mas, também, programas de inclusão social efetivados através do colossal repasse de dinheiro arrancado da classe média para, dentre outros, a aposentadoria rural. Não sabe ou não quer saber. Entendida dessa forma não há previdência pública que funcione. Lembro, aqui, que a criação da contribuição previdenciária do aposentado contou com a participação decisiva do Supremo Tribunal Federal flexibilizando o conceito de “direito adquirido”. Lembro, também, que dias antes da votação no Supremo Tribunal Federal um ainda não ministro expedira um parecer condenando veementemente essa flexibilização, o que não o impediu de, uma vez ministro, mudar rapidamente de idéia. Práticas típicas de segmentos da elite assegurando a perpetuação do “status quo”.



A lógica do poder político pode ser tudo, menos burra. Pensemos acerca da atual greve dos bancários (2006). Pensemos naquilo que os bancários reivindicam. Percebamos o que os banqueiros oferecem. Vejamos o lucro estratosférico dos banqueiros. Entendamos por que os banqueiros não podem ceder: é a teoria do dominó, cedendo um, não há quem segure os outros que estão na fila lutando por melhoria salarial. Não ceder, ou ceder de forma ínfima, é uma barreira de contenção. Outra conseqüência do “Consenso de Wanshington” é a expropriação lenta, contínua e determinada da força de trabalho do servidor público, que é a parcela mais representativa da classe média: há uma expropriação direta, através da cobrança do imposto de renda, e há várias indiretas, dentre elas os cortes de vantagens. E há uma terceira expropriação: o aumento do custo de vida, que certamente não afeta a parcela da elite que repassa o ônus para os menos favorecidos, e a inflação. Esse achatamento remuneratório, digamos assim, engendra corrupção e desídia. Em uma escala muito mais ampla e perigosa, amordaça a classe média por que a amedronta com o fantasma da impossibilidade de manutenção do seu estilo de vida. É incalculável a dor de um pai típico da classe média que é obrigado a tirar o filho de um colégio particular para colocá-lo em uma escola pública. Percebamos a distorção.



Percebamos, também, a distorção que é o chamado contingenciamento orçamentário. Contigencia-se o orçamento para manipulá-lo. A possibilidade do contingenciamento torna inútil toda a discussão política que origina o orçamento. O que é contingenciado? O dinheiro para as políticas públicas por que estas são lentas e longas, atravessam governos. E o Poder Inconseqüente quer o agora, o imediato. Quer obras, às vezes não tão necessárias, mas para as quais há a demanda de setores específicos e poderosos da elite. Mas não quer um programa para a erradicação da mortalidade infantil por que implica em um longo e lento período de execução. Não quer um investimento consistente na educação por que o retorno não é eleitorável em curto prazo.



Observemos que tudo quanto foi mencionado é decisão política: manipulação do conceito de Estado, criação de inimigos fictícios do Estado, flexibilização de uma cláusula pétrea da Constituição Federal, criação da contribuição previdenciária, necessidade de pagar o superávit fiscal, contingenciamento orçamentário. Decisão de quem detém o Poder Político. Decisão de quem não assume o ônus da decisão e o transfere para essa entidade hipostasiada, abstrata, fictícia, chamada Estado. Decisão de Governo. Por que de concreto há, como nos mostram a ciência, relações de domínio, relações de Poder.



Então é preciso olhar com um olhar crítico essa idéia de “Crise do Estado”. É preciso perceber a função de ocultamento que o termo Estado possui conforme lidamos com ele hoje. Dizemos “Política de Estado” quando deveríamos dizer “Política de Governo”. Por que não podemos nem devemos aceitar que os detentores do Poder usem os aparelhos do Estado como escudo abstrato para ocultar sua manipulação. “Não sou eu, é a lei.” “Cumpro meu dever”. “Obedeço a ordens”. Essas expressões são tão mais perigosas por que isentam seus protagonistas da responsabilidade política que devem ter em relação ao que fazem com seus semelhantes. “Política de ou do Estado”: essa antropoformização dos aparelhos estatais torna impessoais as relações entre dominantes e dominados e permite ampliar e sofisticar os mecanismos de dominação. Óbvio que a grande maioria daqueles que exerce parcelas residuais de Poder não percebe o caráter de “correia-de-transmissão” que envolvem seus atos. Não percebem e virão a ser punidos mais na frente, por que são peças descartáveis, utilizáveis apenas enquanto aperfeiçoam o processo de expropriação que a configuração de poder existente instaura. E mais que em qualquer outro ambiente essa realidade se faz presente no campo jurídico.



É preciso também olhar criticamente as manobras diversionistas decorrentes dessa alienante manipulação: é muito comum encontrarmos em ambientes acadêmicos propostas de “aperfeiçoamento do Estado”. Todas as vezes que escuto essas propostas me lembro que antes os governos imperialistas esmagavam resistências com espadas, lanças e escudos, como o fez Roma; hoje o esmagamento é feito com armas muito mais aperfeiçoadas, como fuzis com mira a laser. O Estado aperfeiçoado é o Estado Orewelliano.


Dessa forma, parece claro que devemos aperfeiçoar a Democracia. É no campo político que são tomadas as decisões que impulsionam os aparelhos do Estado. É preciso crítica, vigilância, participação. É preciso um combate constante, profundo, amplo e disseminado ao autoritarismo. É preciso ampliar até o limite do impossível a inserção dos excluídos no processo político. Caso contrário continuaremos pagando o preço da nossa alienação: confundirmos o aparente com o essencial; o contingente, com o estrutural; o circunstancial com o definitivo.


É preciso crítica, vigilância e participação principalmente por que a tomada, por setores da elite, dos aparelhos do Estado pode engendrar tentações autoritárias: em recente episódio ocorrido (2006) no Norte do País, integrantes da cúpula do Tribunal de Contas, Assembléia Legislativa, Ministério Público, Poder Judiciário e Poder Executivo – uma quadrilha de aparelhos do Estado – foi flagrada em crimes que causaram e causam comoção e indignação, tentações autoritárias e críticas à democracia. Entender assim, entretanto, é um viés equivocado. Ao contrário do que se supõe, somente nas democracias é possível expor publicamente um tumor dessa natureza.



Para que esse processo de crítica, vigilância e participação se tornem efetivo é preciso que nós nos mobilizemos e combatamos aquilo que mudou para pior: a qualidade dos nossos atores políticos. Estamos pagando o preço da nossa omissão. Somos condescendentes. Somos omissos. Somos ignorantes. Não introjetamos a lição que Péricles nos legou através da Oração aos Mortos de Maratona, no sentido de construirmos uma “Paidéia”, uma “Cultura” de Democracia real, concreta, não formal, abstrata. Uma Democracia de inclusão social. Políticas Públicas da Sociedade, não do Estado.



Precisamos combater a manipulação de uma realidade que insiste em saltar ante nossos olhos: o Brasil que vivemos não é aquele que os detentores do Poder nos apresentam. Basta sairmos daqui agora e irmos a postos de saúde, escolas públicas e delegacias de polícia para constatarmos o que essa afirmação quer dizer. As modificações no aparelhamento do Estado são decisões políticas. São essas que devem ser modificadas. O “corpus” político deve configurar o Estado que é sempre autoritário e o colocar a reboque da Sociedade para que a tradição de Democracia enquanto valor seja preservada. Não há crise do Estado; há crise no Estado.

SE ELEITO DEPUTADO, ASSASSINO CONFESSO TOMARIA POSSE

Pimenta Neves e Sandra Gomide


Blog de Augusto Nunes

"Faz mais de 10 anos que o jornalista Antonio Pimenta Neves matou a ex-namorada Sandra Gomide com uma bala nas costas e outra na cabeça. Horas depois do crime, contou tudo à polícia e se tornou réu confesso. Em 2006, foi condenado em primeira instância a 18 anos de prisão, reduzidos a 15 pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Não cumpriu nenhum.

No momento, espera em liberdade o julgamento de um recurso encaminhado ao Supremo Tribunal Federal. O caso está com o ministro Celso de Mello, que não sabe quando terá tempo de examiná-lo. Tecnicamente, Pimenta Neves não é culpado de nada: graças às alquimias da legislação e às acrobacias da jurisprudência, tornou-se inconstitucional tratar um matador assumido como assassino antes que a sentença transite em julgado.

O cidadão brasileiro Antonio Marcos Pimenta Neves poderia, se quisesse, ter disputado uma vaga na Câmara dos Deputados em 2010. Não lhe faltariam simpatizantes, sobretudo entre colegas de ofício. O público alvo seria alcançado sem muita despesa, já que a Justiça Eleitoral concentrou o público alvo de delinquentes candidatos em poucos lugares: agora, a população carcerária se vale de urnas instaladas nos presídios para cumprir o dever cívico do voto.

Com alguma lábia e um pouco de sorte, Pimenta Neves hoje estaria festejando, entre uma conversa no cafezinho da Câmara e uma reunião para tratar da reforma política, a vitória da turma do prontuário no STF ─ e os nítidos sinais de que a lei da ficha suja será pulverizada de vez até 2012. A inovação legal torna inelegível gente condenada em duas instâncias. Isso é inconstitucional, já avisaram alguns ministros. É preciso aguardar o julgamento doo último recurso na última instância.

Sandra Gomide agonizava de costas quando levou o tiro de misericórdia. Nunca mereceu uma lágrima do seu executor. Para pelo menos seis doutores do STF, detalhes do gênero são pieguices irrelevantes, coisa de leigos que nem imaginam as altitudes jurídicas alcançadas por uma toga. A lei só retroage em benefício do réu, declamariam em coro. O princípio da anterioridade é sagrado, alertariam aos berros ─ mais de 10 anos depois do assassinato. E todos fingiriam ignorar que o processo dorme numa gaveta do Supremo.

Nada como um caso exemplar para encerrar a conversa fiada: caso virasse deputado, Pimenta Neves continuaria servindo à nação com as bênção do STF e sob as asas da Constituição. Os pimentas neves que agem fantasiados de pais-da-pátria são cada vez mais numeros. Há algo de muito errado com um país que torna possível tamanha afronta à justiça."

domingo, 27 de março de 2011

O JUIZ QUE LIMPOU OS FICHAS-SUJAS

Ruth de Aquino (colunista de Época):

"O novo juiz do Supremo Tribunal, Luiz Fux, é faixa preta em jiu-jítsu. Carioca de 57 anos, foi surfista, tocou guitarra numa banda de rock, The Five Thunders (“Os cinco trovões”). Aluno brilhante de escolas públicas, Fux tornou-se, na semana passada, o ídolo dos fichas-sujas.

A decisão do juiz de adiar a Lei da Ficha Limpa para 2012 lavou o passado de políticos que há muito tempo violam o Artigo 14 da Constituição. Este sim deveria ser o artigo intocável. É o que prega a moralidade na vida pública.

Fux acredita que continua a ser o mesmo lutador da juventude. “Na minha época, os professores de jiu-jítsu davam o exemplo da retidão”, escreveu, em depoimento para a Uerj, onde se formou em Direito.
 
Em seu primeiro voto polêmico, Fux não pode ser criticado por desrespeitar a legislação. Baseou-se nela para desempatar os votos dos colegas.
 
A Lei da Ficha Limpa, de iniciativa popular, com 1,6 milhão de assinaturas, foi aprovada no ano passado e sancionada pelo Congresso e por Lula. Tornava inelegíveis os políticos condenados por improbidade, corrupção, abuso de poder econômico, quebra de decoro.

Fux elogiou a lei, mas concluiu que ela não poderia valer para 2010, já que, pelo Artigo 16 da Constituição, mudanças em leis eleitorais precisam ser aprovadas até um ano antes do voto.
 
O palavreado no Supremo costuma ser rebuscado. “A Lei da Ficha Limpa, no meu modo de ver, é um dos mais belos espetáculos democráticos, posto que é uma lei de iniciativa com escopo de purificação no mundo político”, começou Fux, em sua média inicial com a torcida do povo brasileiro, que não aguenta mais tanta impunidade em campo.

E continuou: “Um dispositivo popular, ainda que oriundo da mais legítima vontade popular, não pode contrariar regras expressas no texto constitucional.”
 
Acontece, senhor juiz, que os fichas-sujas vêm contrariando regras expressas no texto constitucional muito tempo antes de a lei ser aprovada. Caso levássemos a Constituição à risca, dezenas de políticos não poderiam estar no Congresso nem disputar as eleições de 2010.
 
Um dado me convence de que validar a Ficha Limpa já nas últimas eleições não equivale a rasgar o texto da Constituição: o voto de cinco juízes do Supremo.

Foram favoráveis à aplicação imediata da lei: Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto, Cármen Lúcia, Ellen Gracie, Ricardo Lewandowski. Todos estudaram Direito, chegaram ao STF e fizeram uma opção.
 
Entre o Artigo 16, que fala da “anualidade”, e o Artigo 14, que fala da “moralidade pública”, esses cinco juízes ficaram com o último."