sábado, 5 de novembro de 2011

UMA OBRA A MAIS, UMA POLÍTICA PÚBLICA A MENOS

Até quando?


Honório de Medeiros



Há uma lógica perversa, induzindo a opção por privilegiar obras físicas em detrimento de políticas públicas, nos governos brasileiros, sejam estes quais sejam: municipais, estaduais, ou mesmo federal. Tal lógica é ainda mais perversa por praticamente excluir a opção pelas políticas públicas, entendidas estas “como as várias funções sociais possíveis de serem exercidas pelo Estado, tais como saúde, educação, previdência, moradia, saneamento básico, entre outras”, no dizer de Antônio Sérgio Araújo Fernandes, Doutor em Ciência Política pela USP e professor de Políticas Públicas da UNESP/Campus Araraquara, em “Políticas Públicas: Definição, Evolução e o Caso Brasileiro”.

Em primeiro lugar, a opção por obras físicas, QUANDO RESULTADO DESSA INDUÇÃO, é conseqüência de uma demanda específica: a das grandes empresas de construção civil e de serviços – e suas agregadas – que precisam recuperar o montante investido nos candidatos por elas apoiados e, também, convenhamos, como conseqüência do fato de seus proprietários, o mais das vezes, serem integrantes, através de laços familiares ou de compadrio, da elite política, quando não são o que comumente chamamos, no Brasil, de “laranjas”, ou seja, títeres dos próprios políticos.

Em segundo lugar, a opção por obras físicas é, também, conseqüência de outra demanda específica: a necessidade de encher os cofres vazios da elite política vencedora dos pleitos eleitorais aos quais se candidataram, e construir reserva para as futuras demandas político-partidárias.

Em terceiro lugar, a opção por obras físicas é, ainda, conseqüência de outra demanda específica: a de gerar condições de manutenção ou aquinhoamento financeiro dos quadros responsáveis pela gestão pública, sob a alegação (interna) de que não suportariam sobreviver com a remuneração miserável que lhes paga o serviço público (o chamado “por fora”).

Esse círculo vicioso – a elite política ser financiada pelas obras e serviços e, como conseqüência, por intermédio do Tesouro, financiá-las – consome o que sobra, no orçamento, quando pagos o custeio da máquina e a folha de pessoal, na maioria das vezes com manipulação orçamentária, sem praticamente nada deixar para a efetivação de políticas públicas.

A manipulação, persistente, o gerenciamento estrutural e dolosamente equivocado das finanças públicas, se mantém com a conivência dos Órgãos fiscalizadores, seja por desídia, seja por incompetência. Ano após ano a Constituição Federal é desrespeitada e seus princípios norteadores, no que diz respeito à Educação e Saúde, entre outros, adquirem o perfil de “letras mortas”.

O círculo vicioso engendra uma custosa publicidade com o objetivo de persuadir a sociedade acerca dos bons propósitos de toda obra e qualquer serviço que estejam sendo feitos. Assim, toda e qualquer obra surge, na publicidade, como decorrência de uma “demanda social” e se destina ao “desenvolvimento sustentado”. Obras e serviços por intermédio dos quais circula o capital financeiro da elite política, para perpetuar a expropriação da força de trabalho da classe média, que é quem paga, na verdade, os tributos nossos de cada dia.

E as políticas públicas, tais como a luta pela erradicação do analfabetismo, a luta contra a mortalidade infantil, a luta pela qualidade do ensino em todos os graus, a luta pela queda dos índices de homicídios, latrocínios, furto, que não dão retorno financeiro – embora dêem retorno eleitoral (e como dão) – são deixadas de lado e nosso Brasil, este imenso Brasil que sobrevive às vezes milagrosamente, apesar do Estado, continua um dos líderes mundiais da exclusão social.

Vejamos o que nos dizem, por exemplo, Admir Antonio Betarelli Junior, Edson Paulo Domingues e Aline Souza Magalhães em seu estudo “QUANTO VALE O SHOW? IMPACTOS ECONÔMICOS REGIONAIS DA COPA DO MUNDO 2014 NO BRASIL”, encontrável no Google, sob o título acima. Leiam com atenção:

“Os resultados analisados neste trabalho dizem respeito aos impactos dos investimentos em infra-instrutora urbana e estádios programados para a Copa-2014 anunciados pelo Ministério do Esporte no início de 2010. A literatura de economia dos esportes costuma elencar outros impactos advindos dos eventos esportivos, como por exemplo: ampliação dos setores de serviços e hotelaria; fluxo adicional de turistas no evento e pós-evento; e exposição internacional do país, com atração de investimento externo. Entretanto, tais impactos, se existem, são de difícil mensuração e projeção. Por exemplo, diversos especialistas em economia do turismo (e.g. Matheson, 2002) consideram que um mega-evento como a Copa do Mundo apenas substitui turistas usuais no país-sede por “turistas-copa”, e mesmo estes podem efetuar um dispêndio no país significativamente menor, tendo em vista os gastos com ingressos e deslocamentos para o evento.

O principal resultado da Copa-2014 parece ser a melhoria da infra-instrutora urbana nas cidades-sede, o que representa efetivamente impacto de longo prazo na eficiência econômica de diversas cidades. Além disso, este trabalho destacou as opções de financiamento dos investimentos da Copa-2014, e sinalizou que o impacto econômico tende a diminuir com o financiamento público para as obras de estádios de futebol, uma vez que implicam ou no crescimento da dívida pública ou na redução do gasto das diferentes esferas de governo envolvidas. Embora no Brasil o futebol seja a “paixão nacional”, não se vislumbra uma forma de avaliar o ganho de bem-estar das famílias com a reforma e construção de estádios de futebol, de uso essencialmente dos clubes de futebol ou eventos comerciais. Provavelmente, um ganho mais importante de bem-estar ocorrerá com a vitória brasileira na Copa-2014.”

Ou seja, os impactos econômicos favoráveis são como miragens no deserto. E estão os autores abordando única e exclusivamente o viés econômico do evento. Não está sendo abordado o dano incalculável em termos de políticas públicas não gestadas e implementadas pela falta de financiamento governamental.

Obviamente que há toda uma plêiade de estatísticas justificando os investimentos do Governo. Não é nada difícil manipular estatísticas. Difícil é admitir que fazer calçamento possa ser melhor que educar as crianças, melhorar o atendimento médico-hospitalar ou diminuir as estatísticas da violência urbana e rural.              

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

RECOMENDAÇÃO

 Recomendo vivamente a visita ao http://coronelangelodantas.blogspot.com.

Assim como recomendo, para quem lê e pesquisa acerca da história do Rio Grande do Norte, a leitura de "CRONOLOGIA DA POLÍCIA MILITAR DO RIO GRANDE DO NORTE (175 anos de história - 1834 a 2009)", de Ângelo Mário de Azevedo Dantas, orelhas de Manoel Onofre Jr., edição do Autor, 2010. Trata-se de uma obra de valor indiscutível para se entender o Rio Grande do Norte. O Autor é um pesquisador inteligente e infatigável, e o resultado do seu trabalho já é referência no Estado.

PATOS, ONDE HOUVE UMA LAGOA (2)

Antônio de Lelé, ex-cantador de viola

Honório de Medeiros


“Por que Patos?”, repito. “Havia, aqui, antes, uma lagoa chamada ‘Lagoa dos Patos’” “Onde ficava, insisti.” “Ah, quem quer que tenha um quintal em casa diz que era lá.” E esboça um esgar de sorriso sarcástico no canto da boca. Virgílio Trindade nos indica outros intelectuais de Patos, dentre eles o Secretário de Educação do Município, que também é dirigente do Instituto Histórico local. Fomos até lá. Recebeu-nos uma moçoila loura tão importante quanto decrépito era o prédio da Secretaria. Perguntou-nos se tínhamos marcado hora. Foi até o gabinete e voltou cerimoniosa, pedindo-nos que aguardássemos o término de uma reunião. Sentamos durante breves cinco minutos e, impacientes, nos despedimos, para espanto da secretária, a quem recomendamos, enfaticamente, como despedida, a leitura da obra completa de José Sarney, apropriadíssima para moçoilas secretárias de secretários ocupadíssimos.

                            Passamos no “troca-troca”. Um galpão aberto para todos os lados onde quem quiser chega e expõe sua mercadoria para vender ou trocar. Seu Antônio, um sertanejo idoso, mas rijo, nos acolheu com um sorriso. Na sua banca encontramos desde uma rede de pescar em açudes até rádios antigos. “Troca-se qualquer coisa aqui, Seu Antônio?” “Qualquer coisa, doutor, até mulher velha por nova, mas dando o troco.” “Você e seu pai são de onde?”, diz ele se virando para Franklin Jorge. Caímos na gargalhada. Franklin diz que não é meu pai. Eu pisco o olho para Seu Antônio quando vou saindo: “ele é muito vaidoso”. Despedimo-nos. Seu Antônio olha para mim quando Franklin lhe dá as costas: “eu entendo como é...” 

                            Quem nos recebeu à porta da casa simples, estreita, geminada, praticamente no centro comercial de Patos, quando fomos à procura de Antônio de Lelé, cantador que primeiro fez dupla com Seu Chico Honório em sua breve carreira de repentista, foi sua esposa, baixinha, magrinha e enrugadinha. Abriu a porta que dava para uma pequena área que antecedia a salinha de estar e nós fomos envolvidos por um delicioso cheiro de alguma iguaria que estava sendo cozinhada no tempero de cominho. Antônio de Lelé não estava apesar de Dona Maria afirmar que ele nunca saía de casa, fato desmentido diversas vezes ao longo do dia, quando insistíamos em o procurar. Haveria algo freudiano nessa negação do óbvio? Finalmente damos com Antônio de Lelé, lá pela quarta procura. Surpresa: é como ver Padre Sátiro Dantas na nossa frente sem aquela sua impaciência enervante.

 Antônio de Lelé conversa longamente com Seu Chico Honório pelo celular enquanto assediamos Dona Maria com elogios rasgados ao cheiro de sua comida. Queríamos um convite. Era um bode no cominho. “O que acompanha?” “Arroz, farofa na gordura, uma saladinha.” “Rapadura, também”. E ia recuando, agoniada para escapar da obrigação sertaneja de oferecer a iguaria elogiada. Constrangida pelo cerco implacável, não entrega os pontos: “se não fosse tão pouca a comida eu até que convidava.” Renunciamos ao ataque, comovidos. Terminamos sem provar o bode.

Nesse tempo Antônio de Lelé já se despede alegando que tem que ir ao Banco, mas nos aguarda de tarde, garantindo que o livro de Orlando Tejo sobre Zé Limeira, com quem ele cantou várias vezes, tinha muita mentira. Eu fiquei me lembrando de Orlando no meu apartamento em Brasília, levado por Jânio Rego, espojado em minha cadeira de balanço a lançar fumaça de um cachimbo preto que empesteava o ambiente, falando acerca da Serra do Teixeira onde há um marco que fica no meio do tudo por que fica no meio do nada.

                                     

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

OS ESPERTALHÕES DE FEIRAS

sertaomeudecadadia.blogspot.com


Honorio de Medeiros


Antigamente não havia feira, no interior, sem um espertalhão. Era o espertalhão de feira. Chegava insidioso, se imiscuindo por entre as pessoas até um local apropriado, pousava a mala no chão, tirava o chapéu preto encharcado de suor, puxava um lenço amarfanhado do bolso e o passava no rosto e cabelo, abria a mala, sacava uma mesinha de madeira daquelas pré-montadas e a cobria com um pano que fora branco em alguma "era" passada, expunha vários frascos cheios de líquidos coloridos, olhava ao seu derredor, escolhia uma vítima após lançar um olhar experimentado para todos os lados e começava sua "latomia": "a senhora, é, a senhora mesmo, me ouça com atenção, porque estou vendo pela sua cor que a senhora apresenta algum incômodo no sangue. Tem dormido mal, de quando em vez, não é? Às vêzes tem sentido uma tristeza que demora a passar, não é? Algumas comidas não estão entrando bem, não é? É como digo, minha senhora, a senhora está com algum incômodo no sangue. Mas eu tenho a solução. E para o senhor também, e para você também, moça bonita. Porque aqui, nesta garrafa, está o mais potente destilado de uma erva que somente existe no coração da Amazônia, e que os índios guardam como sendo o maior segredo deles. Essa bebida cura todo mal que se origina do sangue..."

E por aí vai. O espertalhão de feira já formou um círculo em seu derredor e prende a atenção das pessoas contando casos e mais casos nos quais a cura milagrosa se estabeleceu a partir de sua beberagem. São estórias escabrosas, produzidas e contadas para prender a atenção. Voz tonitroante, olhar de águia para perceber quais são os mais impressionáveis, tiradas bem-humoradas de quando em vez, para estabelecer empatia com os ouvintes, poderia ser um estudo de caso de uma retórica firmada no dia-a-dia, na experiência brutal da luta pela sobrevivência, na prática permanente da mistificação.

 Na outra ponta do centro da feira, outro espertalhão já montou seu "circo": também em uma mesinha dispõe sobre a superfície do pano branco uma bolinha de metal acobraeado e três copos de madeira escurecidos pela sujeira e convida os incautos a descobrir onde a bolinha está escondida, enquanto rapidamente os maneja de um lado para o outro. Alguns dos incautos já ganharam uma pequena importância: isso faz parte do processo de atração das futuras vítimas - o primeiro dinheiro fácil - que começam ganhando e, no fim, sem ter notado, seu "apurado", tudo quanto ganhou na feira, foi embora para os bolsos do espertalhão, misturado com cachaça ou conhaque barato e pedaços de carne de bode.

Em outro lugar cantadores de viola "simulam" um desafio enquanto alguém "corre o chapéu". Não há peleja, não há repente, não há criatividade: tudo quanto é cantado já o foi Sertão a dentro, muitas vezes, em muitos lugares. O público pensa que está assistindo um desafio quando, na verdade, está sendo iludido com versos decorados e antigos. 

Os espertalhões de feira são como nossos políticos. E os "bestas" somos nós.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

TRISTES TEMPOS

O Governo do Rio Grande do Norte dobrou os servidores públicos estaduais.

As palavras-de-ordem sumiram, assim como as bandeiras e os panfletos. Convicções se estilhaçaram. Outras surgiram, com ares de quem pretendem ficar.

Resta o ressentimento que, na massa, costuma ser persistente, difuso e malévolo. Além de praticamente inadministrável.

Sem boas recordações do passado,  com um presente sombrio e um futuro sem esperança, o servidor público é a consequência, no Estado, assim como o Homem comum o é, na Sociedade, do que a nossa elite política construiu, ao longo dos anos, com incompetência inigualável: educação, saúde, e segurança de terceiro mundo, em pleno século XXI. Nenhum avanço; somente recuo; nenhum progresso; somente decadência.

Essa consequência cobrará de todos nós, sua fatura: teremos, no futuro, obras que serão ilhas de excelência para uns poucos, como a "Arena das Dunas", em um mar de decadência generalizada, como no caso da saúde pública.

Algo semelhante a como age a grande maioria dos prefeitos do interior: calçam as ruas e abandonam as escolas.

Para governos que se sustentam em obras, não são necessários servidores públicos; para governos que se sustentam em políticas públicas, são imprescindíveis os servidores públicos.

É essa a lição da história.

Tristes tempos.

PATOS, ONDE EXISTIU UMA LAGOA (1)

Virgílio Trindade


                   Saímos cedo de Pau dos Ferros no rumo de Patos, na Paraíba, em busca das raízes de Massilon. Lá chegamos ao meio-dia. Hospedamo-nos no Hotel Zurick. À noite perguntamos ao recepcionista porque o hotel tinha esse nome. Com certo sarcasmo sertanejo, respondeu: “o homem andou por lá e por certo achou esse nome bonito.” Franklin Jorge comentou: “se Cascudo tivesse estado aqui escreveria uma crônica com o seguinte título “Zurick em pleno Sertão paraibano; faria algo grandioso e o dono terminaria recebendo o título de cônsul honorário da Suíça”.

                   Fomo à Matriz. Prédio simples. Chegamos em plena missa das 16:00 horas. Rodeamos a Igreja cujos fundos dão para uma rua estreita, pequena. Olhávamos para uma porta, indecisos, quando um homem trigueiro, alto, encorpado, trinta e poucos anos, cabelo curtíssimo, à escovinha, vestido com uma camisa de mangas compridas abotoada nos pulsos se aproximou maciamente. Desejou-nos uma boa tarde. Perguntei-lhe se ali era a Secretaria da Paróquia. Ele disse que não e nos apontou onde ficava. Perguntei-lhe se era padre. Confirmou com aqueles ademanes típicos, mas discretos, de seminarista, contidos por sua estrutura física maciça embora não desmesurada e nos entregou sua mão também macia para apertarmos. Padre Francisco foi gentil, delicado.

                   Na livraria da cidade perguntamos à vendedora pelas obras dos autores locais. Ela nos apontou, com certa displicência, um canto afastado de uma estante. Encontramos uma gramática em versos, que eu logo comprei, e livros e mais livros de um poeta local. O poeta praticamente inundara a livraria. Não se tratava de vários volumes de um livro de poesia. Tratava-se de vários livros de poesia a ocupar a livraria. Nada mais.

 Depois, fomos às ruas: vibrantes, febris, plenamente comerciais. Carros, motos, bicicletas... Pessoas vinham e iam rápidas, com aquele semblante típico de quem precisa chegar logo em algum lugar qualquer, para resolver algo. Não vimos pedintes, nem pastoradores de carro, nem lavadores de pára-brisa, nem deficientes físicos. Vimos uma louca, personagem folclórico, que me abordou na farmácia: “lindão, me dê um dinheiro”. Como não dar? “Ela dá sempre esse golpe em quem não é daqui” me diz a caixa da farmácia.

Raros são os passeantes. Os flâneurs. A maioria mulheres. As mulheres de Patos são belas, não bonitas. Há uma diferença entre ser bela e ser bonita. A mulher, quando é bela, desafia o tempo. Não pede emprestado à juventude aquilo que já possui. Belas, as mulheres de Patos. Suavemente arredondadas, como um ideal rafaelita amoldado à realidade anoréxica dos tempos atuais. Altivas. Ou contidas. Ou dissimuladas. Pernas longas, levemente grossas, torneadas. Narizes afilados. Belos dentes. Compuseram um contraste marcante com o bulício comercial suburbano que ocupou nossos olhos enquanto caminhávamos pelas ruas da cidade. Não haveria ruas onde não se compra e não se vende? Aparentemente não. Em qualquer lugar havia essa atividade febril, tipicamente burguesa, que pressupunha uma interação constante entre as pessoas e que se opunha à percepção do aparente distanciamento das belas mulheres de Patos.

                   “Por que Patos?”, perguntei a Virgílio Trindade, a quem seu primo homônimo Virgílio Trindade, comerciante no Mercado Central, por nós procurado por indicação de um transeunte como sendo bastante antigo na praça, reputa como grande escritor. Recebeu-nos muito bem. Tem um programa político em uma rádio importante da cidade. Magro, moreno, careca, sentado por trás de um birô anacrônico em um escritório de um só vão no centro da cidade, com sua voz característica de fumante e locutor, nos presenteou com um livro de crônicas de sua autoria, “Relíquias”. Falou-nos do programa político: “é complicado”. “Por quê?” “A todo instante a gente está falando com alguém ao telefone, ao vivo, no ar, e a criatura grita: eu voto em Lula! Já pensou?”

                                     

terça-feira, 25 de outubro de 2011

II CONGRESSO NACIONAL DO CANGAÇO E III SEMANA REGIONAL DE HISTÓRIA

Bilhete do Presidente da SBEC:

"Caros Sócios e amigos,

O II Congresso Nacional do Cangaço e III Semana Regional de História teve inicio nesta segunda feira (24).

Ultrapassamos o numero de 470 participantes entre estudantes, professores, pesquisadores, e o evento irá até a sexta feira (29).

Ainda há tempo de participar. Venha para Cajazeiras/PB e se hospede no Gravatá Flat Hotel através do site www.gravatahotel.com.br

Prestigie a SBEC e a UFCG/CFP.

Abraços,
Lemuel Rodrigues da Silva"

sábado, 15 de outubro de 2011

UM EVENTO COMUM

Miss Marple, de Agatha Christie
robertarood.wordpress.com


Honório de Medeiros


                        “Um radialista”. Assim, secamente, Antônio Gomes me identificou o morto cujo enterro passava pela esquina onde estávamos postados em Cajazeiras, Paraíba. Até que o enterro passasse por mim não lhe dera atenção. Observara, fascinado, aquela fila coleante a se arrastar molemente, ocupando todos os espaços da rua. Era sempre assim, fosse enterro, manifestação, passeata política, desfile: um fluxo constituído por pessoas diferentes, mas iguais quando em grupo. O ser humano. Esse compósito de vilania e santidade se arrastando em grupo, ou a sós, do nada para o nada. “De longe, todo mundo é normal”: terá sido Wilde, quem o disse?

                        Antônio Gomes, como eu, estava de braços cruzados olhando o enterro, mas seu olhar era sardônico. Um olhar que combinava bem com o rosto magro, de feições indefinidas, comuns. Deveria ter sessenta e poucos anos. Cabelos grisalhos, abundantes, cortados curtos, displicentemente penteados para trás. Ao observá-lo tive a sensação de que ele parecia um elemento estranho à paisagem. Não combinava com Cajazeiras, uma cidade que, como muitas outras, sendo grande para os padrões do Sertão, disso nada extrai de bom, assim como não guardou o que de bom havia de quando era pequena. Era como uma questão de foco. Ele parecia deslocado não porque estivesse no centro da cidade, e não acompanhasse o enterro, mas, sim, por que estava ali como se fosse um estrangeiro em pleno Sertão, muito embora sua roupa, dele, não dissesse nada, nem os sapatos, nem qualquer adereço, até por que não os havia, excetuando o relógio que também era muito discreto.

                        “O senhor não é daqui.” “Sou e não sou. Nasci aqui há uns sessenta anos atrás, e voltei há uns poucos dias para vender uma terra que me coube por herança.” E me perguntou o que eu fazia em Cajazeiras. Falei-lhe de minha pesquisa acerca de Massilon e que acabara de voltar de Missão Velha, no Ceará, terra onde o Cel. Isaias Arruda “reinara” na década de 20 e da qual, com seu apoio logístico, Lampião partira para invadir Mossoró. Agora já estávamos sentados numa lanchonete que colocara aquelas mesas e cadeiras de metal com imensas logomarcas de cerveja na calçada. Mesas e cadeiras sujas, evidentemente. Como não era possível tomar um café respeitável, pedíramos água mineral. “Ah, o cangaço”, disse, e perguntou: “descobriu algo em Missão Velha?”. Sim, eu havia descoberto, mas não queria falar acerca de cangaço. Será que eu conseguiria transmitir oralmente, para aquele estranho, um homem educado, percebia-se facilmente isso, minhas impressões de viagem? Será que eu conseguiria prender sua atenção durante um tempo suficiente para lhe dizer uma crônica elaborada com fragmentos de imagens e palavras? O que significaria tudo isso quando cada um fosse para seu lado e um tempo razoável tivesse passado desde então?

                        O cariri é verde, muito verde para ser Sertão, comecei. E Missão Velha parece uma cidadezinha perdida no tempo, uma Macondo. Lá, quando chegamos, fomos direto para o coração da cidade. Estacionamos. Seria dia de feira? Não, é que o pagamento da “esmola oficial do governo federal” era naquele momento. As feiras, como eram antigamente, não existem mais. Não há mais cantadores de viola, coquistas, literatura de cordel, contadores de “causos”, vendedores de drogas milagrosas, rezadeiras, adivinhos, mágicos, circos mambembes... Há tipos estranhos, é impossível não haver: uma mulher de mais de sessenta anos, horrorosamente maquiada, vestida como uma adolescente, a carne sobrando por sobre a barra da minissaia, a abraçar freneticamente uma comadre a quem aparentemente não via há muito tempo e lhe responder em cima da bucha quando ela dissera “criatura, você já está com muitos janeiros, né?; “estou, mas você não fica atrás não, olhe as pelancas, não é, mulher?” E depois dessa resposta, se virou para o lado e tangeu o marido que empurrava um carrinho de sorvete caseiro, enquanto olhava: “vai, vai, que aqui é conversa de comadres”. O sorveteiro obedeceu, mas como vingança, ao passar por mim que observava deliciado a cena, levou a mão ao lado da cabeça, e fez, com o indicador apontado para si e desenhando um círculo, o comentário final: “é tudo doida”.

                        Mestre Antônio rira do episódio das mulheres e depois comentara que, às vezes, dizia a seus amigos do Sul, quando se demorava a voltar, que ali, no Sertão, para quem soubesse ver, ouvir, e extrair as conclusões possíveis, não havia escola nem teatro iguais, e, finalizando, aludiu ao personagem de Agatha Christie, Miss Marple, personagem insulada em uma pequena cidade inglesa, a resolver crimes Inglaterra afora a partir de sua peculiar psicologia aldeã, e à frase de Tolstoi “ninguém se torna universal sem escrever acerca de sua aldeia”, para encerrar nossa rápida e estranha conversa que lhe dava razão na justa medida em que, no coração de Cajazeiras, o teatro da vida nos permitira divagar, filosoficamente, acerca da condição humana, sem que fosse necessário nada mais além de um final-de-tarde, um encontro casual, e um evento comum.                 

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

E ASSIM SERÁ!

Colégio Diocesano Santa Luzia, Mossoró, Rn, 1972 - 2012: 40 ANOS.

AINDA SOMOS OS MESMOS

Da esquerda para a direita de quem olha: Fred, Paulo Maia, Hélton, eu, Fernando Negreiros, Segundo Paula, Lenilson, Anchieta, Delevan, Jânio Rêgo

Por outro ângulo, da esquerda de quem olha para a direita: Segundo Paula, Lenilson Costa, Anchieta Medeiros, Delevam Gutemberg, Jânio Rêgo, Fred Câncio, Paulo Maia, Hélton, Honório de Medeiros, e Fernando Negreiros

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

AS SOCIEDADES PRIMITIVAS NÃO TÊM O ESTADO PORQUE O RECUSAM

Pierre Clastres


Pierre Clastres

"Como sociedades completas, acabadas, adultas e não mais como embriões infrapolíticos, as sociedades primitivas não têm o Estado porque o recusam, porque recusam a divisão do corpo social em dominantes e dominados."

"ARQUEOLOGIA DA VIOLÊNCIA" (Cap. VI, A Questão da Violência nas Sociedades Primitivas)

O MELHOR DO BRASIL É O BRASILEIRO

* Por Ricardo Sobral (ricms@uol.com.br)

Ainda bem que casos que tais não se dão no Brasil, na razão direta de inexistir no seio de nossa sociedade caldo de cultura onde floresçam. De modo que sequer se pode alimentar fundado receio de que possam vir a acontecer, em face das salvaguardas cívicas que nos protegem.

Podemos negar que temos partidos políticos fortes, bem definidos ideologicamente e atuantes, durante e depois de cada eleição? Basta ver que praticamente não se tem conhecimento de notícia de corrupção no País! Depois, registra-se que o Estado Brasileiro não adota políticas públicas paternalistas. Ao contrário, ensina a pescar, não entrega o peixe de mão beijada. Somos, pois, um povo consciente e laborioso, que cumpre fiel e resignadamente a sentença divina: viverás do suor do seu próprio rosto.

Não é sem propósito que nos recusamos a receber esmolas populistas institucionalizadas e detestamos apresentações “gratuitas” de bandas de forró. Por esses motivos, a máxima romana “dei-lhes pão e circo” jamais terá serventia por aqui.

Não é à toa que nos é atribuída a destinação de País do futuro.

Outra: se, por um lado, é certo que os tipos humanos estão todos na literatura universal; por outro, não é menos certo que Machado de Assis, Mário de Andrade e Nelson Rodrigues, não adotaram o brasileiro como modelo, quando pintaram Prudêncio, Macunaíma e Peixoto com todas as letras.
 
Delicadamente tenho discordado de um nobre e dileto amigo, useiro e vezeiro no afirmar que até hoje, depois de ler praticamente toda a obra de Cascudo, não entendeu ainda a frase a ele atribuída – O melhor do Brasil é o brasileiro.

Ora, somos um povo ético, honesto, trabalhador e sábio na escolha dos nossos dirigentes. Logo, o melhor do Brasil só pode ser o brasileiro.

Duvidam? Tirem daqui os nacionais e povoem o nosso território com os de qualquer outra nação. O Brasil quebraria em um semestre, do mesmo modo que eles estão quebrando seus países lá fora. Não é difícil, pois, alcançar a profundidade da assertiva.

Outro amigo fraternal, por sua vez, tem manifestado com freqüência sua tristeza por não ter seu País sido agraciado pelo destino com a mesma sorte grande.

Relatou-me um caso lá acontecido, dando notícia de um determinado decider minores que se declarou incapaz para a continuidade de sua missão institucional, mesmo ausente justo motivo agasalhador de sua infundada pretensão. Esperneou, fez o maior alarido, pugnou até mais não poder, sempre se afirmando incapaz. Após ter negado o pleito descabido, postulou promoção para decider more, por merecimento.

Lamento – retruquei. Caso semelhante é impossível ocorrer no Brasil, repleto de revoluções e prenhe de heróis, nenhum deles de espada virgem.

domingo, 9 de outubro de 2011

CARIRI CANGAÇO 2011

A arte de Clara de Paula:

Perorando!

A arte de Bárbara Lima:


Bárbara de Medeiros e Clara de Paula: ensimesmamento aos pés de Padre Cícero.

CARIRI CANGAÇO 2011

A arte de Clara de Paula:


Meninos dançarinos de Missão Velha, Ce.


A arte de Bárbara Lima:


Meu padrinho Padre Cicero, orai por nós!


sábado, 8 de outubro de 2011

DEUS ESTÁ (TAMBÉM) NOS DETALHES

A arte de Bárbara Lima:




SOL POENTE

"Dia da minha vida!
aproxima-se a noite!
Já o teu olhar cintila
semi-cerrado,
já do teu orvalho
gotejam lágrimas,
já serena sobre mares brancos
voga a púrpura do teu amor,
a tua derradeira, trêmula felicidade"

"ditirambos de diónisos", Nietsche.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

DONA EFIGÊNIA, OU DA ARTE DE FAZER O BEM

Honório de Medeiros

Dona Efigênia pontificava naquela rua onde morei. Gorda, imensa, um pouco surda – talvez por puro cálculo – passava o dia sentada em uma cadeira de balanço na ampla sala de estar que dava para um jardim lateral e portão de ferro batido, este pintado de branco, a lhe separar do resto do mundo, em sua casa antiga, senhorial, de esquina, de frente para os fundos da Capela local. Sempre perfumada, penteada e bem vestida, ficava o dia inteiro colada a uma mesinha redonda cheia de quinquilharias na qual reinava, inconteste, o telefone e o rádio. “Prefiro o rádio”, me disse ela quando lhe perguntei qual a razão do eterno silêncio da televisão. “As pessoas de fora participam mais à vontade”.

Eu cumpria fielmente o ritual de visitá-la tantas vezes fosse a sua cidade. E tenho certeza que ela gostava de minhas visitas. Prova-o o doce de coco verde sempre disponível, quando eu avisava previamente da visita, e do qual eu gostava imensamente. Acredito até saber a razão de sua simpatia para comigo: ao contrário da grande maioria dos que a procuravam, eu não estava interessado em fofocas, ou, melhor dizendo, meu interesse era secundário, existia apenas na justa medida em que ilustraria alguma opinião sua a respeito de fatos ou pessoas, essa sim extremamente interessante porque revelava um agudo poder de observação e análise.

Pois Dona Efigênia, viúva, com pensão mais que razoável que o falecido lhe deixara, filhos dispersos pelo mundo, era uma renomada e rematada fofoqueira, na opinião de alguns. Talvez fofoqueira não fizesse jus ao que de fato ela era. Talves, não, certeza. Como uma aranha postada no centro de uma imensa teia ela recebia, analisava e devolvia informações ao longo do dia de uma imensa variedade de informantes: serviçais, comadres, afilhados, sobrinhos, primos, amigos, o carteiro e o padre – por quem tinha especial predileção, dado que o primeiro vivia batendo perna pelos cantos, e o segundo a escutar confissões – o leiteiro, as crianças da rua, os vizinhos, pessoas de outros lugares com recomendações, o rádio e o telefone.

Devo ter esquecido alguns, óbvio. Mas não esqueço sua sala de visitas quase sempre cheia e ela quase sempre em silêncio escutando até que, em determinado momento, chamava alguém para sentar em um banco baixo que ficava estrategicamente postado perto de sua cadeira de balanço e lhe cochichava algo durante alguns minutos após os quais a conversava privada era dada por encerrada.

Quando a conheci, ainda menino, supus que aquela sua atividade começasse e acabasse conforme comentavam os maledicentes. Diziam estes que tudo aquilo não passava de fofocas de viúva velha. Depois de algum tempo compreendi que ela mesma criara essa camuflagem. Era assim que queria que os outros lá fora a enxergassem! Essa camuflagem ocultava o verdadeiro propósito de sua atividade diária. Através da colheita de informações ela ficava sabendo o que de errado havia acontecido no seu entorno: alguma gravidez indesejada, uma demissão inesperada, uma prestação de colégio atrasada, uma virgindade perdida, um exame médico além do alcance financeiro de quem dele estava precisando, uma traição amorosa que se consumara, uma despensa desabastecida, uma violência doméstica cometida, um recém-nascido abandonado...

Então Dona Efigênia entrava em ação: chamava um, chamava outro, cobrava antigos favores, pedia novos, recebia dinheiro de quem lhe devia e repassava para quem estivesse precisando, a perder de vista, dava carões, espalhava conselhos, apontava caminhos, indicava obstáculos, aproximava pessoas, afastava outras, mandava fazer, mandava desmanchar, realizando um metódico, complexo e minucioso bordado social.

Assim encaminhava os seus dias, exceto aos domingos, reservados a Deus e sua família, quando Aldenora, sua escudeira-mor, estava autorizada a dizer, aos incautos que a procurassem, que “ela está recolhida e só recebe a partir de segunda-feira”.

Dona Efigênia, há muito, descansa em paz e, se existe Céu, nos braços do Senhor. Seu enterro foi algo inesquecível. Muitas flores, muita gente, muitas lágrimas de saudade e gratidão. Dela ficou, em mim, a lembrança de alguém extremamente inteligente. De alguém extremamente bom, no antigo sentido do termo.

Ao longo da vida me peguei, várias vezes, lembrando de alguma observação sua. Invariavelmente paro, componho em minha mente o quadro de sua presença sentada na cadeira de balanço, naquela sala de estar hoje silenciosa, pego no seu breviário que eu herdei, me ponho a lê-lo e é essa minha oração saudosa para ela.

"O GENE EGOISTA"

Post Scriptum ao texto "O SISTEMA JOGA SUJO":

"Penso que um novo tipo de replicador surgiu recentemente neste mesmo planeta. Está bem diante de nós. Está ainda na sua infância, flutuando ao sabor da corrente no seu caldo primordial, porém já está alcançando uma mudança evolutiva a uma velocidade de deixar o velho gene, ofegante, muito para trás.
O novo caldo é o caldo da cultura humana. Precisamos de um nome para o novo replicador, um nome que transmita a idéia de uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação.

 (...) Espero que meus amigos classicistas me perdoem se abreviar mimeme para meme.

Exemplos de memes são melodias, ideías, slogans, as modas no vestuário, as maneiras de fazer potes ou construir arcos. Tal como os genes se propagam no pool genético saltando de corpo para corpo através dos espermatozóides ou dos óvulos, os memes também se propagam no pool de memes saltando de cérebro para cérebro através de um processo que, num sentido amplo, pode ser chamado de imitação. Se um cientista ouve ou lê sobre uma boa idéia, transmite-a aos seus colegas e alunos. Ele a menciona nos seus artigos e palestras. Se a idéia pegar, pode-se dizer que ela propaga a si mesma, espalhando-se de cérebro para cérebro."

"O GENE EGOISTA";  Capítulo 11: "Memes: os novos replicadores"; Richard DAWKINS.


terça-feira, 4 de outubro de 2011

REUNIÃO DO GRUPO DE ESTUDOS DO CANGAÇO, CORONELISMO E MISTICISMO DE NATAL, RN

Devido à impossibilidade de comparecimento de alguns membros do Grupo de Estudo do Cangaço, Coronelismo e Misticismo de Natal, a reunião prevista para hoje, 4 de outubro fica adiada.

Entraremos em contato tão logo seja marcada a próxima reunião.

A Coordenação.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

"O INIMIGO DO POVO"

Henrik Ibsen


Post Scriptum ao texto "O SISTEMA JOGA SUJO":

"PREFEITO - Deus me livre! Tenho horror a brigas ou discussões com quem quer que seja. Mas exijo que tudo se resolva segundo os regulamentos e passe pela autoridade legitimamente constituída para esse fim. Nada de operações clandestinas!

DR. STOCKMANN - Tenho eu por acaso o hábito de usar caminhos escusos ou clandestinos?

PREFEITO - Não digo que você tenha feito isso. Mas sei que tem a tentação permanente de fazer as coisas por sua própria conta. E, numa sociedade bem organizada, isso é indamissível. As iniciativas particulares devem se submeter, custe o que custar, ao interesse geral, ou melhor, às autoridades encarregadas de zelar pelo bem geral."

"UM INIMIGO DO POVO", Henrik Ibsen, Primeiro Ato. 

sábado, 1 de outubro de 2011

O SISTEMA JOGA SUJO



Honorio de Medeiros


                        O pior da luta contra o Sistema é que não conseguimos individualizar o adversário. Não conseguimos identificar o responsável pela nossa ira. Não conseguimos olhá-lo no olho e lhe dizer o que ele merece escutar.

                        Lutamos contra algo amorfo, sem consistência definida, sem limites delineados, que não oferece resistência imediata e clara. Há pequenos recuos ante nossa indignação, que são apresentados pelos tentáculos do sistema – os seus operadores – e uma imediata, homogênea e difusa contrapressão como resposta ao incômodo que causamos e nós terminamos sendo manipulados e conduzidos, lenta e inexoravelmente, para o lugar que nos foi reservado.

                        Muito abstrato? Exemplifico.

Em uma instituição de ensino superior deste imenso e desgovernado País um velho e experiente professor de História das Idéias Políticas percebeu, em certo momento de desconforto profissional alusivo à “como as coisas estavam acontecendo” no seu Departamento, como quem acorda abruptamente e a realidade penetra sem rodeios sua percepção, um insidioso e ainda opaco processo de mudança nos paradigmas implícitos que governavam a Instituição. Algo sutil, mas persistente.

O velho professor já passara por algo semelhante, em sua longa carreira universitária. Sentiu que a luta era vã, sua resistência inócua, contra o processo que se instalava lentamente, mas decidiu lutar, resistir, para documentar, mesmo que somente para si, tudo quanto estava acontecendo.

“Quando tudo havia começado?”, se perguntou. “Ora, como saber?” Deixou essa questão para trás e tratou de fazer um registro e análise “positivista”, sem levar em consideração possíveis causas estruturalistas, materialistas, marxista-leninistas, do fenômeno em si. Faria o registro, pura e simplesmente dos fatos e os interpretaria a partir da própria lógica do sistema.

Recordou que longe, lá no começo, sua Disciplina, que previa 80 horas/aulas por semestre, fora reduzida para 60 horas/aula. Reduziram, também, para 60 horas/aula a Disciplina co-irmã História das Idéias Sociais. Depois, extinguiram História das Idéias Sociais e a História das Idéias Políticas passou a ser História das Idéias Sócio-Políticas, com as mesmas 60 horas/aula. De uma penada só o Sistema se livrou de vários professores.

Resolveu protestar, então. O Chefe do Departamento o escutou atentamente e se prontificou a levar sua Exposição de Motivos à próxima reunião do Conselho Diretor. Algum tempo depois, sem receber resposta do Chefe, indagou dele acerca da decisão do Conselho. Este lhe comunicou que o assunto estava despertando o devido interesse e que, inclusive, tinha sido encaminhado para a Comissão de Análise, uma instância superior, restando apenas aguardar e ter paciência.

Dias depois o velho professor recebeu formalmente, por intermédio de um Memorando, a notícia da desativação da sua linha de pesquisa. Novo protesto. Nova atitude do dirigente de encaminhar, para escalões superiores, sua queixa. Nova espera. E, como não poderia deixar de ser, nova retaliação: as decisões acerca da rotina futura acerca das relações entre professores e alunos de sua disciplina foram tomadas sem seu conhecimento, sem sua participação.

E o velho professor, no atual estado-de-coisas, ao perceber o esvaziamento profissional para o qual o encaminha o Sistema, passou a duvidar, inclusive, de si mesmo: “será que tudo isso não é o resultado da aplicação dos meios que são usados para afastar aqueles que, como eu, já estão próximos da aposentadoria, abrindo espaço para o “sangue novo” dos “inocentes úteis” que assumiam os paradigmas que lhes eram impostos com questionamentos meramente formais? Lembrou-se de uma antiga tia, professora universitária assim como ele, que se queixava amargamente, pouco tempo antes de sua aposentadoria, de como estava sendo deixada, deliberadamente, para trás em tudo que dizia respeito ao Departamento no qual estava lotada.

Como também se perguntou, muitas vezes, acerca de como o Sistema agia com outras pessoas, individualmente demarcadas, que eram seus opositores, por essa ou aquela circunstância pessoal. Lembrou-se de um amigo que encetara uma guerra solitária e inútil contra o Tribunal de Contas do seu Estado; outro às voltas com o Ministério Público Estadual; outro enredado nas malhas do Tribunal de Justiça; outro sendo massacrado, lentamente, na burocracia da Prefeitura Municipal. Por fim, outro, a quem a posição do seu Sindicato, oportunista e alienada, condenava ao isolamento. Todos vítimas, todos impotentes, todos derrotados.

“Que fazer”, perguntou-se muitas e muitas vezes. Tentar ser um predador, mesmo com os dentes gastos? Imaginar que a experiência compensa o passar do tempo e ir á luta? Ou deixar que tudo passe, sobrevivendo no dia-a-dia, sem se preocupar com o amanhã, agindo como a grande maioria age, engolindo o sapo nosso de cada hora e seguindo em frente? “Não há resposta”, concluiu desanimado. “O Sistema vence sempre”. “É mesmo seguir em frente.” “Caminhante, o caminho se faz ao caminhar”, consolava-se, enquanto a moenda prosseguia, implacável, até que nem o pó de seus ossos existisse mais. Nem o de todos os que viessem pela frente, meras peças de reposição.

Pois a idéia precede a ação, não há ação no vazio da mente, e assim emerge o sistema: uma idéia mutante, uma idéia fora do sistema anterior, fora do padrão, uma idéia que é um vírus em busca de um ambiente fértil no qual se replique, se desenvolva. Um “meme”.

Quando o primeiro ser humano cercou uma área de terra e afirmou que ela lhe pertencia, eis que surge uma idéia-mutante. Uma vez tendo surgido, e sobrevivido, atraiu outras idéias que puderam a ela se conectar, a mutação funcionando como atrator, ensejando o surgimento de uma rede. A rede é o Sistema. O Sistema é idéias e homens. O Sistema passa a se expandir na medida em que supera os obstáculos à sua expansão. Assim foi com o rock; assim foi com o futebol; assim foi com o protestantismo; assim foi, no Direito, com o Positivismo; assim foi com o cálculo integral.

Sistemas destroem Sistemas. O Coronelismo se foi; o Feudalismo se foi; o Cangaço se foi; Roma se foi; todos eles Sistemas que entraram em colapso.

Tudo há de ir, um dia. Enquanto isso, na moenda da vida, homens e idéias são triturados.