sábado, 5 de fevereiro de 2011

DE BORGES A DUMAS, PASSANDO POR CARLYLE

Alexandre Dumas

Honório de Medeiros

Em “Ficções”, Borges pondera:

“Desvario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas páginas uma idéia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que estes livros já existem e apresentar um resumo, um comentário. Assim procedeu Carlyle em "Sartor Resatus" (...) Mais razoável, inepto, ocioso, preferi a escrita de notas sobre livros imaginários."

Borges cita Carlyle, de quem, possivelmente absorveu a técnica.

Entretanto Dumas pai, que foi contemporâneo do célebre ensaísta, também a utilizou. Em “Os Quarenta e Cinco”, lá para as tantas, ao relatar uma correspondência enviada por Chicot a Henrique III e comentar a excentricidade do seu estilo, convida: “Quem quiser ter conhecimento dela encontra-la-á nas Memórias de l’Étoile”.

Ou, de fato, terão existido essas Memórias de l’Étoile e elas ocupam algum escaninho empoeirado do Cemitério dos Livros Esquecidos que Carlos Ruiz Zafón localiza em Barcelona?

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

HANS KELSEN

Hans Kelsen
direitovn.blogspot.com

Honório de Medeiros

Aprendi a me interessar pelo Direito graças a Hans Kelsen e os japoneses. O primeiro me apresentou, pela primeira vez, o Direito enquanto um Objeto que pode ser pensado em si mesmo; os outros me mostraram que um técnico pode transformar seu domínio em arte, como o fazem os artesãos que constroem as espadas japonesas.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

IMPOSTO SOBRE A RENDA

Honório de Medeiros

Está prestes a chegar a hora da tortura anual: a declaração do imposto sobre a renda.

Nós, da classe média, como sempre, assistimos passivos o massacre feito pelo Governo: em algum lugar do cérebro surge uma vontade inicial de se revoltar, mas, breve, retornamos à nossa passividade natural, tipicamente brasileira.

No nosso país não pagam imposto sobre a renda os muito pobres e os muito ricos. Os muito pobres por razões óbvias. Os muito ricos por que se beneficiam das brechas da lei, das facilidades legais, da impunidade onipresente. Ou pagam, mas repassam o ônus para nós, a classe média. E o Governo, ah!, o Governo acha mais fácil tributar na fonte ou expropriar a passiva e inerte classe média.

Essa nossa passividade não é genética, como pensam alguns sociólogos de meia-tijela. Não somos assim por que resultamos do cruzamento de brancos portugueses de baixíssima qualidade, negros indolentes e índios preguiçosos ou mal-acostumados. Nada disso é verdade. Ao contrário. É difícil um povo que trabalhe mais para sobreviver que o brasileiro.

E tampouco somos cordiais além da medida, como disse Sérgio Buarque de Holanda. Ele, o grande Sérgio, talvez não tenha sido suficientemente crítico ao olhar para nossa história antes do Estado Novo de Getúlio. Uma história cheia de irridências, revoluções, insurgências, banditismo, cangaço e massacres. Taí Canudos, a cabanagem, o banditismo rural, o movimento farroupilha e tantos e tantos outros, para provar o que está sendo dito.

Com Getúlio e o Estado Novo acontece o que o Prof. Gilson Ricardo de Medeiros Pereira lembra a partir da obra de Raimundo Faoro “Os Donos do Poder”: o pacto das elites para dissolver a luta de classe através da “solução pelo compromisso”, ou seja, a permanente negociação através da qual a patuléia recebe, quando muito irada, uma ração extra de carne para acabar com o resmungo.

Não por outra razão vai ano e vem ano e os tubarões da elite continuam o colossal processo expropriatório através dos inocentes-inúteis que exercem cargos na estrutura do poder e se prestam a fazer o serviço sujo dos patrões.

Quem conhece a história recente deste país sabe, talvez até mesmo na própria pele, o que foi feito com o serviço público a partir de Collor. Quem não sabe por que não é servidor público, mas pertence à classe média para baixo com certeza sentiu e sente na pele quando precisou ou precisa da estrutura do Estado na saúde, educação e segurança pública.

E nós continuamos esperneando e votando nos mesmos candidatos de sempre!
















segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O RACIONALISMO CRÍTICO DE KARL POPPER E A TEORIA DAS FONTES DO DIREITO

Karl Popper

Honório de Medeiros

É possível discernir, na literatura acerca das fontes do Direito, dentro de uma perspectiva atenta a critérios estabelecidos pela filosofia, mais especificamente pela epistemologia, uma dicotomia, quanto às teorias contemporâneas acerca das fontes do Direito, entre metafísica e ciência. Trata-se, por exemplo, de um lado, das variadas teorias de cunho jusnaturalista ou positivista em sentido estrito, e do outro, aquelas oriundas da sociologia jurídica propriamente dita.

Nesse sentido uma pesquisa a ser elaborada a partir da aplicação da contribuição do racionalismo crítico popperiano, principalmente no que diz respeito a sua epistemologia, às teorias existentes acerca das fontes do Direito pode não somente esclarecer alguns conceitos básicos nelas utilizados, como apresentar instrumentos de caráter demarcatório, topológico, que permitam a apresentação de uma proposta cujo cerne seja respaldável pela ciência.

Evidentemente, dentro de um contexto mais geral, trata-se de inserir o resultado da pesquisa em uma discussão onipresente, no que diz respeito às fontes do Direito. Essa inserção, uma vez conseguida, tendo sido ratificada pela comunidade acadêmica, traria o campo epistemológico, que é seu habitat, para o âmbito da questão fulcral em relação ao Direito, qual seja o entendimento relativo ao seu nascimento.

Uma vez entendido que somente é possível avançar no que concerne à teoria acerca das fontes do Direito quando, a partir da perspectiva de uma epistemologia claramente definida, construir-se uma teoria científica demarcada da metafísica, como conseqüência à produção intelectual relacionada ao tema poderá apresentar, do ponto de vista prático, proposições passíveis de serem submetidas aos critérios da refutabilidade e, assim, serem aceitas como verdades, mesmo que conjecturais, científicas.
 
É possível, conclui-se, que a partir do racionalismo crítico de Popper, e utilizando-se o instrumental teórico por ele elaborado, apresentar-se uma proposta teórica acerca da fonte do Direito. Proposta essa que, evidentemente, estará submetida aos rigorosos critérios que constituem a epistemologia a qual deu ele seu nome. E que, se verdadeira, concorrerá para dissipar os véus que encobrem o objeto próprio da pesquisa, qual seja, a fonte do Direito.

sábado, 29 de janeiro de 2011

A MORTE DE ISAÍAS ARRUDA

Isaias Arruda

Prof. José Cícero.
Escritor, Pesquisador e Poeta.
Secretário de Cultura de Aurora, Ce.
TEXTO NA ÍNTEGRA: jcaurora.blogspot.com

A tarde estava cinzenta naquela Aurora pacata e provinciana de 1928. Uma enorme sensação de tranqüilidade cobria os semblantes dos viajantes, assim como o coração e o pensamento da multidão que se aglomerava na pedra da estação. Uma cena comum a todas as cidades interioranas atendidas pelo velho trem da Rede Ferroviária Cearense(RVC). Nuvens cor de chumbo em formação pareciam prenunciar no céu daquela Aurora antiga e calma, algo diferente prestes a ocorrer: uma tragédia.
 
Naquela tardezinha quase insossa de sábado, dia 4 de agosto de 1928 quando muitos já se esqueciam dos episódios um ano antes relacionado à presença do rei do cangaço na terrinha; o velho aparelho do telégrafo da RVC de novo estava prestes a receber no código morse um telegrama diferente. Um comunicado estranho; digamos que chave, para todos os desdobramentos do acontecimento dramático que se seguira ao fato: “Antonio, algodão hoje sobe!”. Uma missiva quase enigmática considerando que o algodão – o ouro branco d’Aurora faria sempre o sentido contrário, ou seja, descia. E o seu preço no mercado há muito era de todos conhecido.

Porém, aquela mensagem codificada não seria de todos estranha. Havia um destino e um desiderato certo: surpreender o coronel. Dizia muito mais do que ali estava escrito de modo lacônico... A estação de Aurora estava repleta de gente. Um acontecimento que se tornara comum deste a sua inauguração oito anos antes em 7 de setembro de 1920.

E a cronologia do momento seguinte, provaria depois para todos que era um crime. Um atentado violento à ordem e a vida em nome da vingança e da intolerância. Uma intriga passada à limpo, expressa na força da violência e da ignorância em detrimento da razão e da justiça. Sinais de uma época densamente marcada pelo poder de fogo do coronelismo oligárquico, engendrado pelos mais temíveis e truculentos líderes políticos que o Cariri cearense já experimentou. Um período onde a lei no mais das vezes era a do mais forte e a justiça quase sempre era feita pelas próprias mãos, em geral, dos poderosos.

Naquele sábado, de tarde escura de agosto, a estação de Aurora não tardaria a ser palco de um episódio que marcaria à história do Cariri e do Ceará para sempre, vez que envolveria, aquele que foi certamente o mais famoso e temível chefe político da região: o coronel Isaias Arruda. Filho do lugar, ex-delegado, agora prefeito pela força da vizinha Missão Velha. De quebra, o maior dos coiteiros de Lampião no interior cearense. Um autêntico mantenedor de jagunços e hábil negociador político junto aos grandes da capital.

O relógio do prédio apontava 14h25min quando, finalmente, todos puderam escutar o apito estridente da máquina a ecoar no horizonte. Apenas Sabina entretida demais com o seu café não se deu conta do acontecido. Todos, de repente voltaram suas atenções na direção do corte-grande lá para as bandas do alto da cruz, do sito Frade. O trem da Fortaleza vinha ligeiro beirando o rio Salgado.

Exímios chapeados transportavam com pressa e celeridade grandes caixotes, pacotes e outros fardos de mercadorias. Uns descian para o armazém da RVC outros subian para os vagões do trem com destino ao Crato. Animais, peças de madeira, artesanato, aguardente, rapadura, oiticica, panelas de barro. O trem acelerava a curiosidade, tanto quanto a economia daquela terra.

Mas de repente o som de um tiro seco ribombeou no ar. Quebrando a normalidade natural daquele acontecimento diário. Em seguida vários outros disparos puderam ser ouvidos no interior do segundo vagão da primeira classe. Talvez sete ou oito no total... Até hoje ninguém sabe ao certo. Um silêncio quase sepulcral se abateu na plataforma por alguns instantes que pareceram eternos. Somente o ronco da locomotiva estacionada deforfronte a caixa d’água. Em seguida uma correria...

Vozes diziam tratar-se de uma discussão. Três homens saíram atracados e em seguida correram no sentido contrário do vagão. Uma disparada em direção do armazém e depois para o beco da antiga rua que dava para o cemitério. Um quarto homem um tanto elegante, bem tratado, gestos aparentemente finos surgiu do segundo vagão da primeira classe. Vestindo impecavelmente um linho branco, ele pisou de modo esquisito e desaprumado o piso, a pedra da estação. Alguns passos apenas e cambaleando fitou a multidão como quem quisesse dizer algo. Não foi possível. Sangrando e com a mão direita colada ao peito chamava baixinho pelo primo. O linho branco do seu terno agora começava a se tingir de vermelho. Seus sapatos de cor marrom e bem polidos contrastavam com o vermelho escuro do seu próprio sangue formando porças na plataforma. Era o coronel Isaias Arruda, chefe político, prefeito da Missão Velha. Homem afamado em toda região e na capital do estado. Devagar caiu ao chão da plataforma ainda com arma junta ao cinto da calça. Não teve tempo de usá-la.

Alguém saindo de dentro do vagão posterior se aproxima dele e forra o chão da pedra com um jornal que lia; edição do dia 3. Seu braço esquerdo e parte superior do tórax estavam em frangalhos. Ferimentos gravíssimos provocados pelos sete balanços com que fora atingido.O coronel ferido seriamente pronunciava baixinho como que cansado:

- Os irmãos paulinos me acertaram! Mas como é que nem o Viana nem ninguém me avisou que meus inimigos estavam aqui?! Bando de covardes...

E de chofre emendou:

- alguém me chame o farmacêutico! Foram os Paulinos, eles me acertaram... Bando de covardes!

Outros mais ousados e corajosos aos poucos foram se aproximando da vítima que gemia deitada ao solo da pedra sobre as folhas do jornal ‘O Ceará’. Enquanto isso, um pouco afastado da estação José Furtado(Nequinho de Milica) primo da vítima saíra em perseguição(ou fugindo) dos irmãos paulinos: Antonio e Francisco, responsáveis pelo atentado.

Levado para a residência de Augusto Jucá um antigo amigo na rua grande, Isaias foi socorrido, inicialmente por um farmacêutico - o único que existia na cidade. No dia seguinte dois médicos vindo de trole pela linha da RVC: Antenor Cavalcante e Sérgio Banhos atenderam o coronel. Porém, diante das gravidades dos ferimentos não tiveram como salvá-lo. Sendo que no dia 8 de abril uma quarta-feira às 6h da manhã, quatro dias após ser alvejado, Isaias Arruda faleceu como que por capricho do destino na terra em que nascera.

Rumores apontaram ter sido o assassinato uma vingança de Lampião pela traição do coronel um ano antes, durante a célebre tentativa de envenenamento do bando lampiônico e o histórico cerco de fogo do sítio Ipueiras, propriedade de Arruda em Aurora em cujo local Virgulino se arranchara por diversas vezes. Ocasião em que o rei do cangaço fugia das volantes após o fracasso da invasão de Mossoró, arquitetada sob as estratégias de Massilon Leite e financiada pelo próprio Isaias.

Mas o certo, segundo se provaria depois foi que os paulinos vingaram o assassinato do irmão mais velho João, morto numa emboscada no serrote d’Aurora pelos jagunços de Arruda no ano anterior.

Terminava ali de modo trágico, na estação ferroviária de Aurora a verdadeira saga de um dos mais temíveis e respeitados coronéis do Cariri - Isaias Arruda. Assim como sua rixa ferrenha contra os irmãos paulinos da Aurora.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

MANOELITO E A ARTE DE APRISIONAR O INSTANTE

Honório de Medeiros

Algum tempo atrás o Centro Mossoroense promoveu, em Natal, uma exposição com pequena parte do acervo fotográfico de Manoelito. Ao mesmo tempo, prestou-lhe uma homenagem através de seus descendentes. E os mossoroenses, além de outros interessados, puderam constatar seu talento através das fotografias expostas na Capitania das Artes.

Vivo fosse talvez Manoelito tivesse encarado com ressalvas as fotografias escolhidas para a exposição. Faltaram aquelas que melhor diziam de sua arte: os tipos populares, os nus artísticos, a própria cidade.

Sim, porque já naquela época, ou por isso mesmo, ele construiu um legado contemporâneo do futuro - em termos de arte os conteúdos como o querem os filósofos ditam a forma - jamais vice-versa.

Embora seja compreensivo a causa do Centro Mossoroense ter escolhido as fotografias de membros das antigas famílias da cidade para o vernissage, não seria demais a lembrança do caráter paroquiano dessa escolha. No final das contas a exposição, que pretendia homenagear Manoelito, transformou-se numa homenagem de mossoroenses a mossoroenses através das fotografias que ele compôs.

Assim é que não se via outra coisa, na Capitania das Artes, senão mossoroenses procurando a si mesmo e a seus ancestrais nas fotos expostas. Um fato no mínimo curioso para um evento aberto ao público para homenagear a arte - não a memória por ele construída - de um artista finalmente justamente lembrado.

Não importa. De qualquer maneira a homenagem, merecida, foi feita.

E o melhor do acontecimento foi ter sido chamado a atenção dos próprios mossoroenses para o valor incalculável do acervo doado pela família de Manoelito ao município de Mossoró. Não é à-toa a importância que estudiosos das grandes universidades do sul lhe dão. Tornado público, talvez seja mais difícil sua destruição, embora não haja mais como recuperar o muito que já se perdeu em decorrência da incúria dos órgãos públicos.

Saliente-se que o valor da obra de Manoelito não reside apenas no aspecto histórico. Se, através das lentes de suas máquinas fotográficas, captou e registrou quase cinqüenta anos da vida de Mossoró, muito mais se torna fundamental seu trabalho quando o observamos a partir de uma perspectiva científica e, com os olhos de estudiosos, agradecemos sua contribuição para entendermos a evolução de uma cidade com as características de Mossoró.

Ou seja, o instante que Manoelito aprisionou é, aos olhos do cientista, um imenso objeto de estudo a ser desvendado e compreendido. Lá estão, à sua espera, congeladas no espaço e no tempo, com arte, imagens que revelam fenômenos históricos, sociológicos, econômicos. Debruçados sobre eles, assim como se debruçaram sobre as pinturas, as estátuas, a arte, enfim, dos antigos, os estudiosos construíram a história da humanidade.

Entretanto, mais que alguém desejando fazer o registro de várias épocas, Manoelito construiu arte. Neste aspecto, não se sabe se sua vida imitou a arte, ou o contrário.

Como todo artista, estava à frente de seu tempo não só no que diz respeito à arte em si, mas também ao seu estilo de vida. E parecia compreender essa perspectiva, quando transcendia a diuturnidade das exigências comerciais que lhe eram impostas pela necessidade de sobrevivência compondo fragmentos-imagens de uma beleza sem par, mesmo se somente lhe era exigido o aprisionamento daquele instante específico através de uma fotografia.

Mas ele não fotografava, compunha. Transformava o árido em fértil, o cinzento em festa para os olhos, o jogo de sombras em delírios de arte. Repousa sobre o meu birô de trabalho uma foto de minha mãe, feita por ele, onde nela está estampado, com rara felicidade, o melhor de seu talento. Não podia ser diferente: virou lenda a exigência e rispidez com a qual, mesmo no tumulto de casamentos ou outras festas, produzia as fotografias a ele encomendadas.

E, compondo, reafirmou a crença - pelo menos para uns poucos - na qual somente os artistas como ele, antenas da raça, ungido dos deuses, conseguem tornar-se eternos.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O DIREITO ENQUANTO INSTÂNCIA DO PODER POLÍTICO

linde69.blogspot.com

Honório de Medeiros
É possível discernir na literatura acerca do campo jurídico a presença de dois paradigmas interrelacionados que cumprem um papel ideológica de ocultamento: o primeiro diz respeito à suposta autonomia do Direito enquanto Objeto Cognoscível; o segundo afirma a existência de uma ciência peculiar para apreendê-lo, qual seja a ciência jurídica, ambos em contraponto a uma perspectiva externa ao epifenômeno, com caráter sociológico, fulcrada nas regras do método científico e atenta aos postulados básicos de Émile Durkheim.

A presença desses dois paradigmas e o papel ideológica que lhes são próprios se desdobram em complexas estratégias adaptativas próprias de relações de domínio que pretendem se manter ocultas: a aparente autonomia do campo jurídico é “justificada” através de uma experiência específica dos operadores do campo jurídico; a suposta cientificidade do Direito e da ação dos seus cientistas é defendida via enunciados lógicos inferidos a partir de postulados de caráter metafísico que são apresentados como verdades auto-evidentes.

Essas estratégias adaptativas são instrumentais embora teóricas e obedecem à lógica do Poder Político que as engendra ou cria condições para que sejam engendradas e buscam afastar a possibilidade de trazer, à tona, o caráter autoritário da fonte hegemônica de produção, interpretação e aplicação da norma jurídica.

Nesse sentido uma teoria sociológico-política do campo jurídico que pretenda demonstrar ser o Direito uma instância do Poder Político necessita estabelecer com precisão através de quais percursos teóricos isso é possível.

É necessário, também, demonstrar a inexistência de sua autonomia científica.

É preciso, ainda, estabelecer o Objeto da Sociologia Jurídica, subsumi-lo na Sociologia Política e, por fim, integrá-los na Sociologia Geral, para então, fazendo o percurso inverso, esclarecer qual o aparato teórico apropriado e como dever ser manejado, quando do estudo do campo jurídico, para poder apreendê-lo, como é preciso demonstrar segundo critérios da teoria do metido científico a fragilidade da pesquisa que se pretende própria de uma Ciência do Direito vazada nos moldes da Dogmática Jurídica ou Teoria Geral do Direito.

Por fim, estabelecidas as premissas, produzidas as conclusões, demonstrar o papel que o Poder Político reserva ao Direito: o de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica de acordo com uma oculta estratégia própria de obtenção e manutenção de uma configuração de relações de domínio.

domingo, 16 de janeiro de 2011

COMADRE

cidoportugues.blogspot.com

Honório de Medeiros

O que mais me impressionava em Comadre, no aspecto físico, era seu rosto. Nele, o sol e o suor escavaram miríades de rugas finas a recortar sua pele morena, gretada, compondo uma teia que aprisionava nosso olhar. Depois, as mãos. Mãos como garras. Fortes. Calosas. Descoradas por anos a fio de sabão e água. Por fim sua vestimenta: um vestido, cor clara, de chita humilde, sempre o mesmo modelo, de mangas compridas – que ela, por razões óbvias, usava arregaçadas – que ia até o tornozelo, tudo encimado por uma espécie de coroa de pano branco de margens largas, propositadamente feitas para receber e acomodar o saco de roupas.

Pois Comadre, como se pode perceber era a lavadeira não somente lá de casa, mas de praticamente toda a família. E estava sempre feliz. Na minha meninice de bicho arredio, dado aos livros e devaneios, alternados por impulsos nervosos de convivência alegre, sua gargalhada compunha o sábado, assim como o carneiro guisado e o cuscuz molhado na graxa na hora do almoço.

Lá em casa, mais aos sábados do em qualquer outro dia por conta da feira, até o meio da tarde o vai-e-vem e converseiro era permanente. Entrava-se e saia-se. Todos confluíam para a área-de-serviço, contígua à cozinha. Era o leiteiro, a lavadeira, o pessoal que vinha com a feira semanal, parentes de outras cidades, aderentes, contraparentes, amigos, amigos dos amigos. Todos embalados por uma xícara de café e pão com manteiga.

Conversava-se, cantava-se, declamava-se, discutia-se, fofocava-se, trocavam-se receitas de bolos e de remédios. Naquele local, sem que me desse conta naquela época, a solidariedade fincava raízes e se propagava: todos se uniam para se amparar mutuamente. Escutavam-se mágoas, partilhavam-se alegrias, construía-se teimosamente a delicada trama de uma vida ancestral, fadada a desaparecer, na qual todos formavam a unidade, e a unidade era a sobrevivência.

Comadre, então, como eu diria muito tempo depois, quando o passado passou a interromper cada vez mais meu presente, era um modelo de sobrevivência. Paupérrima, viúva ainda jovem, criou sua dezena de filhos lavando roupa e sempre com aquela alegria de viver que me deixa, ainda hoje, perplexo e angustiado. Poderia ter sido um personagem de um Tolstoi tardio, quando o cristianismo primitivo passou a ser sua segunda natureza.

Vezes sem conta, quando próximo de sua tão sonhada aposentadoria, eu lhe perguntei: “Comadre, por que a senhora é tão feliz?” “Meu filho”, respondia-me com aquele seu sorriso luminoso estampado na face engelhada, “Deus não nos quer tristes.” “Mas Comadre”, retorquia eu, “e o sofrimento que nós vemos no mundo?” “E a violência, a fome, as doenças...?” “Olhe, meu filho, como posso duvidar de Deus? Ou acredito ou não acredito.” E seguia lépida e fagueira, a chistar, trouxa na cabeça, alegre, feliz, sem sequer desconfiar que sua lógica simples dera um nó em toda a minha metafísica.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

DE CANGAÇO E CANGACEIRISMO

Cangaceiro (chiquitabacana.zip.net)

Honório de Medeiros

O cangaço-atividade foi banditismo, mas nem todo banditismo foi cangaço-atividade. Banditismo por que em beligerância com a ordem legal de então. Banditismo por que tiveram como vítima principal o próprio povo que fornecia seus quadros. O cangaço-atividade foi banditismo de grupo. O bandido solitário não era cangaceiro – não o denominava assim a tradição nem a história. Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião foram chefes de bando. Aqui o termo “cangaço” é usado no sentido que lhe dá Luis da Câmara Cascudo : “Tomar o cangaço, viver no cangaço, andar no cangaço, debaixo do cangaço são sinônimos de bandoleiro, assaltador profissional, ladrão de mão armada, bandido.” Sentido que somente permite sua intelecção se acompanhado da outra definição que também é lavra do etnólogo e folclorista: “Para o sertanejo é o preparo, carrego, aviamento, parafernália do cangaceiro, inseparável e característica, armas, munições, bornais, bisacos com suprimentos, balas, alimentos secos, meizinhas tradicionais, uma muda de roupa, etc. ”

O cangaço-atividade foi banditismo sertanejo de grupo. Não apenas rural, termo amplo que engloba tudo quanto não litorâneo, ao qual se vinculam alguns historiadores por não conhecerem a realidade específica desta região do Nordeste brasileiro. Banditismo nordestino sertanejo de grupo – há bandidos nordestinos de grupo que não são sertanejos, e há bandidos sertanejos de grupo que não são nordestinos - que rechaça, de pronto, todos quantos não situados naquele tempo específico que vai do final do século dezenove a meados do século vinte e todos quantos não situados naquele espaço específico do Sertão nordestino compreendido entre Bahia e Ceará. Tempo específico: os bandidos de hoje não são cangaceiros por que, dentre outras, não andam com cangaço-objeto. Lugar específico: os bandidos de outras regiões não foram cangaceiros por que, dentre outras, não andaram com cangaço-objeto.

Não somente banditismo brasileiro nordestino sertanejo de grupo existente entre o final do século XIX e meados do século XX cujos integrantes usam o cangaço - essa parafernália inseparável e característica, como afirma Luís da Câmara Cascudo. Mesmo aqui ainda é preciso restringir para compreender: como disse Fenelon Almeida , “os volantes em tudo se pareciam com os cangaceiros.” Os jagunços também. Ambos usavam o cangaço-objeto. Todo cangaceiro usava cangaço-objeto, mas nem todo aquele que usava cangaço-objeto era cangaceiro. As volantes usavam o cangaço-objeto, eram nômades e atuavam com o aval do Estado, os jagunços usavam o cangaço-objeto, não eram nômades e submetiam-se aos coronéis. Mas tanto as volantes quanto os jagunços não possuíam coiteiros. O cangaço-atividade pressupõe a perseguição pelo Governo, a insubmissão, o nomadismo e o suporte dos coiteiros.

Entretanto todos os bandidos brasileiros nordestinos sertanejos de grupo existentes entre o final do século XIX e meados do século XX perseguidos pelos Governos, insubmissos, nômades, com suporte dado por coiteiros que usavam o cangaço eram cangaceiros? Não. Tomando-se como paradigma os bandos de Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião e Corisco, não. Estes no dizer de Maria Isaura Pereira de Queiroz são “grupos de homens armados liderados por um chefe, que se mantinham errantes, isto é, sem domicílio fixo, vivendo de assaltos e saques, e não se ligando permanentemente a nenhum chefe político ou chefe de grande parentela.” Ou seja: os cangaceiros viviam de assaltos e saques. Assaltos, para sintetizar, por que quem saqueia assalta. Não somente assaltos, porém. Extorsão também. E, às vezes, embora não comumente, alugando suas armas a algum Coronel. Concluindo, por fim: sobreviviam à custa do seu banditismo.

Portanto temos: cangaceiros foram bandidos brasileiros nordestinos sertanejos de grupo existentes entre o final do século XIX e meados do século XX cujos integrantes usavam o cangaço-objeto, eram perseguidos pelos governos, insubmissos, nômades, com suporte dado por coiteiros, e que viviam à custa de sua atividade criminosa.

Não por outra razão Jesuíno Brilhante jamais foi cangaceiro.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

COMO FAZER UM PLANEJAMENTO ESTRATÉGICO

Por Honório de Medeiros

I Defina o objetivo/meta

1) Entenda ou explique por que você precisa de um planejamento estratégico.

a) Com uma estratégia você garante que as decisões do dia-a-dia se adaptem aos seus interesses de longo prazo. Se você quer atingir o máximo de aperfeiçoamento profissional possível, e escolheu fazer uma pós-graduação na França, em sua área específica, e somente possui tempo disponível para fazer um curso de línguas, não vai trocá-lo por outro de orçamento.

b) Sem uma estratégia, as decisões de hoje podem prejudicar resultados futuros. Se você está economizando para viajar, por que vai fazer uma viagem turística?

c) A estratégia também estimula o trabalho conjunto para alcançar objetivos comuns. Se eu e minha esposa sabemos o que queremos para o futuro, individualmente tomaremos decisões comprometidas com esse objetivo.

2) Faça a análise da situação

a) Durante a fase de análise, deve-se reunir a maior quantidade possível de informação (publicações, internet, conversas com outras pessoas, contatos) acerca do tema para ajudar na tomada de decisão. O objetivo é gerar um relatório claro dos pontos fortes e fracos de sua posição atual, assim como uma lista de oportunidades (indicações dadas pelas circunstâncias de qual caminho deve ser trilhado) para o futuro.

3) O administrador define a missão e/ou o objetivo geral. No caso dos objetivos mais específicos, a definição deve ser resultado de discussão com superiores (adjuntos e coordenadores), especialistas e apoio. A lista de objetivos deve ser curta, prática, fácil de entender e voltada para a ação.

II Determine os pontos fortes e fracos

III Estabeleça os recursos humanos

1) Envolva todos quanto forem necessários para o sucesso do plano no planejamento, para que se sintam parte do processo.

2) Chame, para as reuniões, pessoas que têm interesse ou influência sobre a nova estratégia: superior (assegura que o novo plano tem consistência em relação à meta; o especialista (fornece conhecimentos especializados sobre pontos e oportunidades que afetam o plano); apoio (presta ajuda ao plano estratégico fornecendo recursos ou orçamento); cliente (oferece informações preciosas quanto a futuras exigências ou novas oportunidades).

3) Não forme equipes grandes demais.

4) Como obter empenho:

a) Fazer com que todos concordem que é necessário uma nova estratégia.

b) Fazer com que todos se sintam confiantes com o novo plano.

c) Fazer com que todos se envolvam com o novo plano.

d) Informar que dificuldades operacionais não serão desculpas quanto ao descumprimento do cronograma.

e) Enfatizar a necessidade de trabalhar com dados corretos.

f) Instituir incentivos

g) Reconhecer o trabalho de cada equipe

h) Elogiar na presença de superiores

i) Destacar publicamente o servidor

5) Estabelecer limites a ação de cada membro da equipe, para evitar a dispersão de forças: um fornecedor de alimentos não pode preocupar-se com assalto a alvos.

6) Comunique-se claramente com cada integrante do processo. Se as pessoas não sabem o que queremos, não podem nos ajudar. A elas deve ser entregue: relatório detalhado (Constituição, Bíblia); relatório resumido; uma apresentação através de data-show; informativos acerca do progresso ou atraso do plano; correspondência e e-mails.

IV Defina prioridades

1) É preciso definir o foco: aquela ação que merece tempo e recursos. Mudando o contexto, muda-se o foco. Dirá o foco o ambiente interno (a equipe) e o externo (o público alvo envolvido).

2) O foco diz o programa, se permanente, ou projeto, se transitório

V Faça um orçamento

VI Estabeleça um sistema de acompanhamento do plano

1) Veja se todos conhecem o plano estratégico.

2) Faça um cronograma/organograma/

3) Atribua a alguém o papel de analista de performances ou auditor.

4) Altere o rumo quando e onde seja necessário, a partir da avaliação periódica mensal da equipe. O ponto de partida é sempre o mais urgente.

Ver o Estadão de 12 de fevereiro de 2007 e matéria acerca do método de gestão pública utilizado por Vicente Falconi, do INDG – Instituto de Desenvolvimento Gerencial.

Trata-se do PFCA: Planejar, Fazer, Checar, Agir. Eu agrego, no P, de Planejar: O Que, Por Que, Como e Quando.

domingo, 12 de dezembro de 2010

PSICOLOGIA EVOLUTIVA

Hieronymus Bosch

Honório de Medeiros

Apesar da chamada “teoria do design inteligente”, que diz ser insuficiente o darwinismo enquanto explicação para o surgimento e propagação da vida na terra, e depois de abençoada por Sua Santidade o Papa, a verdade é que a teoria da evolução vai, aos poucos, se firmando como a única das macro-teorias oriundas do século XIX que sobrevive integralmente às críticas da comunidade científica. As outras, como a psicanálise, nunca recebeu “status” científico; o marxismo ruiu com o muro de Berlim e permanece por terra; e a teoria da relatividade, de Einstein, não conseguiu superar suas divergências fundamentais com a física quântica.

Um dos rebentos mais interessantes do darwinismo, chamemo-lo assim, é a psicologia evolutiva. Como se pode depreender, trata-se de uma tentativa de explicação da psique humana utilizando-se as ferramentas próprias da teoria da evolução. Neste campo específico, nada tem suscitado tanto debate quanto às afirmações feitas pela psicologia evolutiva quanto a amor e sexo. Por exemplo: a psicologia evolutiva explica que a traição, por parte do homem, é uma herança genética que o impele à tentativa de disseminar seus genes! Isso é algo ancestral – na aurora da história do homem, quando ele vagava pela terra caçando e coletando raízes e frutas, foram selecionados para sobreviver aqueles que tinham esse tipo de comportamento; quanto mais braços para a defesa e a procura de alimentos, melhor para a tribo. A mulher, por outro lado, como era obrigada a conduzir, durante nove meses, sua gravidez, ficava estética e organicamente inviável para o jogo sexual, o que abria o espaço para a fecundação de outras.

Essa propensão, diz a teoria da evolução, não é um fatalismo, até mesmo por que o homem que reina inconteste em pleno século XXI, para o bem ou para o mal, foi capaz de construir um aparato intelectual que lhe permitiu fazer opções de caráter ético fundamentais para assegurar sua sobrevivência. Nesse sentido a moral é uma estratégia humana, uma espécie de instrumento adaptativo que lhe permite continuar sua saga sobre a face da Terra. Ou seja, embora haja essa tendência individualmente falando, enquanto espécie o homem aposta na fidelidade. Não é assim que acontece se prestarmos bem atenção ao que se passa ao nosso redor?

Dessa forma a psicologia evolutiva explica muitas condutas masculinas e femininas. Uma delas, bastante curiosa, por sinal, é a chamada “Síndrome da Rejeição”. Por que a mulher, por exemplo, parece se interessar mais pelos homens que a rejeitam? A resposta seria que a mulher, programada geneticamente para lidar com o interesse masculino, ao sentir-se desprezada, sente ameaçada sua capacidade de interessar sexualmente e, assim, procriar. Isso por que nosso objetivo básico, segundo a teoria da evolução, é propagar nossos genes. Esta teoria não explica nosso amor desmesurado por nossos filhos?

Se forem polêmicas as afirmações feitas pela psicologia evolutiva no que diz respeito ao relacionamento amoroso, imaginem o que não se discute quanto à política, mais especificamente ao Poder. Esta, entretanto, já é outra história.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

UMA SEXTA FEIRA ENSOLARADA

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Honório de Medeiros

O carro foi parado ao lado da criança. Havia como que um assento de cimento – se é que se pode dizer assim – ao lado da banca de revistas. Mas ela não deu muita atenção ao carro, nem mesmo quando seus ocupantes saíram e um deles lhe fez cócegas na cabeça e passou apressado. A mãe, sentada, de cabeça baixa, cotovelo cravado nas pernas, tinha os olhos ocultos pela mão direita espalmada e não modificou sua postura para ver o que se passava ao seu redor. De relance pôde-se perceber que parecia insensível ao tráfego barulhento, enquanto sua mão esquerda segurava firmemente o pulso da criança.

Entraram na banca. Compraram jornais. Separaram, de comum acordo, um chocolate para ser dado à criança. Saíram. Nada mudara. Ao se aproximarem perceberam as roupas de ambas – singelas, mas compostas. Ofereceram o chocolate sem dizerem qualquer palavra. A mãozinha frágil o pegou, ávida, enquanto um “oba!” despertava a atenção da mãe. Esta, tirando a mão dos olhos e encarando os dois homens que observavam sua filha deixou a descoberto um rosto ainda jovem, banhado em lágrimas.

“Minha senhora”, perguntaram, “por que está chorando?” “Fome!”, respondeu.

A criança, de um louro amarelado que ressaltava sua ascendência negra, magrinha, magrinha, lambia, deliciada, o chocolate totalmente despido. Não se dava conta do que se passava ao seu lado. “Fome?”. Perguntaram novamente. “É”. “Não tenho vergonha em dizer”. “Os senhores sabem se tem alguma Casa de Apoio aqui perto?” “Tem uma logo naquela rua”, responderam. “Está fechada”. “Tem o Albergue”, ela continuou, “na descida da ladeira, mas ele cobra vinte reais para o pernoite e refeições”. Fez-se um silêncio incômodo, doloroso. Será que ali estava alguém querendo aplicar um golpe, explorando aquela infância comovente que agora brincava de lamber, um a um, os dedinhos sujos de chocolate?, eles se perguntaram. “Vim do interior no carro da Prefeitura trazer meu marido para o hospital de emergência, mas não posso ficar lá e ele só sai segunda”. Era uma sexta-feira radiante, ensolarada... “Eu ia ficar na casa do meu pai. Ele mora aqui, mas se mudou e não mandou seu endereço novo. O carro da Prefeitura só vem na segunda, o que vou fazer para dar de comer a essa criança? Pedir eu não peço. Falei com o motorista da Besta para ele nos levar que eu pagava lá. Ele disse que não fazia fiado”.

Enquanto falava, as lágrimas pingavam uma a uma no regaço do vestido. As mãos torciam uma à outra. A bolsa, preta, de material ordinário, flácida, vazia, separava-a da criança que então olhava, atenta, um pequeno jorro de água que brotava da torneira mal fechada e originava um pequeno córrego a deslizar por entre o capim limitado por pedras de contenção. Os olhos da mãe já há muito não encaravam nada nem ninguém. Estavam perdidos no vazio. O desabafo era para o mundo que a cercava. Eles apenas o desencadearam. Parecia alheada de tudo.

“Olhe”, disse um deles estendendo a mão que segurava a cédula. Ela olhou durante algum tempo antes de pegá-la. Abriram as portas do carro. “Como é o nome dos senhores?” Levantara-se, puxando a menina. “Por quê?” “Eu quero rezar pelos senhores”.

Foram. Pelo vidro retrovisor era possível perceber a imagem que se distanciava. Continuavam no mesmo lugar, imóveis, as duas, olhando o carro. Mesmo pelo espelho era possível perceber uma mão segurando, firmemente, a cédula, enquanto a outra não largava a criança que dava adeus, em câmara lenta – tão pequena, tão frágil – destacando-se delicadamente contra o cinza da banca de revistas.

domingo, 5 de dezembro de 2010

PLOTINO


Plotino

Honório de Medeiros

“É como se vc, estando dentro de um ambiente fechado, uma clausura, criasse uma saída e a utilizasse. Lá, do outro lado da saída, lhe espera um outro ambiente, também fechado, só que maior. Sua tarefa, agora, é criar outra saída, sair, entrar em outro ambiente ainda maior, criar outra saída, sempre, em uma escala exponencial, etc., etc.” disse-lhe eu.

“Não tem fim?”, me perguntou.

“A morte”, respondi-lhe, “que acaba com tudo ou lhe leva a um infinito que está além de todas as coisas, onde não há qualquer tipo de limite ao conhecimento”. “Agora sei o que significa aquela frase de Plotino, o vôo do solitário para o infinito”, continuei. “Nossa busca pelo conhecimento é sempre solitária, a morte nos liberta e nos remete ao infinito”.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

A LÓGICA PERVERSA DO OBREIRISMO


mundoemguerra.blogspot.com


Honório de Medeiros

Há uma lógica perversa induzindo o obreirismo (aqui usado, o termo, no sentido de privilegiar obras em detrimento de investimentos sociais) no administrador público. Essa lógica é mais perversa ainda por praticamente excluir a opção pelas políticas públicas.

Em primeiro lugar o obreirismo é conseqüência de uma demanda específica: a das grandes empresas de construção civil e de serviços – e suas agregadas – que precisam recuperar o montante investido nos candidatos por elas apoiados e, também, convenhamos, como conseqüência do fato de seus proprietários, o mais das vezes, serem integrantes, através de laços familiares ou de compadrio, das elites governantes.

Em segundo lugar o obreirismo é conseqüência de outra demanda específica: a necessidade de encher os cofres raspados das elites políticas vencedora dos pleitos eleitorais aos quais se candidataram, e construir reserva para as futuras demandas político-partidárias.

Em terceiro lugar o obreirismo é conseqüência de outra demanda específica: a de gerar condições de manutenção ou aquinhoamento financeiro dos quadros responsáveis pela gestão pública, sob a alegação (interna) de que eles não suportariam sobreviver com a remuneração miserável que lhes paga o exercício de seus cargos.

Esse círculo vicioso – a elite política ser financiada pelas obras e serviços e, como conseqüência, financia-las – consome o que sobra, no orçamento, quando pagos o custeio da máquina e a folha de pessoal. Na maioria das vezes praticamente não há sobra orçamentária para investimento e não por outro motivo a Lei de Responsabilidade Fiscal vem sendo sistematicamente desrespeitada. E engendra uma custosa publicidade com o objetivo de persuadir a sociedade acerca dos bons propósitos de toda obra e qualquer serviço que estejam sendo feitos.

Assim, toda e qualquer obra surge como decorrência de uma “demanda social” e destina-se ao “desenvolvimento sustentado”. Obras através das quais circula o capital financeiro das elites para perpetuar a expropriação da força de trabalho da classe média, que é quem paga, na verdade, os tributos nossos de cada dia. Flatus vocis, diriam os romanos... E as políticas públicas, tais como a luta pela erradicação do analfabetismo, queda nos índices de mortalidade infantil, melhoria na qualidade do ensino e na segurança pública, que não dão retorno financeiro – embora dêem retorno eleitoral (e como dão) – são deixadas de lado e nosso Brasil, este imenso Brasil que sobrevive às vezes milagrosamente apesar do Estado, continua um dos líderes mundiais da exclusão social.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

UMA ESPERANÇA VÃ


Honório de Medeiros

Abro espaço para o texto que transcrevo. Sei quem o fez; não sei para quem é destinado. Ou talvez saiba, mas prefira não dizê-lo.

"Você me pediu, se lembra?, que lhe escrevesse algo. Disse-me isso como quem estivesse entre a curiosidade de ser objeto, digamos, da atenção de alguém que escreve e, ao mesmo tempo, o desejo de ver o produto da minha suposta arte.”

“Eis aqui o resultado. Digo-lhe que foi difícil, porque ando destreinado em falar acerca dessas coisas que são tão importantes, mas, ao mesmo tempo tão simples. Não sei, talvez tenha eu, tenhamos nós, perdido a capacidade de percebermos a beleza no singelo, no trivial. Ou, quem sabe, possamos até possuir a noção dessa beleza, mas não sabemos transmiti-la sem parecermos artificiais...”

“Enfim, quero lhe falar de nós. De minhas esperanças já perdidas, quando o tema é você. Eu sei que você vai se desdobrar em negativas quando ler o que lhe escrevo. Serão essas negativas mera retórica. Desde há muito descobri que não há espaço para mim em seu mundo.”

“E digo a razão. Trata-se de algo chamado conveniência. Eu, quixotesco, lhe incomodo, como as réstias de sol atrapalham aqueles que delas fogem. Percebe você, por instinto, minha fragilidade - e ela não é compatível com os tempos modernos, porque oriunda de uma forma de sentir o mundo que vai desaparecendo.”

“Gostaria de lhe provar tudo isso que digo agora de uma forma precisa - para que você, dessa geração onde as verdades não admitem sequer o cinza, pudesse perceber o esforço heróico – me perdoe a imodéstia - para me adequar a um mundo onde ser romântico é uma questão de desempenho.”

“Não há como. Assim como me parece impossível apreender toda a gama de sentimentos que origina uma obra de arte, com certeza seria impossível lhe falar de coisas que somente teriam sentido dentro de certa realidade.”

“Você há de me desculpar se lhe desenho um mundo - o seu - tão pouco atraente aos olhos de quem talvez leia o que aqui se escreveu. Não é essa minha intenção. Até porque talvez somente me entenda quem foi contemporâneo de minhas ilusões, de meus sonhos. Percebo claramente que todos os outros lhe serão favoráveis nessa batalha inexistente. Afinal o mundo que vivemos, a realidade diária, toda essa complexa rede de pessoas, fatos e coisas que nos cerca tem sua dimensão amorosa própria e, com ela, uma nova maneira de lidar com o amor.”

“Nada mais incoerente, por exemplo, segundo os novos padrões, que esse texto. De que trata ele?, perguntarão os que o lerem. O que significa tudo isso?”

“E me pediriam: "sintetize"! Não há como, eu lhes diria. Não posso falar de algo como "saudade" sem comentar o quanto acho que esta palavra esteja fora de moda.”

“Assim, é acerca de esperanças vãs que lhe escrevo. Da minha esperança inútil de que você viesse ser minha, e eu, seu. Do meu desejo de sermos arquitetos de algo único - nosso amor - que haveria de ser uma ponte para o infinito. Da nossa criatividade inventando, para deleite próprio, uma tão grande cumplicidade, que permitiria nos comunicar através de um código criado somente para iniciados - nós dois. E da minha descrença na possibilidade de tudo isso, tão belo, acontecer.”

“Poderia lhe falar horas desse desejo de amor que sinto e, mesmo assim, não ficaria claro como conseguiríamos nos entender. Você, lógico, se defenderia alegando ser ele impossível. E elencaria estatísticas como provas. Ah, como é cruel a estatística! Minha resposta seria apenas uma: nossa capacidade de criar é infinita, somente quando criamos nos aproximamos dos deuses, e todos os obstáculos, quaisquer que sejam eles, que aparecerem, seriam comparados à nossa capacidade de lutar.”

“Você, entediada, diria: "não há mais amores assim; aliás, nunca houve". E, para não perder o ímpeto, talvez até colocasse a culpa em nós, os homens.”

“Eu me renderia, então. Mas antes de sair, lhe contaria a história que TAGORE nos deixou em "A Casa e o Mundo". Nela, o personagem principal percebe que o grande amor de sua vida está prestes a sucumbir à sedução passageira de um farsante. Afasta-se dela. Indagado, responde que somente estando livre ela poderá optar por um caminho que engrandeça seu (dele) sentimento. "Se ela for com o outro", diz, "permitiu-me descobrir uma verdade que, embora dolorosa, trar-me-á dignidade; se voltar, tê-lo-á feito de livre e espontânea vontade, e isso tornará seu (dela) amor ainda mais sólido."

“Adeus, então.”

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

CANGAÇO: ENTRE O SABER HISTÓRICO E O CONHECIMENTO ESCOLAR


Lampião, Rei do Cangaço

Honório de Medeiros

Uma vez que o espírito deste Fórum diz respeito a como o cangaço, enquanto epifenômeno, se faz presente no diálogo entre essas duas instâncias de conhecimento produzido, qual seja o saber histórico e o escolar, apresento, desde já, minha opinião, esperando suscitar questionamentos, controvérsias e, porque não dizer, críticas.

Creio firmemente que é por intermédio da crítica que conhecemos. A crítica no sentido grego do termo, não em seu sentido vulgar. A crítica que pressupõe um conhecimento existente previamente adquirido, fragmentação das expectativas em relação à utilização desse conhecimento, elaboração de novas teorias explicativas que hão de ser submetidas a testes seja no grande palco da vida, seja na Academia, e, enquanto resultado, um novo conhecimento retificado que estará, por sua vez, à disposição de novas retificações, em um processo para o qual não se conhece fim.

Não por outra razão, ao defender esse primado metodológico, recordo sempre uma frase de Dom Hélder Câmara, hoje tão esquecido, mas tão presente no nosso imaginário de contestação à ditadura de 64, naqueles anos de chumbo: “Me enriqueces quando discordas de mim”. Como recordo, e cito também, e sempre, Gaston Bachelard, filósofo e poeta francês: “O conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão”. Que venha a crítica, pois, para que eu possa reformar as minhas ilusões.

Considero, portanto, para iniciarmos, que o diálogo entre os dois saberes, o não-institucional e o institucional, ou saber histórico e conhecimento escolar, acerca do epifenômeno do cangaço, ainda é incipiente, apesar da importância do tema.

Uma das causas pela qual o cangaço não é ampla e profundamente discutido nas salas-de-aula é a resistência da Academia, chamemos assim a instância oficial de produção do saber científico, a aceita-lo e trata-lo como algo além de folclore. Aqui, folclore assume a proporção de um conhecimento menor, mera conseqüência superficial de leis naturais sociológicas precisas e demarcadas – estas sim, importantes, tais quais, exemplificando, a luta de classes.

O viés folclórico com o qual o cangaço é percebido pelo saber oficial releva, em larga escala, sua insistente presença histórica na contínua autoconstrução da própria identidade sertaneja, reforçando uma Paidéia ancestral que, entretanto, aos poucos, oferece sinais de fadiga, quiçá resultante do processo de globalização ao qual estamos submetidos.

Essa autoconstrução de uma Paidéia, de um “espírito de época”, processo calcado em fatos sociais – em outra linguagem podemos dizer episódios, acontecimentos, sucedidos, que reforçam seus arquétipos fundantes e elaboram uma identidade social, esse suposto conhecimento menor, digamos assim para mantermos a linha de raciocínio, são todos do nosso conhecimento sertanejo: ressaltam sua valentia; asseveram códigos de honra ancestrais; apontam bestialidades e crueldades desmedidas; relatam histórias e estórias de vinganças entre clãs; dizem da intervenção da justiça divina em assuntos terrenais; contam acerca de aparições, assombrações e fantasmas; falam do exercício do poder via baraço e cutelo; lembram casos de amor, traição e perdição; cantam tempos passados e glórias perdidas; tudo seja por intermédio do cordel, seja pelo canto dos violeiros; seja pelas toadas, desafios e repentes; seja via beatos e rezadeiras; seja pelos contadores de “causos” em conversas alpendradas após o sol se por nessas “quebradas do mundaréu” sertanejo; e, também, claro, através de toda a produção literária produzida de forma canhestra, artesanal, porém sincera, por uma legião de pesquisadores dos “acontecidos” do cangaço, que ao longo do tempo, pacientemente, coletaram e mesmo sem rigor científico, nos legaram um imenso acervo de informações alusivas aos cangaceiros.

É a esse imenso acervo, sobre as quais devemos nos debruçar com reverência, mas criticamente, todo esse acervo constituindo, por si somente, embora marginal ou periférico ao que supostamente importaria à burocracia das instâncias de produção do conhecimento, qual seja a discussão das grandes leis naturais sociológica, como a luta de classes já citada, uma caudalosa oportunidade de estudo e compreensão do espírito de um povo e de uma época, que a Academia resiste, embora eu saliente as honrosas e particulares exceções de sempre.

Ressalvo, com ênfase, que a nossa discussão cuida do diálogo entre o saber histórico e o conhecimento escolar, no que diz respeito ao cangaço. Não se trata, portanto, de criticar toda a imensa, complexa e bela construção acerca do cangaço empreendida pelos cantadores de viola, cordelistas, contadores de estórias, xilogravuristas, e poetas, dentre outros. Não. Muito pelo contrário. Diz respeito ao afastamento de parte considerável da Academia de toda essa produção coletiva sobre a qual devemos nos debruçar até com reverência, para melhor entendermos os movimentos sociais sertanejos nordestinos.

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Há muitos saberes, sabemos, e aquele acerca do qual estamos falando, torno a mencionar, diz respeito ao mundo da academia em relação ao cangaço e seu mundo, sua realidade, cultural ou física, sua “Paidéia”.

Penso em “Paidéia” no mesmo sentido que a ele atribui Werner Jaeger, quando se referiu ao “espírito” grego predominante nos séculos VIII a IV a.C. naquela Região geográfica fundamental para o nosso processo civilizatório. Penso em “espírito” da cultura sertaneja nordestina, e, assim, demarco o espaço territorial onde creio terem ocorrido os epifenômenos que, conectados entre si, quais sejam o coronelismo, o misticismo, a arte popular, e o cangaceirismo, constituem a face espiritual do nosso Sertão em certa e precisa dimensão histórica.

A resistência da Academia acontece, também, creio eu, na medida da fragilidade de parte, friso bem, de parcela da literatura acerca do cangaço no que diz respeito às pesquisas e as afirmações nela contidas. Entrevistas apressadas, cujas afirmações não são devidamente checadas; buscas superficiais, produzindo dados duvidosos; minudências desnecessárias; ausência de inter-relacionamentos entre fatos; conclusões forçadas e nitidamente reveladoras de simpatias ou ideologias; escritos mal cuidados, com redação questionável, editoração e impressão a desejar; tudo isso contribui, e muito, para o olhar de esguelha que o saber institucional dedica ao cangaço.

Saliento, entretanto, certa literatura produzida pelos autodenominados “pesquisadores do cangaço” dentre os quais me situo tangencialmente, vez que minhas buscas dizem respeito, propriamente, ao epifenômeno do coronelismo. É inegável sua importância enquanto acervo para a produção do conhecimento científico. Entendo que a “literatura do cangaço”, por si só, constitui uma imensa fonte para estudo acadêmico. Quantas vezes não pensei em unir meus estudos de Filosofia do Direito e Coronelismo por intermédio da análise da literatura do cangaço e a forma como, por exemplo, ela trata acerca da produção, interpretação e aplicação da norma jurídica no tempo dos coronéis? Não caberia, por exemplo, aos estudiosos com formação jurídica, enquanto pós-graduação, um estudo dos instrumentos de legitimação de decisões jurídicas, tal qual a manipulação do conceito de “justiça”, a concretizar o coronelismo?

Finalmente ouso afirmar que a distância da Academia em relação ao epifenômeno do cangaço decorre, muitas vezes, de auto-limitações impostas por instrumentais teóricos equivocados. Refiro-me à tradição – o termo é esse mesmo – funcionalista americana, de um lado, e marxista, do outro. Tradição à qual se opõem, por exemplo, Jacques Le Boff, em uma perspectiva, e Norbert Elias em outra. Tais limitações comprometem a construção de uma História dos Movimentos Sociais Nordestinos, ou mesmo uma História do Sertão Nordestino, muito mais apropriada que uma História do Rio Grande do Norte, esta a depender de critérios artificiais para sua existência, qual seja a criação jurídica de um Estado.

Temos, portanto, três vertentes que deságuam nessa “folclorização”, nessa “minimização”, nesse apequenamento do epifenômeno do cangaço, a suscitar seu tratamento menor, às vezes até mesmo sobranceiro, por parte das instâncias oficiais de produção do conhecimento científico. Uma delas é a forma como o tema se reproduz no mundo do saber popular; outra é como ele se reproduz por meio dos trabalhos de pesquisadores acerca do assunto; e, finalmente, outra é o próprio resultado do trabalho da comunidade científica.

Aqui, faço um interlúdio para exemplificar como ocorrem essas limitações: no primeiro exemplo apresento textos de cordel; no segundo, um texto de um “pesquisador” do cangaço; e, no terceiro, textos de integrantes da “Academia”.

Percebamos como o cordel descreve e, em o descrevendo, mitifica e folcloriza Lampião. O primeiro exemplo tem o seguinte título: “Encontro de Lampião com Kung Fu em Juazeiro do Norte”, seu autor é Abraão Batista, e está transcrito na “Antologia da Literatura do Cordel” de Sebastião Nunes Batista:

Lampião, todos conhecem

mas não sabem interpretar

só sabem falar mal dele

porque não quiseram indagar

a causa que ele abraçou

e o que o forçou a matar.



Se Lampião foi cangaceiro

foi que o forçaram a matar

ele era bom e justiceiro

antes de o incriminar

pois a justiça dos homens

as vezes não sabe julgar.



No entanto o meu assunto

o que agora vou descrever

é de Lampião, o cangaceiro

com Kung Fu do karatê

e se você não o conhece

vai agora o conhecer...

E prossegue.

Outro exemplo: este, um clássico do cordel, colhido da mesma obra, cuja autoria é de José Pacheco, e tem como título “A Chegada de Lampião no Inferno”:

Um cabra de Lampião

Por nome Pilão Deitado

Que morreu numa trincheira

Em certo tempo passado

Agora pelo sertão

Anda correndo visão

Fazendo mal-assombrado.



E foi quem trouxe a notícia

Que viu Lampião chegar

O inferno neste dia

Faltou pouco pra virar

Incendiou-se o mercado

Morreu tanto cão queimado

Que faz pena até contar.



Morreu a mãe de Canguinha

O pai de Forrobodó

Três netos de parafuso

Um cão chamado Cotó

Escapuliu Boca Ensossa

E uma moleca moça

Quase queimava o totó.



Morreram 10 negros velhos

Que não trabalhavam mais

E um cão chamado Tráz-cá

Vira-volta e Capataz

Tromba-Suja e Bigodeira

Um por nome de Goteira

Cunhado de Satanás.

Por fim outro clássico do cordel colhido da obra de Sebastião Nunes Batista, da autoria de Rodolfo Coelho Cavalcante, que tem o seguinte título: “A Chegada de Lampião no Céu”:

Chegando no gabinete

Do glorioso Jesus

Lampião foi escoltado

Disse o Varão da Cruz

Quem és tu filho perdido

Não estás arrependido

Mesmo no Reino da Luz?



Disse o bravo Virgulino

Senhor não fui culpado

Me tornei um cangaceiro

Porque me vi obrigado

Assassinaram meu pai

Minha mãe quase que vai

Inclusive eu coitado.

Observemos, agora, o texto de um pesquisador do cangaço, Fenelon Almeida, em seu livro “Jararaca: o cangaceiro que virou santo”, e como ele descreve Massilon, sem apontar suas fontes:

Benevides, ou Massilon Leite, natural do Rio Grande do Norte, era elemento bastante conhecido naquela Região. Suas raízes assentavam no distrito de Borges, município de União, no Ceará.

Essa informação, sem qualquer fundamento, é reproduzida em “Lampião e o estado maior do cangaço”, de Hilário Lucetti e Magérbio de Lucena, também sem que sejam citadas as fontes, razão pela qual acredito ter sido colhida em Fenelon Almeida:

Suas origens (os autores estão se referindo a Antônio Massilon Leite, o Benevides) assentavam na localidade de Borges, às margens do Rio Jaguaribe, entre os municípios de Russas e Jaguaruana, no Ceará.

Os mesmos autores, na mesma obra citada, dizem um pouco mais à frente, ainda sem citar a fonte:

Viajou depois para o sul do país (comentando o final da carreira de cangaceiro de Massilon), indo parar no Rio Grande do Sul, onde ingressou na Polícia Militar, terminando por aposentar-se como oficial da polícia daquela unidade da federação, provavelmente com nome diverso do que usava nos tempos do cangaço.

Em livro a ser lançado aqui em Mossoró, talvez em Setembro próximo, mostro qual o verdadeiro fim de Massilon, apresentando prova documental de sua morte.

Um último texto colhido de pesquisadores do cangaço é extraído do livro “Lampião o Cangaceiro e o Outro”, de Fernando Portela e Cláudio Bojunga. Começo por dizer que não entendi o título. Qual seu significado? Bom, o livro é iniciado com o seguinte parágrafo:

O capitão andava descuidado. Naquele Julho de 1938 começou a confundir o poder das rezas fortes com a constante necessidade de desconfiar de tudo e de todos. Quem sabe aceitara a lenda de que seu corpo era mesmo fechado quando bastava apalpá-lo sob a roupa espessa para contar os buracos de bala. Talvez se sentisse apenas cansado e vulnerável – o olho vazado lacrimejando um isolamento de mais de vinte anos. O fato é que nos últimos tempos o Capitão andava descuidado.

O que é isso? Literatura? História? A bem da verdade não parece ser nem uma, nem outra.

Quanto ao trabalho da Academia, vejamos um texto colhido na internet, da pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco Semira Adler VAINSENCHER, cujo título é Cangaço, disponível em: , atualizado em 2009, que começa com a seguinte afirmação: “O banditismo parece ser um fenômeno universal”. Pude colher, além desse truísmo criticável, algumas outras assertivas da autora, que submeto à platéia:

a) “Bandidos são indivíduos frios, calculistas, insensíveis à violência e à morte”;



b) “O monopólio da terra e o trabalho servil, heranças das capitanias hereditárias, sempre mantiveram o empobrecimento da população e impediram o desenvolvimento do Nordeste, apesar do empenho de Joaquim Nabuco e da abolição da escravatura”;

c) “O cangaço, o fanatismo religioso e o messianismo são episódios marcantes da guerra civil nordestina: representam alternativas através da qual a população regional pode retaliar os danos sofridos, garantir um lugar no céu, alimentar o seu espírito de aventura e/ou conseguir um dinheiro fácil”;

d) “Já naquela época, o cangaceiro Jesuíno

Brilhante (vulgo Cabeleira) atacou o Recife, mas foi preso e enforcado”;

e) “Em meio a crendices e superstições, os milagres - muitas vezes, resumidos a simples conselhos de higiene ou procedimentos diante da subnutrição - atraem grandes romarias para Juazeiro, ainda mais porque os seus conselhos são gratuitos”;

f) “Vale ressaltar que um fator decisivo para o extermínio do bando de Lampião é o uso da metralhadora, que os cangaceiros tentam comprar, mas não obtêm sucesso”.

Não fiquemos, entretanto, nesse único patamar. Ousemos mais. Peguemos, por exemplo, um clássico da historiografia do cangaço, qual seja “Guerreiros do Sol”, de Frederico Pernambucano de Mello, em sua segunda edição, e nos detenhamos no seu prefácio, assinado por Gilberto de Mello Kujawsky. Lá para as tantas Kujawsky afirma, ao se referir aos cangaceiros:

A dedicação integral às armas, quando levadas ao fanatismo, exige a misoginia, como garantia da invulnerabilidade do guerreiro. Na medida em que este se abandona à tentação da mulher, ou do sexo, ele “abre o corpo” e se expõe à virulência implacável do inimigo.

E prossegue:

No entanto, a analogia surpreendente e inesperada do homem do cangaço, modelado pela disciplina do sol, das armas e do ascetismo sexual, na tensão crispada e solitária do princípio masculino, essa analogia se revela é com a figura do guerreiro, tal como descrita pelo poeta-soldado japonês Yukio Mishima, no livro traduzido sob o título “Sol e Aço”. Sol e aço fazem o contexto do homem do cangaço e do samurai de Mishima.

E conclui:

A chave da analogia entre os “guerreiros do sol” e o samurai de Mishima está na radicalização unilateral do princípio masculino hermetizado em si mesmo como fonte invulnerável de energia épica, temperada pelo sol e aço.

Agora concluo eu: o prefaciador não entende da ética dos samurais, do Japão feudal, do “caminho do guerreiro”, expresso no “Haga-kuri”, da relação mística entre a aristocracia militar japonesa e o “dai-sho”, o culto da espada, típica do xintoísmo por eles professado, e, tampouco, de cangaceiros. Para a diferença ser mais claramente entendida, basta lembramos que os samurais eram aristocratas, enquanto os cangaceiros, com raras e honrosas exceções, representantes do proletariado, verdadeiros “outsiders”.

Esse tipo de “literatura”, que o próprio sertanejo chistosamente poderia definir como tendo muito osso e pouco tutano, compromete a construção de um saber rigoroso e consolida o aspecto “folclórico” do cangaceirismo. E, ao fazê-lo, por reproduzir um “modelo”, o insere no presente e no futuro, gerando dúvidas quanto à possibilidade de discutirmos os fenômenos sociais próprios do Sertão Nordestino em sua dimensão científica nas salas de aula.

Outro exemplo que é possível citar diz respeito à perspectiva marxista mecanicista encontrada em obras como “História do Cangaço”, de Maria Isaura Pereira de Queiróz. Lá para as tantas ela diz:

(...) não é possível admitir que o cangaço se configure como um movimento social.

Foi, realmente, uma resposta à miséria, o que se evidencia no fato de que desapareciam, quando a chegada das chuvas reinstalava o modo de vida habitual.

E nas conclusões da obra:

Se a falta de oportunidade de trabalho nas caatingas e fora delas pode explicar por que surgiram bandos independentes no início do século XX, perdurando por muitos anos, e igualmente por que se formaram as volantes, que eram tropas de polícia especialmente destinadas ao combate do cangaço, a mesma razão permite compreender por que, a partir de 1940, desapareceu inteiramente o cangaço independente, anulando também a necessidade de volantes que lhe dessem combates. A industrialização...

Ou seja, para a Autora o cangaço independente acabou em decorrência do surgimento da industrialização que suscitou o surgimento de mercado de trabalho...

Como superar esses obstáculos epistemológicos, que impedem um diálogo mais amplo e profundo entre o saber histórico e o conhecimento escolar, no que diz respeito ao epifenômeno do cangaço?

Como recuperar uma tradição de estudo desse Sertão que forneceu matéria-prima para a aquisição do vigor e personalidade do cinema nacional, tais quais DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL ou VIDAS SECAS, no dizer de Ariano Suassuna; que ambientou A BAGACEIRA, de José Américo de Almeida; PEDRA BONITA – CANGACEIROS, de José Lins do Rêgo; O SERTANEJO, de José de Alencar; DONA GUIDINHA DO POÇO, de Oliveira Paiva; LUZIA HOMEM, de Domingos Olympio; e OS SERTÕES, de Euclides da Cunha, ao qual o autor do ROMANCE DA PEDRA DO REINO, em ensaio acerca de SEM LEI E SEM REI, de Maximiniano Campos, um romance do cangaço, considera a maior obra surgida até agora na Literatura brasileira.

Antecipo a solução, para ser proativo, como está na moda: suscitando a crítica, ou seja, o debate, a discussão, o intercâmbio incessante de idéias. E como fazê-lo? Como criar e fortalecer meios por intermédio dos qual esse diálogo se expanda e frutifique?

Para a existência da crítica é necessário o fortalecimento das instituições de base, tal qual a Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC), a ANPUH-RN, o Grupo de Pesquisa em Ensino de História e Geografia, suas realizações, fóruns, congressos, encontros, painéis, seminários, cada vez mais freqüentemente e cada vez mais envolvendo a sociedade. Nesse aspecto, saúdo entusiasmado o viés deste encontro, que se consubstancia em uma discussão acerca da tensão entre o que se elabora em termos de saber no mundo lá fora e o que se elabora em termos de saber dentro dos muros das Escolas.

Fortaleçamos a Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço. Queiramos sua presença na Universidade e nas Escolas, como queiramos a Universidade e as Escolas na SBEC. Queiramos, cada vez mais, diálogos com outras instituições de base, ou seja, ONGs, Associações, Fundações, tudo com vistas à construção de metas comuns. Podemos sonhar em uma transformação, à médio e longo prazo, dessas instituições de base, junto com a Universidade, em uma REDE, uma malha aglutinadora e exportadora de conhecimento específico acerca do Sertão Nordestino. O Sertão de Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Patativa do Assaré, Ercílio Pinheiro, Pe. Cícero, Luis Gonzaga, Ariano Suassuna, dos Coronéis, do construtor de Paulo Afonso, do ciclo do couro, da cana-de-açúcar e do algodão, do cangaço, do misticismo, das rebeliões, dos casos de honra, do repente, dos desafios, da xilogravura, do xaxado, e assim por diante.

Talvez pareça um sonho. É possível. Se assim o é, vamos mais longe ainda. Sonhemos sempre. E sonhemos grande. Um dia quiçá encontremos, em nossas elites, e no nosso povo, a consciência da importância da nossa história, a história do Sertão, mais especificamente, do nosso Sertão nordestino, desse Sertão que Euclides da Cunha, poeta e cientista, gênio da raça, ao descrever a epifania da chegada do inverno em suas terras ásperas, nos permite compreender sua beleza trágica. Ouçam:

Mas ao entardecer de uma tarde qualquer, de março, rápidas tardes sem crepúsculos, prestes afogadas na noite, as estrelas pela primeira vez cintilam vivamente.

Nuvens volumosas abarreiram ao longe os horizontes, recortando-os em relevos imponentes de montanhas negras.

Sobem vagarosamente; incham, bolhando em lentos e desmesurados rebojos, na altura; enquanto os ventos tumultuam nos plainos, sacudindo e retorcendo as galhadas.

Embruscado em minutos, o firmamento golpeia-se de relâmpagos precipites, sucessivos, sarjando fundamente a imprimidura negra da tormenta. Reboam ruidosamente as trovoadas fortes. As bátegas de chuva tombam, grossas, espaçadamente, sobre o chão, adunando-se logo em aguaceiro diluviano...

E ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o deserto.

Sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical.

É uma mutação de apoteose.

Os mulungus rotundos, à borda das cacimbas cheias, estadeiam a púrpura das largas flores vermelhas, sem esperar pelas folhas; as caraíbas e baraúnas altas refrondescem à margem dos ribeirões refertos; ramalham, ressoantes, os marizeiros esgalhados, à passagem das virações suaves; assomam, vivazes, amortecendo as truncaduras das quebradas, as quixabeiras de folhas pequeninas e frutos que lembram contas de ônix; mais virentes, adensam-se os icozeiros pelas várzeas, sob o ondular festivo das copas dos ouricuris: ondeiam, móveis, avivando a paisagem, acamando-se nos plainos, arredondando as encontas, as moitas floridas dos alecrim-dos-tabuleiros, de caules finos e flexíveis; as umburanas perfumam os ares, filtrando-os nas frondes esfolhadas, e – dominando a revivescência geral – não já pela altura senão pelo gracioso porte, os umbuzeiros alevantam dois metros sobre o chão, irrandiantes em círculo, os galhos numerosos.

Muito obrigado, e viva o Sertão.